sábado, 29 de maio de 2010

"O Criado (The Servant), de Joseph Losey, 1963" por Igor Calado


O diretor Joseph Losey, norte-americano de tendências esquerdistas, fugiu de seu país com a carreira acabada após ser listado como “subversivo” no período McCarthista, no início da década de 50. Exilado na Inglaterra, Losey reinicia penosamente sua carreira e, eventualmente, trava contato com o escritor e dramaturgo Harold Pinter, também de forte tendência política e esquerdista. De modo independente, ambos já tinham interesse de adaptar a obra literária “The Servant”, de Robin Maugham e, depois do contato, surgiu uma prolífica parceria artística que resultou em três filmes: “O Criado”, “The Accident” e “The Go-Between”, que constituíram todos sucesso de crítica e trouxe fama internacional para ambos, bem como diversos prêmios (entre Bafta, Cannes e outros).

A trama: em Londres, um rico e jovem aristocrata britânico, Tony (James Fox), procura um mordomo à moda antiga para lhe suprir todas as necessidades, agora que seu pai faleceu e que comprou uma nova casa. Apesar da decadência da função do mordomo já naquela época e do estilo de vida jovem e irreverente de Tony, o encontro com o tradicional mordomo Hugo Barret (Dirk Bogarde) lhe confirmará que um gentleman é essencial em sua legitimação como aristocrata e que não poderia haver ninguém mais adequado ao cargo que ele. Mas o que lhe parece ser um empregado completamente devotado vai mudar bastante, numa inteligente lógica de deturpação da hierarquia clássica.

Apesar do bom relacionamento que se estabelece entre Tony e Barret – principalmente por parte do primeiro – o exato oposto acontece entre Barret e Susan: mesmo antes de conhecê-lo, Susan se sente desconfortável com a idéia de um mordomo, e, tendo-o conhecido, a antipatia se formaliza, de ambos os lados, através dos pequenos incidentes domésticos. Susan se sente incomodada com a presença e por vezes a falta de privacidade que acarreta a existência de um mordomo na casa e, mais tarde, com a crescente influência e dependência de Tony por ele, fazendo-a sentir-se de certo modo ameaçada, criando-se uma pequena batalha muda de dominação e poder entre ela e Barret.

Mais tarde, Barret introduz na casa de Tony sua irmã Vera, para trabalhar como empregada. Vera, bem menos formal e educada que Barret, irá logo se aproximar de Tony e conquistá-lo. Mais tarde, porém, Susan e Tony descobrem Barret e Vera na cama e ele revela que não irmãos e sim amantes. Ele ainda revela o caso que Tony também tem com Vera, destruindo seu o relacionamento dele com Susan. Hugo e Vera vão embora, seguidos por Susan.

Hugo volta, mais tarde, a trabalhar na casa, pela clemência de Tony, dizendo ter sido enganado por Vera. Tendo retornado, o relacionamento dos dois mudou dramaticamente: ao contrário da fria, cordial e confortável ligação patrão-empregado, há uma intimidade conflituosa entre os dois que desequilibra a hierarquia tradicional. Agora mais próximo de Tony e tendo tirado Susan do caminho, Hugo se entrega com força à destruição psicológica de seu patrão, no ambiente claustrofóbico e angustiante que se tornou a casa, onde os dois vivem reclusos. A tarefa não é tão difícil para um homem habilidoso como Barret, que tem em mãos um jovem inexperiente e com feliz interesse por álcool. Através dos jogos infantis travados entre os dois, com efeitos psíquicos assustadoramente amplificados pela reclusão em que se encontra Tony, e na exploração do seu vício pelo álcool, Barret consegue, por fim, sua vitória, transformando Tony num ser bizarro e decadente, que cortou completamente seus laços com qualquer pessoa, exceto Hugo, o fiel mordomo que sempre sabe o que lhe apraz e que lhe supre todas as necessidades.

Do ponto de vista estilístico, é clara a influência de Pinter, reforçada pela direção de Losey. Há uma forte presença de diálogos superficialmente banais que possuem importância apenas pelo subtexto, além do freqüente uso do silêncio e das expressões faciais como instâncias comunicadoras principais, em detrimento do diálogo; geralmente, são exatamente esses silêncios e expressões que comunicam o subtexto e a essência do diálogo. Além disso, as falas são marcadas pelo tom de ameaça e pela ironia, desvendando os mecanismos de dominação social. O silêncio, a ameaça, a ironia e os diálogos que significam pelo que não dizem são marcas da obra de Pinter.

Muitos diretores, como Hitchcock e Antonioni (que chegou a afirmar que os atores são parte do cenário), optam por interpretações facialmente inexpressivas, esperando que elementos outros como o espaço cênico ou o próprio diálogo estimulem o espectador a projetar no intérprete as expressões “corretas” – uma herança do experimento de Kuleshov. Neste filme, Losey utiliza uma técnica completamente diferente: as interpretações são extremamente importantes e a expressão facial dos atores se torna um meio comunicativo tão importante quanto (ou mais que) o diálogo, reforçando-lhe, dando-lhe significado, fazendo-lhe oposição. Esse uso carregado das fisionomias, muitas vezes travando diálogos entre si (como em Bergman), é evidentemente uma influência do teatro, presente tanto na trajetória de Bergman como de Pinter – e no cinema e atores britânicos em geral, influenciados pela forte tradição teatral da Grã-Bretanha. O uso considerável de planos-sequência da direção de Losey vem como uma forma de reforçar as expressões e o temp’o do diálogo real, permitindo-nos observar aquele momento de relação entre personagens de modo mais realista, sem as deturpações temporais que o corte pode causar, além do uso de planos separados dos personagens impedir a percepção das expressões de forma simultânea, prejudicando o efeito do diálogo mudo estabelecido diversas vezes entre eles.

