Paris, em 1970, era uma cidade para onde convergiam muitas pessoas de diferentes partes do mundo, numa rota de fuga dos regimes de exceção e/ou das misérias que as civilizações do hemisfério Sul herdaram de décadas de regime colonialistas (promovidas, inclusive, pela própria França) em busca de um lugar ao sol. É nessa Paris, mítica e politizada, que se ambienta o filme “A Culpa é do Fidel”, da cineasta Julie Gavras.
Logo na primeira cena Julie nos apresenta Anna em seu universo mais que particular: em um banquete de casamento em uma mansão no interior da França, ela ensina primos e primas a usarem talheres para comer frutas. Esta ‘pequena dama’ de nove anos de idade nos convidará a re-visitar um tempo de mudanças que, há cerca de 40 anos, marcaram o mundo de maneira inquestionável (!), alterando profundamente concepções e práticas sociais, políticas e culturais. Um mundo que neste filme – como na vida real – constrói o mundo interior desta e de muitas outras Annas, ao mesmo tempo em que é reconstruído por este.
O enredo é simples: Anna e seu pequeno irmão François são criados na tradição burguesa, com direito à educação em colégio de freiras e vivem com seus pais: a jornalista Anna e o advogado espanhol Fernando.Com eles/as também vive Filomena, empregada cubana auto-exilada em Paris. Tudo parece correr bem nesta família até a chegada da irmã de Fernando, Marga, e sua filha, Pilar. Depois que o marido de Marta, Quino, foi assassinado pela ditadura de Franco, ambas vêm passar uns tempos com a família até conseguirem um apartamento para se estabelecerem na cidade.
Essa presença provoca uma reviravolta no interior da família de La Mesa, abalando certezas, convicções, valores, sentimentos de segurança. E transforma-se no mote para se recuperar memórias, revirar culpas não expiadas, a partir das quais seja possível assumir valores e causas ‘secretas’ e, com isso,‘fazer as mudanças que precisam acontecer’, como Fernando explicaria, mais tarde, a seus filhos. Mudanças que dizem respeito à responsabilidade de cada pessoa para com a construção de um mundo justo e solidário.
Assim, por insistência de Marie, o casal parte em viagem ao Chile, às vésperas da eleição à presidência de Salvador Allende. Ao retornarem para a França, se envolvem em um grupo militante de apoio à democracia aquele país. Ao mesmo tempo, Marie aproxima-se de um coletivo feminista, envolvendo-se na defesa do direito ao aborto legal e seguro. A partir dessas duas situações a situação da família muda para sempre e, por meio desses fatos, teremos a chance de acompanhar Anna nas tentativas de romper os limites seus e do contexto familiar e escolar para refletir e criar uma compreensão muito própria do que se passava à sua volta.
Este talvez seja o maior – embora não o único –trunfo do filme de Julie Gavras: a capacidade de recriar, em em uma narrativa enxuta, a dialética que existe entre os processos históricos de transformação social com experiências de vida tão singulares. Não por acaso, ela se arrisca a explorar a tênue fronteira entre o espaço público (lugar por excelência da política) e o espaço privado (lugar da intimidade). Dessa maneira, ela consegue dar uma dimensão cotidiana à História, ao mesmo tempo em que contextualiza fatos corriqueiros em um tempo histórico.
Assim, vemos que o envolvimento de Fernando e Marie na luta solidária à democracia na América Latina é movida, primeiramente, pela necessidade de superar um remorso de Fernando por ter abandonado seu país e família num momento extremamente difícil. Já Marie se envolve com as lutas feministas após tentar ajudar a cunhada Isabelle que, infeliz no casamento, vive solitariamente o dilema do que fazer frente a uma gravidez indesejada. Transcendendo seus pequenos dramas familiares, Marie e Fernando tomam nas mãos o desejo de construir outras formas do viver, reconhecendo-se como sujeitos da História.
Esta é a chave que abrirá portas para um novo e difícil recomeço. Talvez não por acaso, a diretora tenha decidido por tratar do tema a partir do olhar de uma menina que vive a pré-adolescência – período em que as pequenas certezas que temos e nas quais buscamos alguma segurança se transformam em imensas dúvidas e muitas, muitas perguntas.
Reside aí um segundo e importante trunfo: ao invés de optar pelo discurso panfletário para falar de temas contundentes e atuais, Julie opta por combinar lirismo e humor franco para costurar a narrativa de um filme que se propõe a ter densidade política. Nada escapa à sua verve: a cineasta questiona igualmente o conservadorismo da burguesia francesa, mas também as contradições e dogmatismos presentes na militância esquerdista. Reserva às intervenções argutas e inquietantes de Anna momentos impagáveis de riso aberto. Como a cena de um diálogo entre Anna e a empregada Filomena. Esta, depois que a família se muda para um pequeníssimo apartamento, explica a Anna porque elas ‘são iguais’: “Eu fui expulsa de casa por Fidel”, explica Filomena à Anna, “e você teve que sair de sua casa.” Ao que Anna prontamente responde: “Ah! Então, a culpa é do Fidel!”
