quinta-feira, 30 de abril de 2009

"Pintada em um quadro" por Clarice Carvalho


Uma mulher capaz de deixar os homens obcecados, viciados, loucos. A femme fatale, proveniente da mitologia, da literatura ocidental e do cinema noir, tem essas características.

A representação da mulher avassaladora que alucina os homens deixa os sentimentos dos espectadores eufóricos; os homens tornam-se desejosos por viver paixões arrasadoras e as mulheres anseiam por dominar e provocar a loucura masculina. Como produto industrial com alto valor agregado que visava ao lucro, o cinema noir encontrou na efetivação desse tema que facilmente conquista o público um trunfo para as grandes produções hollywoodianas.

As femmes fatales do cinema noir expressaram com magnificência seu caráter mortal. No primeiro filme noir, “O Falcão Maltês”, de 1941, Mary Astor representa a mentirosa Brigid O'Shaughnessy que envolve um detetive para conquistar seus objetivos. Em “Pacto de Sangue”, 1941, Barbara Stanwyck no papel de Phyllis manipula um agente de seguros para ajudá-la no assassinato do seu marido.

Otto Preminger, produtor e diretor austríaco, representou em “Laura”, de 1944, uma polêmica femme fatale do filme noir. Uma produção da 20th Century Fox traz no elenco Gene Tierney, interpretando Laura Hunt, e os três homens que a rodeiam: Dana Andrews, o detetive Mark McPherson; Clifton Webb, o amigo Waldo Lydecker e Vincent Price, como Shelby Carpenter.

A fórmula clássica do cinema noir, que apresenta um crime como circunstância para o encontro de um casal e a revelação de seu amor, foi inovado em “Laura”. A protogonista fica ausente ao longo do filme e sua imagem é construída a partir da descrição dos personagens. O caráter fatal de Laura é logo demonstrado em uma reflexão de Waldo Lydecker: “Eu nunca esquecerei do final de semana em que Laura morreu. (...) Eu me senti como se fosse o último homem que restou em Nova York.” Aí está presente a obsessão e romantismo dele pela bela mulher.

Descobrir o assassino de Laura, então, torna a missão do detetive Mark McPherson. Essa busca o levará ao segundo homem que a rodeia, Shelby Carpenter. O casamento entre eles e alguns fatores questionáveis de Shelby o torna principal suspeito.

O belo quadro de Laura acrescido das memórias eufóricas de Waldo sobre ela acrescenta à história mais um admirado e apaixonado homem; Mark McPherson. Seu papel de detetive recebe influências de sua paixão que, durante a primeira parte, é irreal. A curiosidade da personalidade de McPherson está no seu joguinho incessante, que irrita todos os personagens que o envolve.

A primeira parte do filme conduz o espectador a supor a existência de um assassino de Laura, no entanto, a aparição dela, esta duvidosa quanto a ter sido sonho do detetive, redimensiona toda a história. As questões ressurgem: houve um assassinato? Quem foi a vítima? Quem matou? O assassino sabia que não era Laura? As dúvidas criam na segunda parte uma atmosfera de suspense e revelações.

A ótica pessimista e cética do assassinato e a frieza do criminoso são intensificados pelo aspecto crucial do cinema noir; a iluminação e o contraste preto e branco. A sombra de Waldo na escadaria do prédio de Laura no momento da descoberta do assassino pelo detetive é um dos exemplos de como esse recurso foi explorado.

A característica de anti-heroína no cinema noir ocorre devido ao caráter culposo das femmes fatales, da sua manipulação e execução dos crimes. No entanto, em “Laura” esse conceito é reformulado e ela se torna uma anti-heroína indireta; seus atos nada influem para o crime, mas sim a sedução e paixão provocada nos homens.

A mulher forte e intensa do cinema noir é expressa em “Laura” apenas na primeira parte do filme. As cenas relacionadas aos pensamentos de Waldo demonstram Laura como uma mulher jovem, determinada e inteligente. Sua obstinação o conquistou. Entretanto, observa-se nas cenas da segunda parte, em que Laura é real, uma certa inocência e passividade na figura de uma beleza juvenil. Tudo se transforma; seu olhar profundo do quadro torna um olhar ingênuo, sua capacidade de selecionar seus amores é convertida em uma paixão momentânea de dias. Seu caráter fatal encontra-se apenas na imaginação de Waldo.

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