domingo, 5 de abril de 2009

"O mistério de Sirk" por Pedro Neves


A crítica, assim como a arte, está sujeita a modas. Surgem novas formas de olhar, caem velhos paradigmas, e de repente obras que representavam o melhor de uma época, o máximo em refinamento e estilo, parecem irremediavelmente datadas, enquanto o lixo, sob uma luz mais favorável, assume a aparência de obra-prima.

Foi assim com Douglas Sirk. Alemão que imigrou para os Estados Unidos para escapar do nazismo, fez seu nome com uma série de melodramas dirigidos para os estúdios Universal entre 1952 e 1958. E que melodramas: histórias de inveja, ganância e paixões maiores que a vida, filmadas com cores saturadas até o limite do possível e trilha sonora transbordando sacarina. Apesar do sucesso de bilheteria, os críticos torciam o nariz para o trabalho de Sirk; acusavam-no de exagerar no uso de clichês, de falta de veracidade, de excesso de sentimentalismo, enfim, de criar kitsch, e não arte. Mas o tempo passa, o mundo gira, o mundo é uma bola.

A partir dos anos 70, inspirados pelas novas correntes acadêmicas focadas em estudos de gênero e sexualidade, críticos e estudiosos do cinema reavaliaram o legado de Douglas Sirk. E o alemão emergiu como um mestre da ironia, um subversor das regras férreas de Hollywood, um sofisticado poeta da imagem. Tolos e preguiçosos foram os críticos dos anos 50, que não enxergaram as demolidoras críticas sociais escondidas sob os violinos e Technicolor.

Mas afinal, quem está certo? Ao assistir Tudo o que o céu permite, várias coisas chamaram minha atenção: as cores magníficas (principalmente o vermelho incandescente dos cabelos e lábios de Jane Wyman), a mise-en-scène primorosa, os enquadramentos brilhantes, sim, mas também a trilha sonora invasiva, a péssima atuação de Rock Hudson, a resolução fácil dos conflitos e a sensação geral de ridículo. Encontrei-me do lado errado da História.

Tudo que o céu permite conta a história de Cary, viúva de meia idade com dois filhos universitários que se apaixona por Ron, seu jovem jardineiro. Os primeiros encontros entre os dois, carregados de tensão sexual reprimida e diálogos sobre Piceas prateadas (as árvores preferidas de Ron), são obras-primas da comédia não-intencional. A canastrice de Rock Hudson, galã-de-novela-mexicana mode on, faz de cada frase uma insinuação, e as cenas parecem saídas de um filme pornô para mulheres.

Inevitavelmente, Cary e Ron se apaixonam, mas para viver esse amor vão precisar aguentar o preconceito de todo o círculo social de Cary. O contraste entre o mundo rígido de Cary e a liberdade e espontaneidade do universo de Ron é ilustrado por duas festas: Ron leva a viúva para um jantar informal na casa de amigos, onde todos os convidados (imigrantes estereotipados inclusive) cantam, dançam e se divertem. Thoreau (escritor símbolo do espírito americano, independente e ligado à natureza) é citado; uma amiga de Ron garante que ele nunca leu o livro em questão, mas “o vive”. Na festa em que Cary apresenta Ron para seus amigos, os vizinhos se deliciam com o escândalo e a festa termina em briga e no ostracismo do casal. Para completar, os próprios filhos não aceitam os planos de matrimônio da mãe e ameaçam abandoná-la.

Cary não suporta a pressão e rompe com Ron, para logo perceber que ninguém de fato se preocupa com a sua felicidade. Sua solidão é percebida com toda a agudez ao ganhar de presente dos filhos uma televisão para manter-lhe companhia – uma pálida substituta da vida à qual Cary renunciou. Essa sem dúvida é a cena mais sublime do filme, e uma prova da ousadia de Sirk – utilizar o cinema mais escapista para criticar a passividade dos consumidores da indústria do entretenimento, e através de um grande estúdio condenar a fábrica de ilusões que é Hollywood. Sirk tampouco poupa a moralidade vigente, que reprime a sexualidade feminina e não admite às viúvas outros “consolos” que não o entretenimento sadio da TV e o afeto e companheirismo de um idoso.

Por causa de suas críticas ao conformismo americano Sirk muitas vezes é visto como um subversor. Mas essa visão só pode decorrer de uma imagem estereotipada dos anos 50 como a década da repressão. Outros filmes contemporâneos desmentem essa imagem; veja, por exemplo, A Caldeira do Diabo, que basicamente advoga pela educação sexual nas escolas, tem uma heroína adolescente que toma a iniciativa com um rapaz e conta com uma garota que engravida do padrasto como uma das protagonistas.

Outros críticos enxergam ironia em Sirk: o exagero das cores e da trilha sonora, a atuação estilizada e as composições estudadas seriam mecanismos de distanciamento – o diretor já havia encenado Brecht na Alemanha. As limitações de trabalhar em um sistema de estúdios obrigavam-no a acatar decisões indesejadas, mas ele inseria sua visão de mundo nas entrelinhas, como no final feliz com um toque de tragédia de TQCP. Mas não seriam a ironia e o distanciamento contrários à definição de Fassbinder de Sirk como o mais terno dos diretores? Não se consideramos que mesmo diretores pós-modernos como Almodóvar e Baz Luhrman, que abusam de referências kitsch e de um senso de humor corrosivo, filmam com sinceridade e paixão genuína. É possível ser crítico e autoconsciente e mesmo assim se entregar ao melodrama.

O que me parece realmente revolucionário em Sirk, entretanto, é colocar a mulher madura no centro. Cary não é incrivelmente bela nem especial; ela é uma dona de casa de classe média como as milhares que escapavam da rotina nas salas de cinema. Sirk oferece fantasia, realização de desejos e a possibilidade de identificação a um público que Hollywood tem por costume ignorar. Até a unidimensionalidade de Rock Hudson pode fazer sentido se enxergada por esse prisma: Cary é a personagem do filme, Ron está ali apenas para servir de objeto sexual e afetivo.

Minha insatisfação com TQCP permanece, entretanto. Tantos sentimentos e reputações em jogo, bem que poderíamos ser presenteados com um pouco mais de intriga, com uma resolução menos óbvia e rápida. Como objeto de estudo acadêmico Sirk se revela fascinante, um autor misterioso quanto a suas intenções e que pode facilmente ser confundido com apenas mais um artesão anódino a serviço de um grande estúdio. Mas se é por sutileza psicológica, retratos em profundidade de personagens e situações que o leitor procura, sugiro que busque em outro lugar. O que TQCP nos mostra é uma imitação da vida mais intensa que a vida mesma, mas certamente menos rica.

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