sábado, 29 de maio de 2010

"O melhor está nas entrelinhas" por Yuri Assis


Michael Powell e Emeric Pressburger criaram uma narrativa de tons subversivos quiçá para a época, quiçá pelo tema. “Narciso Negro”, contando com atuações de Deborah Kerr como madre superiora, Kathleen Byron como uma freira psicótica, e David Farrar como o expatriado britânico Mr. Dean, põe em foco, em 1947, irmãs da Ordem das Servas de Maria, que, rodeadas de luxúria, são testadas em suas crenças. Colocar os representantes de Jesus Cristo em parâmetros humanos foi uma boa sacada da dupla, que se intitulava The Archers. Ao menos, naqueles tempos, naquelas condições, naqueles pensamentos típicos de um momento pós-Segunda Guerra Mundial.

“Narciso Negro” traz para a tela cinco freiras que tentam instituir um convento num povoado, de nome Mopu, situado próximo ao Himalaia. O clima, entretanto, não parece exatamente favorável à empreitada. Primeiro que o local escolhido para acolher o projeto tinha servido anteriormente como harém para um antigo sultão. Depois que a irmã Clodagh, personagem de Kerr, sente qualquer coisa fora de lugar transmitida nos ventos que assolam o palácio. Era como se o ambiente, de propósito, já decretasse a derrocada das intenções da recém madre superiora. E de fato, o maior efeito chega sem atraso: as irmãs começam a se relembrar de suas vidas mundanas como mulheres comuns. Aí que o jeito de freira começa a se desmanchar.

Para um melodrama, a película consegue ultrapassar aquilo a que se propõe, pelo fato mesmo de haver um constante erotismo cercando o desenvolver da trama. Erotismo este que se imiscui através dos personagens, através do cenário, através do jogo de imagens. É um prato cheio para o campo da semiótica fazer comparações de cunho freudiano a respeito do desejo e do medo. Vale a pena ressaltar aqui a presença de Mr. Dean, encarregado do general de auxiliar as irmãs a se instalarem. Farrar encarnou bem o papel de galã viril a intermediar a relação entre cinco mulheres frágeis e os habitantes do povoado. Acontece que o quê de erotismo advém em boa parte dessa aproximação com o Mr. Dean.

Premeditado ou não, a fotografia por si só é luxuriosa, com toda uma insinuação barroca que se revela na mise-en-scène, na paisagem, no palácio, nos trajes, nos closes da câmera, nos ângulos enviesados, nas encenações caricatas de cada ator, enfim. É interessante, inclusive, perceber que os personagens, sem exceção, são meticulosamente encaixados em tipos. Dá para suspeitar que Powell e Pressburger quiseram reforçar essa analogia com o inconsciente humano através do uso de arquétipos, isto é, símbolos triviais do imaginário humano cujo apelo é tal que por si sós constroem mensagens.

Uma cena bacana de se destacar é uma, perto do final, na qual a irmã Clodagh está verificando se todas as freiras se encontram em seus recintos. Ao passar pela porta do quarto da irmã Ruth, Clodagh vê a luz acesa e presume que há alguma movimentação estranha. Primeiro, bate na porta, chama e espera resposta. Ruth apaga a luz e silencia. Clodagh persiste, força a entrada e se surpreende com uma porta trancada. Continua até conseguir. Quando finalmente adentra o lugar, se assusta - ou se admira - ao apanhar a ex-freira sem seu hábito, trajada com um vestido bordô. Apesar da breve contenda, Clodagh consegue convencê-la a ficar até o amanhecer. E assim, sentam-se uma diante da outra. Ruth, para testá-la, saca um batom e um espelho e pinta os lábios de um vermelho vivo. Ruth, vermelha e bordô, pálida, gestos esquivos, se esvaindo na escuridão, uma sombra. Clodagh, branca e azul, respiração presa, lábios tensos, portando uma bíblia, um terço, ares de santa. Céu e inferno. Deus e diabo. Superego e id. É nesse momento que todo o viés subliminar do filme vem à tona, deixando claro que o melhor está nas entrelinhas.

"Narciso Negro", apesar dos diversos pesares que lhe dão um caráter levemente cafona, merece atenção por ultrapassar os contornos de seu próprio gênero. Powell e Pressburger criaram uma cinematografia que dá a margem a comparações com crenças ou ciências baseadas em signos. O que a censura não deixava dizer, teve que ser dito atrás do pensamento. Vem daí seu mérito de receber destaque no cinema inglês dos anos 40, isto é, o fato de não ter sido apenas um melodrama com um romance sentimental repleto de percalços, mas cujo sentido faz manhas e artimanhas antes de se revelar por inteiro.

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