terça-feira, 5 de maio de 2009

"A Vida e o Cinema sob o Olhar Godardiano" por Ingrid Maiany


“Esse é um tempo de homens partidos”, disse Carlos Drummond de Andrade na segunda metade do século XX. Jean-Luc Godard o sabia bem. Seus filmes são verdadeiros quadros cubistas de colagens, repletos de atomizações que beiram o hermetismo. Causa, talvez, da polarização de opiniões acerca de seu trabalho, que, se costuma ser amado ou odiado, tem em “Pierrot, Le Fou” um de seus poucos consensos: gosto.
A inquietação começa no primeiro segundo. Ao som da música de Antoine Duhamel e Antonio Vivaldi, surge na tela em ordem alfabética o letreiro de abertura. Letra por letra, os créditos iniciais são um prenúncio da fragmentação desse indisciplinado road-movie, repleto de alegorias e transgressões. Alegorias que começam no irônico “melhor dos mundos” de Voltaire, estampado na banca de revistas, e desembocam num retrato da vida de Ferdinand Griffon (Jean-Paul Belmond), pintado através de uma análise de Velásquez, em que o espaço reina supremo e não há interrupção de choques ou sobressaltos.

Ora, gauche em um meio mesquinho de mulheres que recitam propagandas de produtos de beleza e homens que explanam sobre modelos de automóveis, Ferdinand abraça sua loucura antes que seja tarde demais. Loucura que bate à sua porta sob a forma de uma antiga paixão, Marianne de Renoir (Anna Karina). E, nas palavras de Oswaldo Montenegro, quem vai dizer ao coração que a paixão não é loucura? Por conta do sentimento que o entrelaça à Marianne, o louco Pierrot envolve-se numa trama de nós descontínuos sobre contrabando de armas, dinheiro sujo e mortes.

Pierrot, Le Fou é iconoclasta e marginal. Uma miscelânea de cinema mudo, comédia pastelão, thriller policial, musical, melodrama e documentário que questiona o que é o cinema, para depois contrapô-lo à vida. “Isso é a vida para você”, diz Ferdinand, “Isso não é um filme”, diz Marianne, ao passo que, mais à frente, ambos dialogam com a platéia. Como solucionar esse paradoxo godardiano? Talvez, assim como Clarice Lispector, Godard queira uma realidade inventada – ou reinventada, tal o amor. Vida e cinema são metalinguagens para o cineasta; se misturam, se completam, se confundem, do mesmo modo que as vozes de Marianne e Ferdinand narram juntas o filme. “Cinema é, em uma só palavra, emoção”, afirma o especialíssimo Fuller. Pois, emoção pura é também viver.

Godard é avesso às regras, no melhor estilo Nouvelle Vague. Faz uso de quebras de linearidade, prioriza idéias em detrimento à história, brinca com o destino das personagens, usa um protagonista sem objetivos claros, apresenta os figurantes para o espectador, prima pelo excêntrico e pitoresco. É autor de seu filme, livre e onipotente. Ferdinand e Marianne estão sempre se perguntando “E agora?”, “O que vou fazer?”, e, de súbito, abandona-se a linha reta da estrada para lançar um carro ao mar: “Posso fazer o que eu quiser”.

A trajetória cigana é permeada por citações indiretas de outros filmes de Godard, tais Acossado e Viver a Vida, bem como diretas de Balzac, Baudelaire, Conrad, Stevenson, JackLondon; Paris Match e Renoir; Pé Níquel e Picasso; ícones históricos como Leonov e White II; críticas a ESSO, a Coca-Cola, à Guerra do Vietnã e ao capitalismo americano; o Gordo e o Magro, Johnny Guitar e Robinson Crusoé; letreiros luminosos e divisões da história em capítulos. Sincretismo pop e clássico, pedacinhos de cultura que nos tornam homens duplos, quádruplos, múltiplos, passíveis ao sim. Sim que traz muita coisa ao mesmo tempo para Ferdinand e Marianne e que torna tudo tão complicado.

Os dois personagens são antagonistas, não se entendem, não se sabem mútua e reciprocamente. Marianne tem um quê da Capitu machadiana: olhos de ressaca, que dissimulam e transmitem verdade de forma simultânea; desejo de viver em plenitude; defesa do sentimento. Ela comanda, é ativa, planeja, executa, anseia, encanta. Ferdinand, por sua vez, é um contemplador, um homem de idéias e, assim como Bentinho, apático e inseguro. Se na obra do grande escritor brasileiro existe uma dúvida acerca da possível traição, na película de Godard a resposta que falta é sobre o amor entre os protagonistas. Marianne não fala sobre si mesma, Ferdinand é um ponto de interrogação sobre o Mediterrâneo. Eles não podem jurar amor eterno, visto serem fugazes. São “um amor sem amanhã.”

“Somos feitos de sonhos e os sonhos são feitos de nós”, ao findar-se o primeiro e único sonho de Marianne e Ferdinand, Pierrot, o Louco, entra em desespero e dinamita a própria cabeça. Mais uma vez filme e vida se interpõem num final triste, porém belo. Eles encontram a eternidade na única linha verdadeiramente reta do mundo, que, todavia, não passa de uma ilusão: é apenas o sol e o mar. “Terno e Cruel. Real e Surreal. Terrível e Divertido. Noturno e Diurno. Sólito e Insólito. Pierrot Le Fou”.

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