sábado, 29 de maio de 2010

"Blow Up" por Renato Souto Maior


A visão artística condicionada a um olhar específico através de uma lente serve como elucidação para o verdadeiro sentimento de poder que tal artifício - o da câmera - pode proporcionar. Em Blow Up Thomas, fotógrafo aparentemente renomado, permanece quase todo o tempo em seu pedestal de artista arrogante munido de sua arma fotográfica impiedosa. Do alto de sua consciência burguesa estabelecida, consolidada e até então imune a qualquer tentativa de quebra desta condição, ele seguirá coerente a sua posição “privilegiada” de burguês poderoso. Em seu estúdio de moda Thomas trava batalha com suas pseudo-modelos suficientemente estúpidas e incapazes de agradar por completo o artista; ele impõe de forma grosseira e seca seus comandos, e ordens. Em uma das sessões fotografa a exaustão uma de suas modelos, em uma interação quase sexual, onde ele se ajoelha sobre ela, grita, ordena posições, em tom de cansaço, para logo em seguida sair imediatamente em retirada de descanso em seu sofá. O controle, obviamente, não ousa sair de suas mãos; o tem a todo instante. Até o dia em que, vagando por um parque, em busca de alguma coisa que fuja daquele mundo plástico de seu estúdio, depara-se com mulher acompanhada a dançar e correr pela grama. Aquilo desperta um interesse fulminante no fotógrafo, que com sua câmera em punho registra uma série de reações e momentos da desconhecida; esta, que ao percebê-lo, corre em sua direção e em tom de desespero clama pelo negativo. A partir daí um jogo de sedução e tortura emocional se sucederão no estúdio de Thomas, em um dos poucos momentos do filme onde o diálogo se faz complemento significativo da ação.

A trama subseqüente ao encontro com a mulher do parque se resume em uma virada de perspectiva do protagonista; sua até então inconteste arrogância encontra-se passível de mudança, e as fotos da mulher, uma obsessão sem volta. O estado de conforto antes garantido acaba por estabelecer novas perspectivas. Não é uma mudança brutal e completa, mas o vislumbre de algo além, que não estava ali. E tudo isso vem à tona por meio de uma foto em particular, do parque, onde Thomas vê, na verdade, um homem deitado no chão, o que depois se revelará em alguém assassinado. Não existe mais ligação com a mulher, ela foi embora carregando aquilo que pensa ser o negativo tão desejado, e não apareceu mais. Ele a procura, mas sem sucesso. Então lhe resta, apenas, o amontoado de fotos daquele dia, e uma tentativa de solução, também frustrada. Mas a mudança se dá pelo incontrolável; justamente pelo “inesperado”. Acostumado ao controle total de sua obra, por ser a câmera, e “enquadrar” sua visão das coisas nas imagens, aqui, pela primeira vez, a consciência sobre sua imperfeição grita. Ao fazer recortes e ampliações das imagens Thomas redescobre uma dimensão até ali desconhecida por ele; é como se até em uma imagem supostamente comum houvesse algo a se descobrir, escondido, em sua composição; é tudo uma questão de olhar. A grandiosidade do artista e de seu intencional controle sob o ambiente ao seu redor tomam proporção menor ao se aproximar da imagem capturada.


Ao realizar a nova perspectiva, Thomas vai em busca de respostas, decepcionando-se com o que vê e encontra pela frente. Em uma festa “burguesa” onde pessoas se drogam e deixam-se levar completamente – em uma óbvia crítica a tal da burguesia alienada e drogada – ele não se identifica mais como integrante daquele grupo, existe um desconforto claro ali. Logo depois, quase ao final do filme, ele reencontra um grupo de supostos “baderneiros” de rostos pintados, palhaços, que simulam um jogo de tênis em uma quadra; praticam o esporte sem bola ou raquete, “interpretam” a partida. Thomas observa de perto o grupo e em um determinado momento lhe pedem para recuperar a bola recém caída aos seus pés; mas não há bola, primeiramente pensa Thomas. Não importa, pois, como ele mesmo descobrira há pouco, nada é o que parece, totalmente. Assim, ele abaixa-se, segura a “imaginária” bola em uma das mãos, e a arremessa, entregando-a novamente ao grupo. Naquele momento Thomas situa-se totalmente na nova realidade de sua vida.

Antonioni orquestra com excelência todos os elementos de Blow Up; desde a trilha curta, mas marcante, até a fotografia viva. Seu filme se desenrola na típica e moderna Swinging London; os penteados, a banda de rock, a moda, a rua: tudo remete ao momento. A construção de Thomas denuncia a vertente crítica do diretor em relação à burguesia londrina; o personagem é arrogante ao extremo. Sua pretensão artística é denunciada como algo falso; na passagem onde ele saí de uma fábrica no meio da massa operária, meio que misturado, apenas para conseguir fotos pseudo-políticas possivelmente integradas a um livro futuro a ser lançado; é colocada, então, essa questão da fotografia de arte como refúgio do assumidamente fotógrafo de moda, de publicidade, em uma relação com uma certa culpa burguesa em ser o que é, onde o escapismo artístico e verdadeiro serve como alívio para o que se é. O trato de Thomas com as mulheres, em especial na sequência onde ele exerce mais um de seus jogos perversos com duas pretensas modelos, nem um pouco vitimizadas por Antonioni, em uma clara relação de troca por sexo, e só. É como se ele não fosse tão culpado assim, e pudesse justificar seus atos pelo medíocre argumento de que “não criou o mundo”; ele apenas reproduz seu poder “socialmente” permitido sob supostas vítimas que não hesitam em participar do sistema e desenrolar seus papéis de subservientes. A crítica a burguesia existe, mas sem vitimar em demasiado o outro lado, supostamente controlado por completo. A perversidade da relação se faz legítima por uma consciência, mesmo que limitada, dos dois grupos. Thomas percebe algo novo, mas não necessariamente mudará. Possivelmente não o fará, tornando-se mais amargurado, apenas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário