quarta-feira, 6 de maio de 2009

"Água viva" por Nathalia da Conceição Pereira



Podemos dizer que os filmes de Peter Greenaway são enciclopédias em movimento. Dentro deles, todas as formas de arte encontram seu lugar e dialogam entre si em tramas que cativam pelos detalhes, mais do que pela história que conduzem, ao passo que é necessário consultá-los diversas vezes antes de capturar cada minúcia - se é que essa ardileza é possível. Afogando em números segue esse meticuloso desatino, faz incontáveis releituras bíblicas, adota Mozart como regente, arte Barroca como pele e a morte como essência. Tudo isso na forma de um conto de fadas mordaz.

Talvez conto de fadas seja a expressão errada, já que as três mulheres ‘donas’ do filme estão mais para as enigmáticas feiticeiras de Macbeth do que para figuras melindrosas e celestiais. Existe quem afirme que se trata de uma trama feminista. Não sei se foi a intensão do artista, ou se a obra pode ser catalogada em alguma linha de pensamento, de qualquer forma, a força das protagonistas refaz o ideal cristão de trindade e constrói mentes muito acima do herói ou do bandido, santo ou pecador. Assim, no cabo de guerra entre o bem e o mal armado por Greenaway, a identidade de cada um, simplesmente, depende. Nessa ‘comédia negra’, o mal tem sempre uma alma de bondade e, como nos homicídios seguidos pelas lágrimas do próprio assassino, a morte aqui vem acompanhada de uma leve doçura.

O filme é tão carregado de detalhes e significados, que antes do enredo principal - sobre afogar maridos e apelar para a libido do amigo legista – existem dezenas de sutilezas que nos distraem do foco. Aliás, tudo é armado para que o espectador se confunda quanto à idéia central do filme. Existe uma moral da história? O diretor parece deixar esse trabalho para a audiência mais pretensiosa. O que ele quer – maliciosamente – é jogar.

Uma das coisas mais bonitas do filme é a forma como foi construída a personalidade do coadjuvante Smut, o estranho filho do legista. O menino rege a cadência matemática do filme com sua obsessão por jogos, dando preferência, é claro, aos jogos de morte. Absolutamente ingênuo diante da carga erótica e maliciosa, marcante em sua vizinhança, ele se mostra totalmente alheio às preocupações e manejos dos adultos. Importa-se mesmo é com os números, com as criaturas importantes que morrem todas as terças e sábados, com fogos de artifício e com sua visceral paixão infantil por Elsie.

A menina também tem um ar perturbador. Começa o filme pulando corda com seus trajes deslumbrantes de infanta Margarida e contando estrelas até a centésima delas. “Depois de 100, todas as outras centenas são iguais”, afirma, pomposa como uma nobre. É por ela que Smut se mutila na pura tentativa de ser um homem bom o suficiente, mas como a sorte dos homens desse filme é deitar no lençol aos pés de cada mulher, o menino não resiste à dolorosa impossibilidade de seu amor. Com a corda que ajudava Elsie a contar estrelas, ele se enforca, mas não antes de anunciar que aquele jogo era o melhor de todos, pois o vencedor é também quem perde e a decisão do juiz não admite apelação.

Voltando a atenção para a “história principal” do filme, os afogamentos acontecem todos em águas ironicamente calmas, como o imaginário clichê do comportamento feminino. Gentis e delicadas, elas seduzem e acolhem cada homem num seio praticamente maternal. Shakespeare uma vez falou que as águas correm mais mansamente onde o leito é mais profundo, Afogando em números faz valer o sentido. Então, completando seu impecável ritual, Greenaway afoga - em águas mansas - três maridos, pelas mãos de três mulheres sensualmente diabólicas, que choram amorosamente as três mortes, e persuadem por três vezes o legista, que lhe tem o amor negado, implacavelmente, por três vezes.

Jake, o marido jardineiro, tinha o nariz muito vermelho, as costas muito peludas e não havia lavado os pés. Comemorava o aniversário da amante, nu como um recém nascido, numa banheira repleta por dois símbolos especialmente perigosos: água e maçãs. Hardy, o marido empresário, comia doces em excesso, era desinteressado por sexo, tinha o ventre grande demais e o espírito um tanto oco. É engolido pelo mar, depois de ter coroado sua debilidade sexual, como mais um sansão impotente. Seu corpo, então, vai jazer como uma obra prima na varanda de sua casa. Já Bellamy, o bombeiro desempregado, era recém-casado, submisso e não sabia nadar. Sendo marido de uma Cissie Colppitt nadadora, morre como uma criança desesperada dentro de uma piscina olímpica, sua esposa era leal o bastante à trindade familiar.

Talvez, por um instante, Peter Greenaway pudesse ter sido tentado a afogar o quarto homem, mas, se assim ocorreu, ele não resistiu à obsessão pelo equilíbrio. Se aquele que sabia demais devia morrer – afinal nenhuma Cissie Colpitt desistiria da vitória - que morresse fora de seu filme, depois que a música parasse de tocar e que os últimos fogos acesos por Smut cessassem a celebração da morte trágica. E é assim que acontece, o filme morre antes do número 100 afogar o legista e o fim coroa a obra.

Um comentário: