quinta-feira, 11 de junho de 2009

"Cinema também é poesia" por Pedro Neves




Já nos primórdios do cinema seus defensores afirmavam que ele seria a síntese de todas as artes. Mesmo sem som e sem cores, já existia ali o potencial para ser pintura, literatura, teatro, música e poesia. Talvez por ser o cinema um meio tão aberto a diferentes experimentações visuais e auditivas filmes sobre artistas são tão comuns, a ponto de constituírem praticamente um subgênero da cinebiografia. Um subgênero, paradoxalmente, dos mais problemáticos.

Acontece que o cinema se estabeleceu como uma arte essencialmente narrativa. Artistas muitas vezes são figuras excêntricas e apaixonadas cujas vidas são cheias de drama (que o cinema ajudou e muito a criar essa percepção é um assunto que fica para outra resenha). Biografias de artistas costumam explorar as alegrias e sofrimentos (muitos sofrimentos) desses gênios incompreendidos, mas deixam de lado o principal motivo do interesse pelo biografado: a sua arte. Um aficionado a pintura que vá assistir, por exemplo, a Basquiat (Julian Schnabel, 1996) vai encontrar uma história comovente e um comentário interessante sobre a cena artística na Nova York dos anos 80, mas se sentirá frustrado se o que procura é a essência raivosa e explosiva dos grafites de Jean-Michel.

É por quebrar essa tendência que A Cor da Romã é um filme tão bem sucedido. Chamá-lo de cinebiografia é quase um disparate. Apesar de seguir em ordem cronológica todas as etapas da vida do poeta armênio Sayat-Nova, a película não se preocupa em fornecer dados historicamente corretos sobre o trovador. Procura habitar seu universo. E o universo de Sayat-Nova era a Armênia do século XVIII, um país disputado por otomanos e persas e atrasado em relação ao resto da Europa. A Cor da Romã recria o modo de vida medieval: os ritos religiosos e os mosteiros, a corte e seus jogos, a fabricação da renda e o tingimento dos tecidos. O folclore da região se faz presente nas canções tradicionais e na encenação dos rituais e manifestações artísticas, nas vestimentas típicas e nas casas de banho.

Mais impressionante é o profundo entendimento das formas de percepção da Idade Média. Inspirado em iluminuras, o diretor Sergei Paradjanov aboliu a perspectiva do seu filme. As cenas, planos estáticos compostos como tableaux vivants, são em geral filmadas diante de paredes ou tapeçarias, emulando o fundo neutro da iconografia bizantina. Nas cenas ao ar livre, a grama funciona como fundo pintado. Quando existe a necessidade de por em um quadro vários grupos de personagens executando atividades simultâneas, esses grupos são dispostos em diferentes níveis, como em uma arquibancada. Alguns planos são filmados de um ponto mais alto, mas de alguma forma Paradjanov consegue dar aos objetos (uma cama, por exemplo) a aparência achatada e sem ilusão de profundidade das pinturas medievais. Os atores assumem posições hieráticas e movem-se apenas o suficiente para descrever a ação desejada. As cores, finalmente, são intensas e sólidas, como as ilustrações de um manuscrito.

O que A Cor da Romã tem de mais admirável, entretanto, é a capacidade de não apenas falar de poesia, mas ser ele mesmo um poema. O filme, que não tem diálogos, se utiliza de vários recursos da linguagem poética. O ritmo é ditado pelos planos longos e estáticos separados por intertítulos que elucidam a narrativa ou citam canções do bardo. Metáforas abundam: a concha como o seio feminino; o verter líquido de um recipiente para outro, símbolo da temperança, aqui funcionando como a corte entre o poeta e a princesa. Imagens alegóricas perdem o significado para um espectador distante de uma cultura e de uma época, mas conservam intactos a beleza plástica e o poder evocativo, o sentimento místico. As rimas visuais estão na repetição de certos motivos: o livro cujas folhas viram com o vento, as romãs que mancham (tingem) o tecido, os galos que sangram e se debatem. E o vermelho, que escorre como suco, tinta e sangue em vários momentos. Nem tudo em A Cor da Romã pode ser compreendido em termos puramente racionais. Como em toda arte, é necessário intuição para apreciá-lo. Mas a carga de estímulos sensoriais e o papel essencial que estes assumem na leitura do filme são característicos mais do gênero lírico que da prosa.

O que A Cor da Romã alcança, finalmente, é uma raridade: partir de elementos cinematográficos (mise-en-scène, trilha sonora, fotografia, figurino, roteiro, enfim, tudo o que compõe um filme) para encontrar outra forma de arte. Biografar a vida de um artista através de sua obra. Fazer do cinema, verdadeiramente, poesia.

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