
O diretor Joseph Losey, norte-americano de tendências esquerdistas, fugiu de seu país com a carreira acabada após ser listado como “subversivo” no período McCarthista, no início da década de 50. Exilado na Inglaterra, Losey reinicia penosamente sua carreira e, eventualmente, trava contato com o escritor e dramaturgo Harold Pinter, também de forte tendência política e esquerdista. De modo independente, ambos já tinham interesse de adaptar a obra literária “The Servant”, de Robin Maugham e, depois do contato, surgiu uma prolífica parceria artística que resultou em três filmes: “O Criado”, “The Accident” e “The Go-Between”, que constituíram todos sucesso de crítica e trouxe fama internacional para ambos, bem como diversos prêmios (entre Bafta, Cannes e outros).
A trama: em Londres, um rico e jovem aristocrata britânico, Tony (James Fox), procura um mordomo à moda antiga para lhe suprir todas as necessidades, agora que seu pai faleceu e que comprou uma nova casa. Apesar da decadência da função do mordomo já naquela época e do estilo de vida jovem e irreverente de Tony, o encontro com o tradicional mordomo Hugo Barret (Dirk Bogarde) lhe confirmará que um gentleman é essencial em sua legitimação como aristocrata e que não poderia haver ninguém mais adequado ao cargo que ele. Mas o que lhe parece ser um empregado completamente devotado vai mudar bastante, numa inteligente lógica de deturpação da hierarquia clássica.
Apesar do bom relacionamento que se estabelece entre Tony e Barret – principalmente por parte do primeiro – o exato oposto acontece entre Barret e Susan: mesmo antes de conhecê-lo, Susan se sente desconfortável com a idéia de um mordomo, e, tendo-o conhecido, a antipatia se formaliza, de ambos os lados, através dos pequenos incidentes domésticos. Susan se sente incomodada com a presença e por vezes a falta de privacidade que acarreta a existência de um mordomo na casa e, mais tarde, com a crescente influência e dependência de Tony por ele, fazendo-a sentir-se de certo modo ameaçada, criando-se uma pequena batalha muda de dominação e poder entre ela e Barret.
Mais tarde, Barret introduz na casa de Tony sua irmã Vera, para trabalhar como empregada. Vera, bem menos formal e educada que Barret, irá logo se aproximar de Tony e conquistá-lo. Mais tarde, porém, Susan e Tony descobrem Barret e Vera na cama e ele revela que não irmãos e sim amantes. Ele ainda revela o caso que Tony também tem com Vera, destruindo seu o relacionamento dele com Susan. Hugo e Vera vão embora, seguidos por Susan.
Hugo volta, mais tarde, a trabalhar na casa, pela clemência de Tony, dizendo ter sido enganado por Vera. Tendo retornado, o relacionamento dos dois mudou dramaticamente: ao contrário da fria, cordial e confortável ligação patrão-empregado, há uma intimidade conflituosa entre os dois que desequilibra a hierarquia tradicional. Agora mais próximo de Tony e tendo tirado Susan do caminho, Hugo se entrega com força à destruição psicológica de seu patrão, no ambiente claustrofóbico e angustiante que se tornou a casa, onde os dois vivem reclusos. A tarefa não é tão difícil para um homem habilidoso como Barret, que tem em mãos um jovem inexperiente e com feliz interesse por álcool. Através dos jogos infantis travados entre os dois, com efeitos psíquicos assustadoramente amplificados pela reclusão em que se encontra Tony, e na exploração do seu vício pelo álcool, Barret consegue, por fim, sua vitória, transformando Tony num ser bizarro e decadente, que cortou completamente seus laços com qualquer pessoa, exceto Hugo, o fiel mordomo que sempre sabe o que lhe apraz e que lhe supre todas as necessidades.
Do ponto de vista estilístico, é clara a influência de Pinter, reforçada pela direção de Losey. Há uma forte presença de diálogos superficialmente banais que possuem importância apenas pelo subtexto, além do freqüente uso do silêncio e das expressões faciais como instâncias comunicadoras principais, em detrimento do diálogo; geralmente, são exatamente esses silêncios e expressões que comunicam o subtexto e a essência do diálogo. Além disso, as falas são marcadas pelo tom de ameaça e pela ironia, desvendando os mecanismos de dominação social. O silêncio, a ameaça, a ironia e os diálogos que significam pelo que não dizem são marcas da obra de Pinter.
Muitos diretores, como Hitchcock e Antonioni (que chegou a afirmar que os atores são parte do cenário), optam por interpretações facialmente inexpressivas, esperando que elementos outros como o espaço cênico ou o próprio diálogo estimulem o espectador a projetar no intérprete as expressões “corretas” – uma herança do experimento de Kuleshov. Neste filme, Losey utiliza uma técnica completamente diferente: as interpretações são extremamente importantes e a expressão facial dos atores se torna um meio comunicativo tão importante quanto (ou mais que) o diálogo, reforçando-lhe, dando-lhe significado, fazendo-lhe oposição. Esse uso carregado das fisionomias, muitas vezes travando diálogos entre si (como em Bergman), é evidentemente uma influência do teatro, presente tanto na trajetória de Bergman como de Pinter – e no cinema e atores britânicos em geral, influenciados pela forte tradição teatral da Grã-Bretanha. O uso considerável de planos-sequência da direção de Losey vem como uma forma de reforçar as expressões e o temp’o do diálogo real, permitindo-nos observar aquele momento de relação entre personagens de modo mais realista, sem as deturpações temporais que o corte pode causar, além do uso de planos separados dos personagens impedir a percepção das expressões de forma simultânea, prejudicando o efeito do diálogo mudo estabelecido diversas vezes entre eles.
