quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

"Mudanças nos usos cinematográficos do medo" por André Antonio



Filmes assustadores (ou que se preocupassem com monstros e fatos horríveis) sempre existiram, desde a infância do cinema. Mas foi do solo fértil dos anos 80, chamada por muitos de “década perdida”, que brotou um “gênero” bem específico (hoje esgotado) de filmes cujo intuito era dar medo. Acredito, aliás, que a noção do gênero “terror” se formou – ou, pelo menos, se fortaleceu grandemente – nessa época. Vamos à descrição dos pontos principais desse gênero particular oitentista: um serial killer aterroriza um grupo de adolescentes amigos que gostam de rock (este, aliás, acaba dividindo a trilha sonora com as músicas instrumentais “de suspense”) e usam, eventualmente, drogas. Ele mata esses jovens um por um ao longo do filme (o espectador corre o risco de levar um susto a cada morte – muitas vezes insolitamente criativa), ao fim do qual a única sobrevivente é a “personagem principal” – a adolescente CDF, “certinha” e virgem do grupo (a peituda loira e gostosa sempre – sempre – morre primeiro). Esse serial killer não é um homem comum – está envolvido com algo aterrorizantemente satânico ou sobrenatural (nada de realismo aqui, o fantástico é um elemento indispensável), o que faz com que, no último segundo dos finais aparentemente calmos e idílicos, uma pista inquietante seja revelada de modo que o espectador perceba que o serial killer mais uma vez não pôde ser morto – ele voltará na continuação, no próximo longa da “série”.

Quatro dessas séries (Halloween, Sexta-feira 13, A hora do pesadelo e Brinquedo assassino) foram a avenida principal de onde saíram outras ruazinhas (O massacre da serra elétrica, as infelizes continuações – houve três – do Psicose original, as seqüências de O exorcista, Os tomates assassinos, As piranhas assassinas, etc, etc, etc, etc, etc...). Vale a pena percorrê-la rapidamente: O assassino de Halloween é Michael Myers. Quando criança, ele matou, no dia das bruxas, a irmã mais velha. 17 anos depois – justamente no Halloween – ele foge do manicômio onde havia permanecido desde então e, com uma máscara branca inexpressiva, vai atrás de sua outra irmã (Jamie Lee Curtis) e de suas amiguinhas do colegial. A série teve dez filme. Quem aterroriza Sexta-feira 13 é Jason, com sua máscara de rockey. Ele era uma criança retardada que “morreu” afogada no Lago Cristal (num acampamento para jovens norte-americanos no meio do mato) por causa do desleixo dos monitores. Mas, devido a algum pacto demoníaco nunca esclarecido feito pela mãe de Jason, ele não morreu. Nunca morre – volta sempre para matar os novos monitores do acampamento que insiste em ser reaberto, mesmo com esses massacres constantes. 11 filmes no total. A hora do pesadelo é sobre Freddy Krueger, um assassino de crianças que foi queimado por pais furiosos muito tempo atrás. Mas, como vingança, o espírito dele voltou nos sonhos dos novos filhos daqueles pais assassinos. Oito filmes foram feitos. Em Brinquedo assassino, um matador, Chucky, na hora da morte, transfere sua alma para um boneco (ele tinha aprendido uns truques de vodu). Ele aterroriza a vida do jovem Andy, pois, só com a morte deste, pode voltar a ser humano. Cinco filmes. Esses quatro assassinos tornaram-se ícones da cultura pop. Os sucessos estrondosos de bilheteria permitiram a quantidade absurda de “continuações”. A relação dos espectadores com tais filmes estava permeada por uma sensibilidade (“uma das coisas mais difíceis de falar sobre”, segundo Susan Sontag[1]...) que tentarei descrever parcialmente a seguir.

Em primeiro lugar o público majoritário era juvenil (não é à toa a predominância de jovens nas tramas e a trilha sonora de rock). Dentre esse público havia os jovens que eram os fãs do “gênero” (geralmente meninos), outros que eram indiferentes a esses filmes e outros, ainda, que não gostavam, por terem medo ou acharem nojento (geralmente as meninas). Enquanto o primeiro tipo colecionava as fitas dessas séries (a cultura do videocassete ficava cada vez mais forte na época), material relativo a elas e podia assisti-las repetidas vezes, mesmo solitariamente, os outros tipos tinham contato com os longas na maioria das vezes em grupo. A experiência de ver o filme de terror em grupo era especial – tanto no cinema quanto, principalmente, numa “farra” na casa de um amigo. Uns jovens ficavam pregando sustos nos que tinham medo, ficavam comentando o filme, lembrando dos anteriores e conjecturando sobre os futuros, solucionando o mistério da trama, contando histórias “verídicas” que davam medo... esse tipo de experiência, de diversão, pode perdurar (mesmo que de forma um tanto diferente) hoje em dia, mas a gênese dela foi certamente na década de produção desses filmes. E, afinal, o que mais fascinava nestes, o que suscitava a sensibilidade por eles requerida? Citarei alguns elementos específicos: em primeiro lugar o próprio mistério sobrenatural das tramas (nunca de todo revelado; o roteirista não tinha essa liberdade porque a empresa produtora sempre queria apostar numa continuação); a permanência de personagens de longas anteriores da série (quando era o mesmo ator, melhor ainda[2]), principalmente com uma mudança “psicológica” (com a experiência traumática do filme anterior, o personagem está mais “maduro” e “cauteloso”...); sua intertextualidade: imagens (e outras referências) dos filmes anteriores da série sempre apareciam nos longas novos, como piscadelas para quem a acompanhava.

Pode parecer estranho eu citar Aristóteles num texto sobre filmes de terror oitentistas, mas é que o filósofo, na famosa Poética, diz que, na arte, ao contrário da vida real, podemos olhar para cadáveres ou para coisas horrendas em geral de uma maneira segura (ou seja: podia-se, no caso em discussão, ter o mesmo medo que alguém sendo assassinado por Jason, só que sem correr o risco de levar facadas). O medo é o sentimento principal que permeava esse gênero específico de que estou falando. E ele (e o modo como a arte o manipula) pode ser a chave para se investigar dimensões cruciais da vida social, ideológica e inconsciente (no sentido psicanalítico) de certas épocas. Daí meu desejo de um livro aprofundado sobre uma época em que o terror – o medo, o sangue, o susto, o horrível – começou a fazer um sucesso midiático nunca visto antes. O que esse gênero, com essa configuração específica tão bem sucedida, revelava? E, ainda: o que significa a decadência desse gênero (além de, é claro, o esgotamento e o desgaste de seus clichês), de modo que esse tipo de filme desperta, hoje, gargalhadas e outra coisa é que suscita medo em nossa sociedade e no público contemporâneo? Claro que não pretendo responder a essas perguntas num texto como esse, mas as respostas podem passar por análises (à la Fredric Jameson) do “medo do outro” em certas épocas sociais e o modo terapêutico ou neurótico com que a mídia de massa trabalha com ele. Claro, esse gênero, vez ou outra, retorna nos dias de hoje, mas apenas em chave nostálgica e/ou paródica[3] (vide, por exemplo, a trilogia Pânico, que trabalha conscientemente – e ao mesmo tempo com reverência e saudade – os clichês do gênero. A trilogia foi feita na década de 90, quando a crise de tal gênero fez com que o cinema de terror entrasse em momentânea estagnação; Halloween H20 e O filho de Chucky, aquele mais nostálgico, este mais irônico; Freddy VS. Jason, uma “homenagem” a esses dois vilões, etc, etc...).

Mas, passada a estagnação a que eu me referi, o cinema massivo de terror pareceu enveredar por novos territórios (claro, sem abandonar totalmente tudo o que ele aprendeu com aquele “gênero oitentista”). Agora parece que o contemporâneo requer filmes mais “limpos” e sutis, como mostram alguns excelentes longas de espírito recentes (O sexto sentido, Os outros, O chamado, A sétima vitima, etc...); ou, quando é muito sangue o que se quer, essa “limpeza” sai da trama e entra numa espécie de “realismo” (basta citar a série Jogos mortais, que já conta quatro filmes – e o quinto já tem estréia definida[4]). Mais uma vez: o que é possível descortinar com essas mudanças? Sem responder, passo a outro nível da discussão: como no pós-modernismo a prática do Grande Divisor (Huyssen) vem, cada vez mais, se extinguindo (não se sabe ao certo, por exemplo, se M. Night Shyamalan – um dos destaques do cinema de medo atual – é um “massivo” se utilizando da alta cultura ou vice-versa; mas talvez seja até hora de abandonarmos essas categorias...), é relevante darmos uma rápida olhada nos usos mais interessantes que o cinema vem fazendo do medo, recentemente, já que ele começou a ser visto, por artistas cuja preocupação primordial não é o mercado, como um material rico a ser investigado.

Aqui vai uma rápida enumeração: 1) Em vários de seus filmes, David Lynch parece se utilizar com sucesso do medo, em tramas – ou em “fiapos” delas – onde pessoas inicialmente bem centradas e “definidas” psicologicamente começam a entrar em contato com algo muito grande e misterioso, que pode ter a ver com o inconsciente (aqui sombrio e assustador), e cujos principais sinais são a desestruturação dos signos da cultura de massa que permeiam o contemporâneo e um clima onírico e surreal. 2) Alguns filmes de David Cronenberg (principalmente os menos novos) se utilizam com sucesso da gramática massiva dos filmes de terror, mas sem nunca deixar de respeitar certas obsessões do diretor – que parecem indicar imagens de um mundo decrepto, com corpos derretendo como insetos num universo onde a tecnologia parece criar uma forma nova de grotesco. 3) Segundo Slavoj Žižek, para entendermos o subtexto de um filme de terror, basta retirarmos o elemento fantástico da trama sem sairmos dela. Mas Lucrecia Martel já fez isso por nós (principalmente em A menina santa, um filme sobre desejo cuja direção de arte cria um clima que não deve nada aos melhores filmes de espírito atuais). A diretora, em, seu mais novo longa (A mulher sem cabeça), ainda inédito no Brasil, flerta mais “descaradamente” ainda com fantasmas. E seu novo projeto (El eternauta) é baseado em quadrinhos de ficção científica cuja história se passa num futuro escuro e desolador com a presença de extraterrestres. 4) Os créditos finais de Los muertos (Lisandro Alonso) são idênticos (fundo preto,letras vermelhas, música tensa heavy metal) àqueles dos filmes de terror dos anos 80. Eles só vêm a confirmar o sentimento que perpassa o filme todo: uma tensão assustadora criada por um trabalho de som primoroso cujo intuito parece ser mostrar ao espectador uma dimensão sócio-cultural diferente que, apesar de sempre reprimida, quer com força vir à tona.

Walter Benjamin[5] diz que é preciso escrever uma história da literatura esotérica, sob pena de revelações cruciais da história cultural e social serem descortinadas. Aqui faço um segundo apelo: a ciência dos usos que a mídia fez e faz do medo pode iluminar dimensões importantes das relações entre cultura e sociedade. Se isso é verdade, é preciso olhar atentamente, também, para o modo como vários cineastas contemporâneos (apenas quatro citados no parágrafo anterior) vêm moldando o terror. Eles parecem apontar para caminhos estéticos mais amplos...


NOTAS

[1] Em “Notes on camp”. Ver: http://interglacial.com/~sburke/pub/prose/Susan_Sontag_-_Notes_on_Camp.html
[2] Era freqüente um personagem X ser representado por outro ator na continuação de um desses filmes. Nesses casos, na maioria das vezes, pegava-se um novo ator parecido com o antigo e o personagem participava pouco da nova trama. Houve, porém, um caso bizarro em A hora do pesadelo 3. A personagem de Patrícia Arquette permaneceu no 4, mas foi interpretada por outra atriz, inacreditavelmente diferente (só a cor do cabelo era a mesma). Interessante também eram as “desculpas” inventadas porque um personagem saía da seqüência, já que determinado ator não pôde (ou não quis) fazê-la. “Onde está fulano? – Um tijolo caiu na cabeça dele...”.
[3] De fato, para Linda Hutcheon, o pós-modernismo é precisamente esse misto de nostalgia e ironia. Ver: http://www.library.utoronto.ca/utel/criticism/hutchinp.html
[4] Ver: http://www.entretendo.com/jogos-mortais-5-tem-data-de-estreia-definida/
[5] No ensaio “Surrealismo: o último instantâneo da inteligência européia”.

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