sábado, 29 de maio de 2010
"Rapadura também é doce, mas não é mel!", por João Roberto Cintra
Mãe e filha que se detestam. Flerte entre uma menina (branca) e um marinheiro (negro). Aberta discussão sobre homossexualidade. Tudo isso em um filme feito há quase 50 anos! Como uma obra com todos esses elementos pode se chamar “Um gosto de mel”?
Dirigido por Tony Richardson, e baseado numa peça de Shelagh Delaney (que co-assina o roteiro), o filme é um primoroso exemplar dos “dramas de pia e cozinha” que retratavam o universo da classe operária inglesa, tema de vários outros filmes dessa época. Em especial o filme traz uma mulher como protagonista (mais uma ousadia), colocando esse universo feminino (tão sagrado em épocas anteriores por donas-de-casa compassivas) mais realista, ordinário – e até cruel.
Jo (Rita Tushingham) é uma adolescente pouco graciosa e até deslocada. Aparece logo no início do filme lavando o rosto, olhando-se no espelho, desajeitada e infantil. Mora só com sua mãe, Helen (Dora Bryan), que não vive exatamente como seu papel social designaria: mãe solteira, chegada a bebida e festas, por vezes promíscua, parece viver a adolescência tardia e não sente responsabilidade pela filha. Em resumo, Helen seria aquela colega de classe de que toda mãe imediatamente mandaria a filha se afastar quando a conhecesse. Ora Jo vive seu momento: como meninas da sua idade, diverte-se na escola e tem seus namoricos – é quando conhece o marinheiro negro (Paul Danquash) – um escândalo que ela parece não se importar – e com ele passa uma noite. Ora ela entra em conflito com a mãe rebelde, numa inversão de papeis. Os diálogos entre as duas são realistas ao ponto de se tornarem cruéis – ou amargas – saídas da boca de uma mãe, cândida figura da cultura cristã ocidental.
Jogada no mundo por Helen (que se casa e não leva a filha consigo), Jo conhece Geoffrey (Murray Melvin), com quem passa a morar – que logo se torna seu heroi, a segurança que nunca conheceu antes. Poderia ser o galã... se não fosse gay. E é surpreendente a aparição de um personagem homossexual nessa época, com tanto destaque e tendo sua sexualidade tratada de forma tão aberta – mesmo que seja para ouvir palavras maldosas da matriarca e seu marido da vez. Verdadeiro salvador de Jo, quem a tira de seu mundo ordinário e põe um pouco de sabor em sua vida, e com a qual se importa de verdade, é posto para fora de casa com o retorno de Helen, após o fracasso de mais um casamento, levando a doçura que Jo e o bebê que esperava poderiam experimentar. Pobre Jo. Involuntariamente grávida, seria mãe sem saber a quem copiar – a não ser a mãe solteira que teve, com quem nunca soube lidar.
Todos os personagens, tão carentes, mas sem saber como agir com o outro, se atraem por essa ânsia de contato, mas se repelem pelo gosto agridoce do sentimento, que só os pequenos gostam sem procurar entender – como uma sobremesa antes do jantar. Talvez isso explique a recorrência de crianças brincando ao longo do filme, além do tema musical infantil usado. Ou mais que isso. Do começo ao fim do filme, mesmo com todas as experiências e turbulência, há um tom infantil na figura de Jô, boca semiaberta, indagando o mundo – como na imagem congelada do menino Doinel, no final de “Os incompreendidos”, de Truffaut. Doinel e Jo. Infância pouco tranqüila e com adolescência interrompida por uma maturidade precoce, desorientada e indesejada. Rapadura também é doce, mas não é mel.
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