Na fotografia em preto e branco do filme predominam tons cinzas e o contraste é bastante comedido. Porém muda bruscamente quando Hugo vai trabalhar na casa pela segunda vez: o contraste aumenta enormemente e há um uso muito maior de sombras, conferindo um tom sinistro às imagens. A composição é muitas vezes simbólica: não raro a imagem do mordomo, como reflexo ou sombra, aparece entre Tony e sua noiva.
Há certos elementos recorrentes da mise-em-scéne, de significado simbólico: o uso exaustivo de reflexos de espelhos e a existência de quadros em diversas paredes, que remetem a uma constante invasão da privacidade dos personagens mesmo na intimidade da casa, onde são sempre observados socialmente mesmo emblematicamente, e uma recorrência da imagem das pernas femininas como símbolo sexual.
O livro “The Servant”, que deu origem ao filme, é de autoria de Robin Maugham, nobre bissexual inglês sobrinho do também escritor Sommerset Maugham. No livro, a presença da homossexualidade é importante, enquanto que no filme ela foi completamente anulada, ao menos explicitamente. Pode-se interpretar que ela persiste muito sutilmente na relação íntima de Tony com Barret, em sua exagerada dependência dele e no controle que o último exerce sobre o primeiro, que numa perspectiva psicanalítica poder-se-ia encarar como uma dominação sexual. Nas cenas finais, vemos que Barret é responsável por trazer prostitutas para a casa para satisfazer tanto ele como a Tony, o que lhe torna o responsável em última instância pelo prazer sexual proporcionado a seu mestre. De qualquer modo, o comportamento sexual de ambos os personagens é completamente heterossexual.
Há um sarcasmo rude no filme na forma de abordar certos assuntos – é aí onde residem as críticas mais diretas e, paradoxalmente, não tão importantes para a trama. A cena de Susan e Tony na casa de um casal de amigos aristocratas satiriza os nobres, enquanto falam sobre a América do Sul e seus cowboys; já a cena do almoço de Tony e Susan revela alguns personagens quase caricatos do clero e da alta sociedade, sem relação com a trama. Outra crítica, provavelmente a mais interessante, é a feita à anulação do mordomo para se transformar em um eunuco moderno: somos levados a acreditar que a vida pessoal de Barret é tão comedida quanto seu jeito no trato com Tony, e que apesar de sua cordialidade e frieza, age de maneira relativamente espontânea (essa idéia é reforçada pelas cenas em que ele pega Vera na estação, onde, mesmo longe de Tony, não a trata calorosamente). Mais tarde, essa idéia vai começar a mudar quando descobrimos de modo relativamente brusco sua vida pessoal: uma namorada e, fora da vista do patrão, uma atitude pouco ética em relação a seus serviços, uma personalidade cheia de energia e de desejos – e carente de escrúpulos.
A clara alusão à luta de classes, um roteirista político e esquerdista e um diretor fugido do macarthismo, numa Europa que havia se tornado um campo de batalha político-ideológico, acabou por estimular uma abordagem excessivamente política da obra pela crítica da época. A visão do filme como uma alegoria social é, a meu ver, uma idéia simplória que relega o mais importante conteúdo psicológico do filme a mera moldura dessa alegoria.
A abordagem do filme à subversão da dominação é claramente inspirada em Hegel. Este postulava que o escravo e o senhor são também o contrário: primeiramente, o senhor só existe enquanto houver o escravo para lhe servir e manter sua hierarquia; e segundo e mais importante, o senhor, intermediando seu contato com o mundo através do escravo, acaba perdendo a ciência prática da vida, tornando-se dependente de seu servo. Ou seja, o escravo torna-se senhor de seu senhor à medida que lhe é indispensável, pois anula seu contato com o mundo e se torna uma ferramenta essencial. Entretanto, em Hegel, as duas instâncias, ao se misturarem, chegam à uma síntese dialética equilibrada, pois o escravo, redescobrindo a liberdade, irá ensinar a seu senhor, agora aflito com a condição servil, como ser livre: através da dominação de si e do trabalho servil.
Mais tarde, Hegel foi criticado por Marx, por exemplo, pelo caráter pouco prático de sua teoria da servidão, muito filosófica e pouco prática, social - e também pouco realista, à medida que era facilmente observável a permanência da servidão e o não cumprimento da esperada síntese da libetação. Entretanto, apesar da influência esquerdista existente no diretor e no roteirista, a abordagem marxiana, mais política e social, foi posta de lado em razão da abordagem dialética hegeliana. Mas não um Hegel comum, e sim um Hegel perverso, conturbado: o servo Barret age conscientemente na busca por se tornar indispensável a seu senhor, já com objetivos escusos; mais tarde, ao atingir seu objetivo de privar Tony do contato sadio com o mundo exterior, permanece nessa situação confortável de “escravo-senhor”, em oposição ao happy end da dialética de Hegel. Após dominar psicologicamente Tony, Hugo o isola em sua condição de senhor, não lhe permitindo reaprender o contato com a vida material. Age sempre como o servo, servindo-lhe os drinques, trancando a casa e fazendo os serviços domésticos para que o “patrão”, alienado pelo álcool e pela decadência mental, nunca se aperceba de sua condição de prisioneira senhor, servil aos desejos de Barret.
Muito bom esse texto. Gostei da análise das expressões faciais. Muitas vezes se valoriza demais o inexpressividade, esquece-se que o cinema também é feito de performances.
ResponderExcluirGostei do comentario. Ja assisti o filme e tambem concordo com tudo o que foi dito aqui.
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