terça-feira, 21 de abril de 2009

"O jogo do marido afogado" por Pedro Neves


O jogo consiste em matar por afogamento todos os maridos das jogadoras chamadas Cissie Colpitts, sendo as próprias mulheres as que devem cometer os assassinatos, na ordem em que foram contraídos os matrimônios. Depois de cada execução, a Cissie Colpitts recém-viúva deve chamar o legista e convencê-lo a falsificar a causa de morte. O legista, por sua vez, levará a Cissie para um campo pré-determinado e tentará obrigá-la a aceitar sua proposta de casamento, enquanto seu filho procura mariposas. Os outros jogadores devem, após cada morte, se reunir sob a caixa d água e procurar maneiras de incriminar as Cissies perante a polícia. O jogo termina quando todos os números de 1 a 100 forem encontrados, na ordem correta e nos objetos mais diversos.

É esse o jogo que Peter Greenaway põe em cena em Afogando em Números. O espectador também pode participar, procurando os números mencionados ou nomeando as referências a pinturas barrocas salpicadas na tela. Uma brincadeira mais estimulante talvez seja a de encontrar um sentido para toda a loucura (metódica, é claro) apresentada. Mas esse jogo pode revelar-se frustrante. Por exemplo: será que, a julgar pelas recriações de naturezas mortas holandesas, repletas de frutas maduras e insetos em desordem, Afogando em Números retoma a tradição dos vanitas barrocos, sendo portanto uma meditação sobre a fugacidade dos prazeres terrenos e a iminência constante da morte? É possível, mas o tom jocoso do filme desencoraja qualquer reflexão que se leve a sério demais. Afogando em Números parece não ser mais que uma brincadeira, e as imagens e situações propostas têm um fim exclusivamente lúdico.

Liberados da obrigação de encontrar um “sentido” (ou uma moral), podemos então nos concentrar no que realmente importa: a mise-en-scène vibrante e o senso de humor mórbido de Greenaway. Formado em Artes, o diretor inglês estudou pintura mural por três anos antes de voltar-se para o cinema. Seu interesse por pintura é evidente em todos os seus filmes; cada plano é construído como um tableau vivant onde pessoas, móveis e uma infinidade de objetos cuidadosamente posicionados se fundem em composições simétricas e estudadas. O cinema de Greenaway preza pelo artifício.

O universo de referências do diretor é decididamente o da alta cultura. Além da preocupação com a pintura européia dos séculos XVI e XVII e com temas relacionados à história da arte e à Bíblia (especificamente a história de Sansão e Dalila, neste filme), a música, composta pelo colaborador frequente Michael Nyman, é inteiramente baseada no movimento lento da Sinfonia Concertante de Mozart. Afogando em Números, entretanto, está longe de ser um filme sisudo. Greenaway tem um senso de humor peculiar, entre o nonsense e a comédia negra. O contraste entre a gravidade dos acontecimentos (se trata de um filme sobre assassinato, afinal) e o ridículo dos diálogos provoca risos desconfortáveis. Outros momentos são simplesmente absurdos, como os corredores 70 e 71 Van Dyke, que frequentam enterros e festas sempre com suas roupas de corrida, ou a cena em que a Cissie 3 e seu marido atropelam duas vacas com suas bicicletas. Os números de 1 a 100 que aparecem na tela nos lugares mais improváveis são gags visuais recorrentes.

Alguns espectadores podem se perguntar o porquê dessa extravagância cinematográfica. Mas isso equivaleria a se perguntar o porquê da arte, cuja prerrogativa é exatamente a gratuidade. Greenaway nos mostra um sistema fechado em si mesmo e de difícil acesso. O segredo para desfrutá-lo é mergulhar com um espírito lúdico e olhos bem abertos, disposto a se encantar com imagens poderosas e ideias disparatadas. O excesso de estímulos sensoriais pode até afogar os menos dispostos, mas é difícil imaginar uma forma mais estética de morrer.

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