Na fotografia em preto e branco do filme predominam tons cinzas e o contraste é bastante comedido. Porém muda bruscamente quando Hugo vai trabalhar na casa pela segunda vez: o contraste aumenta enormemente e há um uso muito maior de sombras, conferindo um tom sinistro às imagens. A composição é muitas vezes simbólica: não raro a imagem do mordomo, como reflexo ou sombra, aparece entre Tony e sua noiva.

Há certos elementos recorrentes da mise-em-scéne, de significado simbólico: o uso exaustivo de reflexos de espelhos e a existência de quadros em diversas paredes, que remetem a uma constante invasão da privacidade dos personagens mesmo na intimidade da casa, onde são sempre observados socialmente mesmo emblematicamente, e uma recorrência da imagem das pernas femininas como símbolo sexual.

O livro “The Servant”, que deu origem ao filme, é de autoria de Robin Maugham, nobre bissexual inglês sobrinho do também escritor Sommerset Maugham. No livro, a presença da homossexualidade é importante, enquanto que no filme ela foi completamente anulada, ao menos explicitamente. Pode-se interpretar que ela persiste muito sutilmente na relação íntima de Tony com Barret, em sua exagerada dependência dele e no controle que o último exerce sobre o primeiro, que numa perspectiva psicanalítica poder-se-ia encarar como uma dominação sexual. Nas cenas finais, vemos que Barret é responsável por trazer prostitutas para a casa para satisfazer tanto ele como a Tony, o que lhe torna o responsável em última instância pelo prazer sexual proporcionado a seu mestre. De qualquer modo, o comportamento sexual de ambos os personagens é completamente heterossexual.

Há um sarcasmo rude no filme na forma de abordar certos assuntos – é aí onde residem as críticas mais diretas e, paradoxalmente, não tão importantes para a trama. A cena de Susan e Tony na casa de um casal de amigos aristocratas satiriza os nobres, enquanto falam sobre a América do Sul e seus cowboys; já a cena do almoço de Tony e Susan revela alguns personagens quase caricatos do clero e da alta sociedade, sem relação com a trama. Outra crítica, provavelmente a mais interessante, é a feita à anulação do mordomo para se transformar em um eunuco moderno: somos levados a acreditar que a vida pessoal de Barret é tão comedida quanto seu jeito no trato com Tony, e que apesar de sua cordialidade e frieza, age de maneira relativamente espontânea (essa idéia é reforçada pelas cenas em que ele pega Vera na estação, onde, mesmo longe de Tony, não a trata calorosamente). Mais tarde, essa idéia vai começar a mudar quando descobrimos de modo relativamente brusco sua vida pessoal: uma namorada e, fora da vista do patrão, uma atitude pouco ética em relação a seus serviços, uma personalidade cheia de energia e de desejos – e carente de escrúpulos.
A clara alusão à luta de classes, um roteirista político e esquerdista e um diretor fugido do macarthismo, numa Europa que havia se tornado um campo de batalha político-ideológico, acabou por estimular uma abordagem excessivamente política da obra pela crítica da época. A visão do filme como uma alegoria social é, a meu ver, uma idéia simplória que relega o mais importante conteúdo psicológico do filme a mera moldura dessa alegoria.

A abordagem do filme à subversão da dominação é claramente inspirada em Hegel. Este postulava que o escravo e o senhor são também o contrário: primeiramente, o senhor só existe enquanto houver o escravo para lhe servir e manter sua hierarquia; e segundo e mais importante, o senhor, intermediando seu contato com o mundo através do escravo, acaba perdendo a ciência prática da vida, tornando-se dependente de seu servo. Ou seja, o escravo torna-se senhor de seu senhor à medida que lhe é indispensável, pois anula seu contato com o mundo e se torna uma ferramenta essencial. Entretanto, em Hegel, as duas instâncias, ao se misturarem, chegam à uma síntese dialética equilibrada, pois o escravo, redescobrindo a liberdade, irá ensinar a seu senhor, agora aflito com a condição servil, como ser livre: através da dominação de si e do trabalho servil.

Mais tarde, Hegel foi criticado por Marx, por exemplo, pelo caráter pouco prático de sua teoria da servidão, muito filosófica e pouco prática, social - e também pouco realista, à medida que era facilmente observável a permanência da servidão e o não cumprimento da esperada síntese da libetação. Entretanto, apesar da influência esquerdista existente no diretor e no roteirista, a abordagem marxiana, mais política e social, foi posta de lado em razão da abordagem dialética hegeliana. Mas não um Hegel comum, e sim um Hegel perverso, conturbado: o servo Barret age conscientemente na busca por se tornar indispensável a seu senhor, já com objetivos escusos; mais tarde, ao atingir seu objetivo de privar Tony do contato sadio com o mundo exterior, permanece nessa situação confortável de “escravo-senhor”, em oposição ao happy end da dialética de Hegel. Após dominar psicologicamente Tony, Hugo o isola em sua condição de senhor, não lhe permitindo reaprender o contato com a vida material. Age sempre como o servo, servindo-lhe os drinques, trancando a casa e fazendo os serviços domésticos para que o “patrão”, alienado pelo álcool e pela decadência mental, nunca se aperceba de sua condição de prisioneira senhor, servil aos desejos de Barret.

2 comentários:

  1. Muito bom esse texto. Gostei da análise das expressões faciais. Muitas vezes se valoriza demais o inexpressividade, esquece-se que o cinema também é feito de performances.

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  2. Gostei do comentario. Ja assisti o filme e tambem concordo com tudo o que foi dito aqui.

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