quinta-feira, 30 de abril de 2009
"Entre a cinefilia e o manifesto" por Hugo Viana
Jean-Paul Belmondo representava, nos anos sessenta, a emergência transgressora da juventude que amadureceu em tempos de guerra. Em Acossado (1960), no papel de Michel, ele rouba carros, atira num policial e fica com a personagem de Jean Seberg. Um anti-herói romântico que “vive perigosamente até o fim”, como antecipa um cartaz durante a projeção. É a pessoa ideal para exprimir a irreverência despreocupada de Godard e atacar a velha guarda do cinema francês, ao dizer que o ator Maurice Chevalier é “o mais puto de todos os franceses”. O rosto de Belmondo, algo entre a simpática desarmonia estética da fisionomia de Jean-Pierre Léaud e a mistura épica entre charme e cinismo de Clark Gable, ilustra a dicotomia presente em Pierrot le Fou (1965), de Godard – a vontade de explorar o novo e de reverenciar o clássico.
Em determinado momento do filme, sem nenhum motivo aparente, Marianne (Anna Karina) começa a cantar para Ferdinand (Jean-Paul Belmondo). A beleza gratuita desse ato é um elogio melódico aos musicais americanos, que tinham nas canções-surpresa desvios calculados na narrativa. Em seguida, a representação muda de ritmo e encena um thriller policial. A câmera revela que há, no apartamento dela, um sujeito deitado de costas, com uma tesoura enfiada no pescoço, e algumas caixas de metralhadoras ao fundo. Do musical ao suspense, do road-movie romântico ao “sozinhos-na-ilha-deserta”: ao ser interpelado por Marianne, durante uma fuga, Ferdinand gira o volante e joga o carro no mar. Ferdinand não foge em linha reta e Godard não repete fórmulas narrativas.
O filme de Godard corre por desvios inesperados. Vai e volta, muda e improvisa, pensa e tem seriedade o suficiente para rir de si mesmo. Pega atalhos por referências culturais diversas, sendo o cinema a base mais óbvia e necessária. Da literatura de Balzac a histórias em quadrinhos, de pinturas de Renoir a filmes de Nicholas Ray. “Você deixou a empregada ir ao cinema de novo? É a terceira vez nessa semana”, reclama a mulher de Ferdinand. “Claro que deixei. Está passando Johnny Guitar, é bom para a educação dela”, diz Ferdinand, recita Belmondo e explica Godard. História da arte, cinema clássico, música pop. Godard mistura tudo numa sequência de imagens que é tanto reflexão sobre como construir um discurso cinematográfico livre da austeridade dos filmes de estúdio quanto uma declaração de amor ao cinema como expressão artística.
Analisar Pierrot le Fou a partir de conceitos fílmicos conservadores, que discutem a narrativa sob o olhar cansado da lógica e da linearidade, impede a fruição pelo viés assumido de filme-cinéfilo que aparece em cada cena. Ao mesmo tempo em que narra um longa-metragem que reverencia o cinema clássico, Godard aponta novas possibilidades cinematográficas. Linguagem revolucionária para discurso inovador. O corte é quase uma entidade palpável. Se normalmente a ligação entre um plano e outro seria mascarada por raccords, com a falsa sensação de continuidade, em Pierrot le Fou ele está na cena, ao lado de Belmondo e Anna Karina. A parte em que Ferdinand e Marianne escapam da casa dela é um belo exemplo. É uma sequência desconexa de planos, que tem os momentos banais suprimidos e as explicações jogadas fora. A compreensão vem do ritmo e do sentimento que compõe as imagens.
Ou então quando o casal encena uma peça de teatro para arrancar dinheiro dos turistas (ou “escravos modernos”, como define Godard). Ferdinand se veste como um oficial americano, Marianne como uma chinesa. É quando o filme assume posicionamento político, já que eles representam a Guerra do Vietnã. Enquanto a mão de Ferdinand simula um avião, e fósforos metaforizam bombas, o som externo acompanha a ideia. Quando há o “confronto” entre os dois personagens – “o sobrinho de Tio Sam contra a sobrinha do Tio Ho”, explica Godard, numa cartela – diante dos gritos de Ferdinand, o diretor coloca uma imagem do tigre-marca do posto Esso, e barulhos de balas quando aparece o nome “Esso”. Nesse instante, a montagem política lembra as experiências de Eisenstein, de formatar um discurso ideológico através do choque de imagens.
Forma e conteúdo se tornam passíveis de reordenações, debates e argumentações lúdicas que refletem a inquietação da Nouvelle Vague. Inquietação que formulou críticas a certos filmes franceses e aos dinossauros que se enraizaram lá. Inquietações que estavam também nos elogios/homenagens ao cinema de autor praticado por alguns dentro de Hollywood.
A homenagem mais evidente ao cinema americano aparece ainda no primeiro ato. Belmondo/Ferdinand não é mais um jovem que “vive perigosamente até o fim”. Está casado com uma moça rica, trabalhava até pouco tempo como produtor de TV e vai a festas burguesas, onde se conversa através de slogans publicitários. Lá ele encontra Samuel Fuller, diretor americano proscrito, autor de filmes vibrantes sobre pedofilia, insanidade e questões sociais e políticas nos EUA. Fuller diz para Ferdinand o que é cinema: “Um campo de batalha. Amor, ódio, ação, violência, morte – numa palavra: emoção!”. É exatamente “emoção” que define o efeito dos filmes de Fuller e Godard.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário