domingo, 21 de junho de 2009
“A felicidade corrosiva” por Yuri Assis
Certos filmes, não dá vontade de ver até o final. Para quem se acostumou com o desfilar de bonanças no cinema comum, é complicado encarar um pesar mal-sanado. Ao menos, assim me situei defronte 'O medo corrói a alma' (1974), película de Rainer Werner Fassbinder, temendo não haver remendo para tais desafios, que por sinal, até que conseguem bem coexistir.
A questão é que nada ajuda, tudo é bastante aflitivo e quando se pensa que chegou – finalmente! – o meio-termo, a seqüência persegue o início de mais uma querela. Não falo aqui só do enredo não: figurinos, cenários, personagens, trilha sonora: a esperança só se mostra no final, num hospital e à beira da morte.
Mas é bom, em começando, falar primeiro do enredo, história de tons melancólicos e sem pretensões de solucionar coisa alguma; Emmy (Brigitte Mira), viúva, de filhos criados, ao entrar em um bar para se proteger da chuva, conhece Ali (El Hedi ben Salem), imigrante marroquino, negro, muçulmano e jovem, que a convida para dançar. O calvário começa embalado por música árabe, coca-cola e clima de paquera. Nasce, assim, uma relação controvertida e mal-vista, mas que nem por isso se desanima. Ou quem sabe?
Não: a família rejeita, as amigas rejeitam, ambiente todo hostil. E por isso mesmo fogem os dois para outro lugar que é para dar tempo: ao tempo, aos demais. E adivinha? Funciona! E a primeira impressão prevê o final feliz. Qual nada! Fassbinder parece saber que nem só dos outros é feito o inferno: da gente também.
Emmy não sabe fazer cuscuz – isso é um problema. Ali quer cuscuz – isso é outro problema. Danou-se tudo e lá vai Ali buscar seu conforto em Barbara (Barbara Valentin) – atendente do bar, que sabe fazer cuscuz e amor. Parece que a calma dos dois se contrapõe à calma alheia, não sabendo as duas tomarem o mesmo lugar. Mas o adverso põe termo ao adverso: a internação de Ali devido a uma úlcera, acaba por reaproximá-lo de Emmy. A lição de Fassbinder é além de expor a inaceitação; faz sair do alvo da flecha o desentendimento próprio. Como se atestasse dificuldades, no humano, para compreender.
"O medo corrói a alma" pode ser interpretado como uma releitura mais sóbria – e quiçá mais complexa, já que põe em Ali a voz de vários excluídos – de "Tudo o que o céu permite", de Douglas Sirk. Perto daquele, a película de 1955 parece mera brincadeira que beira, mas só de leve, a crítica social à qual Fassbinder concede primeiro plano. Ademais, o kitsch de Sirk dá lugar à realidade esmaecida de Fassbinder: a cenografia porta cores que, para mim, remetem à opacidade de dias nublados.
O curioso foi a forma que Fassbinder, homossexual declarado (e eventualmente parceiro de El Hedi), usou para discursar sobre a discriminação. É como se ele cedesse seu lugar a Emmy para tecer a crítica - talvez um grito em desabafo - aos preconceitos da sociedade do seu tempo.
"A felicidade nem sempre é divertida", sentencia os trinta primeiros segundos do filme; às vezes, é preço alto a pagar ou não, afinal cada um sabe seus desafios e aonde a corda vai arrebentar.
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