sábado, 29 de maio de 2010

"Mel com fel" por Ricardo Duarte



“Um gosto de mel” é um filme que trata de assuntos polêmicos com uma inocência encantadora. Há uma relação inter-racial, um personagem gay, gravidez na adolescência, idéias de aborto e uma análise sobre a necessidade que sentimos de nos ligarmos aos outros, tudo num longa-metragem com diálogos deliciosos e músicas que parecem ter saído de um desenho animado. Essa é a característica mais interessante e bela do filme: emocionar-nos com a ingenuidade de alguns de seus personagens enquanto não ignora o lado duro e difícil da realidade.

Jo, a protagonista, é uma jovem da classe proletária cuja mãe não dá muita importância para ela. Sempre fugindo de um lugar para outro por falta de dinheiro para o pagamento das estadias, as duas têm uma relação bastante hostil, mas o filme nunca condena uma ou a outra por aquilo, embora tenda mais para culpar a mãe, mas vemos outras vezes que ela tenta se aproximar da filha, apenas para ser repelida brutalmente. Não há ali nenhuma chance de reaproximação. É nesse contexto: presa e ansiado por liberdade, como o pássaro na gaiola que sua mãe tem, mas sem coragem de fugir de sua progenitora, que Jo encontra e se apaixona por um marinheiro (símbolo de liberdade). Entretanto, logo após eles fazerem sexo e ele engravidá-la, ele tem que partir. A adolescente não pensa, ou não tem coragem, na possibilidade de ir com ele e, finalmente livrar-se daquela sua vida triste. Logo em seguida é abandonada por sua mãe, que se casa com um homem rude, mas de boa classe social. Aparentemente livre de um fardo, a vida da menina parece bem melhor, ela conseguiu a tão almejada liberdade. Conhece Geoffrey, um homem gay, e após um divertido dia no parque, resolve chamá-lo para morar com ela. Nesse momento vemos que embora Jo afirme que quer ser só, isso não é a verdade. Por mais que aparentasse satisfeita por estar sem Helen, assim que tem a chance de morar com outra pessoa, ela se agarra a isso. E é curioso notar que quando ela chama Geoffrey, eles ganharam um peixe num aquário no parque, fazendo um paralelo com o pássaro engaiolado que a mãe levou embora quando se casou. Após felizes e infelizes momentos passados juntos, os dois são separados pela chegada definitiva de Helen, abandonada pelo marido, que expulsa Geoffrey de lá. Num final doce-amargo, vemos-lhe indo embora, enquanto um menino acende um fogo de artifício para uma reflexiva Jo. Sempre aparecendo sujas, correndo ou metidas em confusões, as crianças do filme servem como um alerta para a protagonista, aumentando ainda mais o seu medo de ser mãe, entretanto, nesse final, é surpreendida pela gentileza de uma delas, que lhe dá algo para ilumina a escuridão, deixando em aberto que talvez seja o filho que terá que fará com que a sua vida melhore.

Tendo sido adaptado de uma peça, o aspecto verborrágico é bastante forte. Os personagens conversam o tempo todo, sobre os mais diversos assuntos e, na maioria das vezes, prosaicos, fato que não prejudica o filme, pelo contrário, fortalece a sua simplicidade e verossimilhança, ao retratar jovens que, comumente a idade, tem arroubos de tristezas seguidos por de extrema alegria e, muitas vezes, de uma arrogância inocente. Há também uma grande dose de sarcasmo e humor em diversas falas presentes ao longo da projeção. Alguns dos diálogos do filme são usados atualmente em letras da banda “The Smiths”, como “I'm not happy and I'm not sad”, ou “The dream is gone, but the baby's real.”. Há também momentos sem diálogos que, usando-se de todo o poder das excelentes atuações, transmitem para os expectadores todos os pensamentos e emoções que passam pelas cabeças daqueles personagens, tendo como exemplo mais obvio e mais significativo, o belo e introspectivo final.

Quase completamente formado de atores não profissionais, as atuações são impecáveis, especialmente as de Rita Tushingham (Jo) e Murray Melvin (Geoffrey), destacando-se ainda o fato do quão difícil deveria ser interpretar um personagem homossexual no início da década de 60. Afastando-se da expansão típica do teatro e focando-se em atuações contidas e realistas, esse aspecto revela-se acertado, aumentando ainda mais a nossa simpatia por aqueles personagens. Claro que, tratando-se de jovens, há alguns excessos necessários para demonstrar a própria vitalidade da juventude, como quando os dois protagonistas, efusivamente, decidem aproveitar o dia de feriado para passearem. Também se deve citar a atriz que interpreta Helen (essa já uma veterana) que convence como uma mãe egocêntrica e fútil, fazendo com que tenhamos uma mistura de raiva, pena e desprezo por ela. Merecidamente essas atuações resultaram em vários prêmios, como o Cannes de melhor ator (Melvin) e melhor atriz (Tushingham), o Bafta de melhor atriz (Tushingham) e o Globo de Ouro de melhor atriz iniciante (Tushingham).

Os cenários do filme e sua fotografia também são algo que merecem atenção. Dando enfoque a composições realistas, a câmera nos leva aos becos, ruas sujas, docas, ruínas e conjuntos habitacionais de uma Inglaterra que muitos cineastas escondiam, revelando-nos os lugares onde uma classe proletária triste e sem grande expectativas de vida passavam seus dias. Usa-se em todas as cenas externas a luz natural, resultando, muitas vezes em um ótimo efeito, como a conversa de Jo e Geoffrey embaixo do arco. Na maior parte do filme o que predomina é a escuridão, que, combinada com os cenários decadentes, aumenta ainda mais a angústia que sentimos por aqueles personagens.

Realizado em 1961 e dirigido por Tony Richardson, “Um gosto de mel” é um filme do movimento não oficial que ficou convencionalmente chamado de “British New Wave”, uma espécie de Nouvelle Vague britânica, sendo um de seus maiores expoentes esse diretor. Embora com poucos filmes, esse movimento é considerado por muitos como um dos mais importantes da cinematografia inglesa, pois foi uma “novidade bem-vinda após o entretenimento conformista (...) da primeira parte dos anos 50” ¹, fazendo com que muitos estudiosos do cinema inglês façam várias pesquisas sobre ele e sobre as inúmeras contribuições dele para o cinema britânico contemporâneo, influência perceptível em filmes como Trainspotting, 9 songs e outros. Vários das características que marcaram a British New Wave estão presentes nesse filme, como ser focado em jovens “rebeldes” e alienados, o enfoque dado a classe proletária, a fotografia sombria, as locações urbanas e decadentes e outros. Porém, há um fato que difere bastante dos outros filmes dos “angry young men”, que é o fato da protagonista ser uma mulher, dando um toque um pouco mais delicado e feminino a um universo de filmes focados em jovens homens violentos, fazendo com que esse filme seja uma espécie única (ou quase) desse movimento.

¹: Peter Hutchings, ‘Beyond the New Wave: Realism in British Cinema’

Material de consulta:

The British New Wave, B.F. Taylor, 2006.

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