segunda-feira, 8 de junho de 2009
“Cem é suficiente” por Roberta Cardoso Morais
Esqueçam os filmes de aliens, naves espaciais, foguetes, ringues ou aventuras adolescentes típicos dos anos oitenta. “Afogando em números” (1988), assim como toda obra de Peter Greenaway é uma desconstrução do que estamos acostumados a ver enquanto cinema e enquanto arte. Greenaway é um artista (ponto). Multi-mídia, polimorfo e polissêmico. Não é apenas um pintor, um interventor ou um cineasta, assim como não é apenas a junção disso. Sua formação como pintor delineia seu ‘ser cineasta’, claro, mas o mais importante é sua visão sobre a imagem em si, seja qual for sua forma. É a imagem, por ser narrativa, que deve reger a estrutura narrativa do filme. Anos antes de rodar um filme, ele começa a desenhá-lo, a pintá-lo e já nesses rascunhos, o ritmo do filme está marcado e toda sua estrutura e composição. E é assim que acontece em Afogando em números.
Greenaway nos introduz ao mundo dos números logo nas primeiras falas do filme, quando a garota que conta estrelas, Elsie, diz: “Cem é o suficiente. Depois de cem tudo se repete”. Entre o caminho do nonsense e do absurdo, o diretor cria um mundo bizarro e esquisito, com suas próprias regras, que tornam possível a evolução da história, mesmo que para ele a história possa perder espaço para a imagem. O marco da repetição é feito por três gerações de mulheres (Joan Plowright, Juliet Stevenson e Joely Richardson), com o mesmo nome, que afogam seus maridos. As Cissie Colpitts usam o interesse do legista Madgett (Bernard Hill) para encobrir as mortes. As Cissies simplesmente se cansam de seus maridos. Os motivos parecem banais e nada é suficiente para não fazê-lo. Engraçado é que logo após os afogamentos, as três são acometidas por uma melancolia, o que chega mais perto da culpa.
O estranho humor de Greenaway não fica por aí. Os encontros daqueles que não acreditam nas três mulheres se realizam na ‘torre de água’; Madgett é rejeitado por cada uma das três Cissies na mesma situação; a garota que sempre pulava corda na calçada, quando resolve pular na rua, é atropelada; além de vários comentários ácidos e de humor negro dos personagens.
Madgett, o legista, concorda em ajudar a primeira Cissie (a mãe) por ter interesse nela, mas ao decorrer do filme, se vê enrolado nas armadilhas das mulheres, e que elas, no fundo, são apenas uma. As três são unidas de tal forma que são as várias faces e fases de uma grande Cissie. A força delas anula sua expressão de vida, fazendo dele quase um fantoche. Mas não é só nelas que se apresenta a força do poder feminino (característica de Greenaway); Eslie, a menina que pulava cordas e contava estrelas, pergunta a Smut (filho de Madgett) se ele é circuncidado. Ele não consegue tirar essa idéia da cabeça, até que ele mesmo se opera, em paixão por Eslie.
Alguns dos frames do filme parecem quadros e falam por si mesmo. As frutas na cena da banheira, as mariposas sobre o pano de Smut, a mesa posta do café da manhã de Madgett, fazem total referência a quadros do tipo ‘natureza morta’. É um filme muito escuro, com cores bem delimitadas e fortes, como se saídas de uma tela. A luz é muito bem direcionada nesse sentido, dando vida apenas ao que interessa ser ‘pintado’ na história. A semelhança das cenas da menina que pula cordas com o quadro As meninas de Velásquez é incrível. As fotografias tiradas por Smut são de uma beleza tal que parecem quadros de arte. A fotografia da sequência final do filme é perfeitamente trabalhada. Isso tudo decorre da sua preocupação com a composição da imagem e também de sua formação. O cinema de Greenaway é um prato cheio para estudiosos e apreciadores de uma boa imagem. Seu trabalho de direção de arte é incrivelmente rico.
Smut é um personagem chave na história. No contexto, é um garoto apático, presencia as confissões das Cissies e não comenta nada com ninguém. Está sempre interessado nos jogos que inventa com seu pai ou em contar (mortes, abelhas, folhas, pelos). Ele talvez seja o principal responsável por nos dar a sensação de estarmos sendo afogado em números. Ele, sua mania de contar junto com o os números (de 1 a 100) que aparecem no filme, a maioria em imagem, mas alguns ditos pelos personagens, a garota que conta estrelas, a repetição das mortes, juntamente com grande quantidade de fogos de artifício e as inúmeras regras e jogos nos prendem ao filme, como uma pedra amarrada em nossos pés, nos levando para o fundo da mente de Peter Greenaway.
A repetição das mortes talvez não funcione exatamente mera repetição, mas como parte de um ciclo, de um processo de libertação das Cissies Colpitts. O fato delas se livrarem do legista é o número 100 da história.
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