domingo, 4 de julho de 2010

Inclassificável e imprevisível, por Aaron Athias


Há quem diga que o processo de transposição das subjetividades da vida de um realizador ao filme é inerente ao processo metodológico de criação do filme ou que, na verdade, qualquer processo criativo vai carregar as marcas, por mais ínfimas e sutis que sejam, da vida do pensamento de seu criador. Pensei muito sobre esta questão ao pesquisar sobre o filme Cul-de-sac (1966) de Roman Polanski. Das poucas fontes que encontrei, em todas observei a constatação de que a película tinha um forte aspecto autobiográfico no que tange os personagens George (Donald Pleasence) e Teresa (Françoise Dorléac). Antes de entrar mais a fundo nesse ponto, acredito que seja melhor contextualizá-los no enredo.

Encalhado em seu carro roubado, Dickie (Lionel Stander) se vê obrigado a ajudar seu comparsa ferido Albie (Jack MacGowran). Nas redondezas da praia encontra um castelo, aparentemente desocupado, mas que logo prova ser habitado pelo estranho casal George e Teresa. Armado, Dickie começa um jogo de ameaças para conseguir tudo que quer do casal assim como se prepara pra encontrar com seu chefe Katelbach. A visita não acontece, ao invés disso, familiares de George chegam de surpresa ao castelo. Enquanto Dickie, Teresa e George fingem normalidade, Teresa se aproveita da situação para reverter a dominação de Dickie e diz às visitas que o gangster é “o novo mordomo”. Nessa parte do filme, um tanto quanto cômica, destaco a atuação de Lionel Stander fingindo ser o mordomo James. Como num jogo de gato e rato, Dickie novamente volta a aterrorizar o casal com a partida dos visitantes. O clímax se encontra nessa parte final do filme, em que uma brincadeira de Teresa mal interpretada por Dickie, sua reação e a mudança de atitude de George mudam o rumo dos três personagens.

Autocentrado nessa tríade, o filme praticamente escanteia qualquer espécie de relação com o mundo exterior, de modo que os personagens, como a família de George que o visita inesperadamente, são quase que figurantes e secundários, servindo somente para alimentar uma tensão pré-existente entre os principais. Outro exemplo desse 'escanteiamento' é o fato de não ser explicado em nenhum momento os detalhes da missão fracassada de Albie e Dickie. Deduzimos que são criminosos por estarem com um carro roubado e sabemos que Katelbach é seu chefe, mas Polanski faz questão de não ir a fundo nesses detalhes, prevalecendo em toda a trama a relação do trio. Aliás o filme como um todo é um recorte. A vida de todos os presentes existe e termina no período retratado pelo longa. O que veio antes não interessa.

Essa relação entre Teresa, Dickie e George, o foco do filme, é sem dúvida uma das mais estranhas que já vi. De um lado Dickie, o criminoso agressivo e ao mesmo tempo brincalhão que em um primeiro momento aterroriza o casal. Do outro lado, a impetuosa e sensual Teresa passa a história toda reclamando de George, pedindo para que ele tome uma atitude contra Dickie. Percebemos, porém, que ao mesmo tempo em que Teresa odeia a figura de Dickie, paradoxalmente ela também se sente atraída por ele. Isso é claro na cena em que ela vai ajudá-lo a enterrar Albie. Por fim, temos o George, o afeminado e acovardado marido de Teresa, que não percebe o crescente desinteresse em que sua mulher tem alimentado por ele.
Medo, amor, ódio, e amizade se confundem de uma maneira que é impossível prever o desfecho do trio.


E essa imprevisibilidade faz com que Cul-de-sac não se encaixe em nenhum dos arquétipos pré-estabelecidos de gêneros cinematográficos. A oscilação entre suspense, drama e comédia fazem com que críticos e estudiosos consideram o longa de Polanski o mais inclassificável e imprevisível de toda sua filmografia.

Foi o segundo filme de Polanski rodado na Inglaterra com boa parte da equipe de produção sendo inglesa. O orçamento relativamente grande e o espaço para maior liberdade criativa se deu às custas do sucesso de Repulsion, filmado no ano anterior. Gozando de uma autonomia maior no processo criativo, Polanski aproveitou um roteiro de 1963 chamado “When Katelbach Comes” para o novo longa.

O roteiro de Cul-de-Sac é uma história de relações interpessoais claramente inspirado nas obras Samuel Beckett, cujas peças continham casais mal resolvidos, de personalidades opostas e com expectativas individuais divergentes. A relação entre Teresa e George se encaixa perfeitamente nesse quadro. O casamento dos dois apresenta-se frágil e temperamental. E aqui voltamos ao aspecto autobiográfico: o casal George e Teresa são comparados ao próprio Polanski e o breve período em que esteve casado com a atriz polonesa Barbara Kwiatkowska. Muitos dizem que o traço abestalhado e apaixonado de George quando próximo de Teresa é uma característica de Polanski enquanto marido da atriz, que por sua vez também tinha uma personalidade muito similar a de Teresa. Enfim, uma relação instável entre duas pessoas muito diferentes e fadada a findar-se.

Aliás, a instabilidade das relações é, ironicamente é uma das poucas características do filme que perdura do início ao fim. Não somente entre o trio, mas entre o trio e os agentes externos. Consequentemente a tensão entre os personagens é outra constante.

Sabe-se também que o que contribuiu para o clima tenso do filme foi o próprio clima tenso por detrás das câmeras. O perfeccionismo de Polanski teria abalado as relações entre os membros da produção do longa. O diretor não se entendia bem com Stander (Dickie do filme), não gostava do ar “estrela de cinema” de Dorléac e se assustou quando viu Pleasence de cabeça raspada nas vésperas das gravações. Além disso, Polanksi queria filmar tudo de uma vez. A cena em que George conversa bêbado com Dickie na praia foi uma das maiores tomadas de cena na época. Por causa do seu perfeccionismo, Polanski quase matou Dorléac de hipotermia ao querer gravar a cena dela tomando banho nua no mar pela terceira vez. Ironicamente, um ano após as filmagens, Dorléac morre em um acidente automobilístico.

Cul-de-sac, é uma expressão francesa mais ou menos equivalente ao nosso 'beco sem saída'. O filme faz jus ao seu nome durante boa parte do filme, já que George e Teresa se tornam reféns de Dickie. Porém com a inversão de papeis da metade pro fim, tudo se torna confuso. Talvez beco sem saída significa uma prisão figurada onde as relações dos três personagens se encontram, representando assim a convivência forçada entre os três.

Independente do nome que leva e do gênero que ele porventura seja classificado, Cul-de-sac deixa a desejar quanto ao enredo, mas compensa no drama psicológico e na construção dos personagens. Ele é acima de tudo uma história angustiante sobre personalidades excêntricas e suas relações, além de ser carregado de humor negro, ironia e tensão do início ao fim.

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