sábado, 28 de março de 2009

"O céu de Cary" por Hermano Callou



O Céu de Cary
(Tudo que o céu permite, Douglas Sirk, Estados Unidos,1955)



O céu não está ao alcance da mão. O paraíso precisa ser conquistado, mesmo que na imanência dos poderes sociais que procuram estrangulá-lo. E a batalha não é fácil, não pode ser. “Tudo que o céu permite” é um filme de guerra e não poderia ser diferente. Cary (Jane Wyman) é uma viúva rica, Ron (Rock Hudson) um jardineiro pobre; Ron é ainda um jovem, Cary uma mulher de meia-idade: a paixão que nasce entre os dois precisa disputar seu espaço com as forças sociais que interditam seu romance, em uma sociedade profundamente machista e classista. Tal disputa é construída no filme como a trajetória de Cary em tornar-se senhora de si mesma, tornar seu desejo sua própria casa: a guerra aqui é também uma dança. A dança de Cary não poderia ter encontrado lugar mais apropriado para nascer do que esse belo melodrama de Douglas Sirk: uma batalha exuberante entre a vida que procura se afirmar, expandir, transbordar e as forças que procuram negar a vida, apequená-la, guardá-la no fundo da gaveta.


Não por acaso, Sirk abre seu filme com uma panorâmica do ambiente social em que sua história se passa: estamos em um pacato subúrbio americano, onde – sabemos muito bem - o horror se esconde sob a placidez da grama verde. Como naquele famoso plano de “Veludo azul” em que David Lynch desce sua câmera às profundezas do gramado suburbano para nos revelar os insetos monstruosos que ali habitam, Douglas Sirk procura sob aquele mundo idílico os locais onde o poder mostra seus dentes – esses locais não poderiam ser no filme mais inocentes, nem mais terríveis: a reprovação das pessoas mais íntimas, a incompreensão da família, as conversas preconceituosas dos vizinhos. A interdição da sociedade é aqui quase como uma força impessoal, à espreita: da mesma forma que sentimos, ao vermos o genial plano da revelação do rosto do assassino em “Halloween”, que o seu rosto não nos “revela” nada, apenas nos apresenta um imagem qualquer, impessoal, uma espécie de segunda máscara que encobre as verdadeiras forças que movem o assassino, em “Tudo que o céu permite” o “rosto” onde se materializa a condenação é também uma máscara: o “rosto” aqui não significa coisa nenhuma, porque os poderes sociais o antecedem, prontos para se atualizarem em qualquer lugar, seja no choro da filha, nos gritos do filho ou na fofoca da vizinha.


Diante desse quadro, o caminho empreendido por Sirk é o de inventar suas próprias armas de guerra: interessa ao cineasta uma postura eminentemente a favor de seus personagens e contra o entorno social que os oprime. Se todos sabem que “Tudo que o Céu Permite” é um melodrama, um filme de coração grande - gigantesco, para ser mais exato -, um elogio à gratuidade das lágrimas e à beleza do excesso, nem todos dizem o quanto o filme está assentado em um uso extremamente cerebral da mise en scène. Sirk é consciente até a medula da existência de profundas negociações de sentido no modo como se organiza a forma de um filme: o cineasta sabe muito bem que escolher os planos a serem filmados é elaborar um pensamento e esse pensamento será eminentemente político. Isso é notável tanto nas variações de luz no cenário, que trazem à superfície as oscilações e contradições afetivas entre os personagens, quanto na recorrência a certo barroquismo na composição do quadro, em que suntuosos objetos de cena se interpõem entre nosso olhar e os personagens ou entre os próprios personagens, operando como uma estratégia formal para ressaltar a interdição, o não-entendimento e o poder como força que “engloba” aqueles que vivem em seus interstícios.


Pouco tempo depois de ter terminado sob pressão dos filhos seu relacionamento com Ron, Cary ganha de presente uma enorme televisão. No filme, o signo máximo do entretenimento doméstico ganha o sentido de prazer substitutivo, uma espécie de dócil companhia para a solidão das donas-de-casa. Sirk, articulando essa idéia, nos oferece seu plano mais cerebral e, certamente, o plano do filme que mais nos convida às lágrimas: a câmera se aproxima da televisão e nos mostra na tela a imagem refletida de Cary, como que aprisionada dentro do objeto. Ao se ver destituída de seu próprio corpo e tornada mera fantasmagoria, mera imagem enclausurada dentro de um cubículo opressor, Cary pode então contemplar no seu reflexo toda a miséria do mundo. A normatização apresentou aqui sua versão menos feroz, mas ainda terrivelmente violenta: o convite a um falso paraíso - uma solução pacífica para uma guerra que ainda tinha que prosseguir, que ainda precisava prosseguir.


Cary não vai trocar o mar por uma poça d’água. “Tudo que o Céu Permite” termina quando, enfim, a aprendizagem de Cary se completa: o saber adquirido aqui consistiu em aprender a escolher outro lugar para si em relação ao mundo, aos outros, ao Outro - um lugar em que se possa escutar a própria voz. Diferente de certos melodramas recentes que encontraram na mitificação de um amor impossível a solução do conflito, como “Brokeback Mountain” ou “As Pontes de Madison”, Tudo que o céu permite” termina com o casal resolvendo ficar junto, apesar de tudo conspirar contra eles. Nada pode ser tão inusitadamente sublime, portanto, quanto o cervo à janela ao fim do filme, como que anunciando o paraíso conquistado. Paraíso provisório, entrincheirado por um mundo insensível e, ainda assim, cheio de beleza.

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