A nova moradia está sempre envolvida em sombras e parece ser formada por um pequeno labirinto de corredores abarrotados de caixas de mudança. Nesse ambiente obscuro, Anna caminha sem conseguir distinguir exatamente o que se passa e porque sempre há tantas pessoas em reuniões madrugadas afora e entrevistas 'secretas'. Transformada em 'aparelho' político a moradia se torna, então, uma síntese da simbiose entre as dimensões pública e privada da vida. É quando, definitivamente, a política invade o espaço privado ou, por outro lado, seria o espaço privado abrindo suas portas para o fazer político.
Neste ambiente singular, o diálogo entre Anna é emblemático também dessa relação entre a política e a vida privada. Sendo este um filme que pretende romper essa dicotomia, Julie Gavras faz uma jogada de mestre: ela confere às empregadas domésticas um espaço secundário no filme, numa crítica à sua invisibilidade no mundo real, mas resgata a sua importância, por meio da relação que elas mantêm com as crianças. Depois que Filomena perde o emprego, outras empregadas, também exiladas, se farão presentes: a grega Panayota e a vietnamita Mai-Lahn. Cada uma, à sua maneira, introduzirá no universo de Anna, costumes e informações, que a auxiliarão na construção de uma outra percepção acerca do mundo, das pessoas e das instituições como a escola, por exemplo. É com Panayota, por exemplo, por meio dos mitos gregos, que Anna descobre que existem versões sobre a criação do mundo diferentes da bíblia. E é com Mai-Lahn, por meio de uma fábula chinesa, que descobrirá o sentido e o significado da solidariedade – valor que seu pai havia tentado, em vão, ensinar os filhos, levando-os a uma passeata contra a ditadura de Franco.
Aos poucos vamos nos dando conta dos esforços de Anna para compreender o que se passa e atuar segundo sua própria visão. Movida pelo sentimento de solidariedade à sua turma, soma-se a esse coletivo para responder a uma questão proposta pela professora. Entretanto, como a resposta estava errada, a solidariedade se transforma em frustração. Confusa, Anna conta o episódio aos pais e desabafa: “Agora não confio mais na solidariedade”. Fernando responde com outra perguta: “Será que você não confundiu solidariedade com estar junto à maioria?” Outra vez Anna: “Mas como ter certeza de não estar confundindo? Vcs sempre têm certeza de tudo?” Marie e Fernando trocam olhares cúmplices.
Para Anna, o contato com as diferentes concepções do mundo, por meio do apoio à democracia no Chile ou do debate sobre temas polêmicos e tabus como a sexualidade e o aborto, se dá em meio a um conjunto de mudanças que lhe afetam profundamente o cotidiano: na nova casa não há mais um espaço próprio, os padrões de consumo já não são os mesmos, a proibição às aulas de religião e, mais tarde, a mudança para uma escola pública e laica.
Ao perceber que seu mundo particular se desmorona aos poucos diante de tantas incertezas, Anna move-se de maneira também incerta. Ora recusa-se a aceitar aquilo que, inevitavelmente, irá ocupar esse espaço que se vai esvaziando: fica brava, foge de casa, nega-se a entregar-se a evidências de que a vida (e as pessoas) é cheia de contradições. Ora entrega-se, não sem um certo prazer movido pela curiosidade, de fazer perguntas perturbadoras, desafiando o que as pessoas adultas – de conduta conservadoras ou transgressora – tentam lhe ensinar.
Vencer as próprias resistências é sinal de amadurecimento. Aos poucos, dentro de um espaço de tempo muito próprio e do alto de seus nove anos, Anna vai superando as perdas e aprendendo que sobre incertezas se constrói boa parte de nossas decisões diárias. Assim, segue desafiando-se e desafiando as instituições: seja a família, sejam os grupos de resistência política, a escola, a igreja. O último movimento desse tour-de-force é convidar o pai para uma viagem à Espanha.
Diante da pergunta de Marie: “Será uma viagem difícil – você tem certeza de que quer ir?” Anna não vacila. Juntos, ela e o pai farão uma espécie de resgate de sua história, que se confunde com as memórias de cada um: para ele, aquilo que foi deixado pelo meio do caminho há muito tempo atrás; para ela, a possibilidade de estabelecer novas conexões com o que estava vivendo naquele momento. Sem dúvida, para ambos, a certeza de que essa é uma viagem só de ida em direção a um futuro incerto, mas que precisa estar em movimentação.
Ao experimentar essa espécie de ‘tudo-ao-mesmo-tempo-agora’, com tanta intensidade, Anna vai se dando conta de que estão ali momentos que marcarão a sua vida para sempre, assim como marcaram profundamente a História nestas últimas décadas.
De uma certa forma, “A Culpa é do Fidel” nos relembra que este ‘tudo-ao-mesmo-tempo-agora’ continua vivo. E se Maio de 68 foi um marco do período, certamente não é a sua mais completa tradução, pois esta é uma história sem fim. Para mim, contemporânea de Anna, deixar a sala de cinema após este filme nos traz ao menos uma certeza: “Sei que nada será como antes / amanhã”. Isso reacende a utopia de que é possível sacudir as estruturas. E se a culpa é do Fidel, este deve ser um desejo e um prazer de todos/as nós.
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