sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A Canção da Estrada (Pather Panchali, 1955) de Satyajit Ray, por Gibran Khalil


A Canção da Estrada é o projeto inaugural do mais importante diretor hindu de todos os tempos, Satyajit Ray. Incorporando elementos do neorrealismo italiano e elementos fundamentais da cultura e tradição da Índia, Ray desenvolve um trabalho singelo sobre a infância, o feminino, o amor e a família.

Em um pequeno vilarejo no interior da Índia, uma mulher cuida da casa e da filha, Durba, tendo ainda que suportar os sonhos do marido e os caprichos de uma sogra na beira da morte. É neste universo repleto de tradição que nasce Apu, uma pequena criatura, o filho homem de uma casa predominantemente feminina.

Uma pequena trama se desenrola durante o filme que em sua maior parte se resume a um relato realista do dia a dia desta família, as dificuldades da mãe, o sofrimento final da avó e as descobertas e experiências dos irmãos Durba e Apu.

Satyajit Ray, com tendências neorrealistas ao estilo de “A Terra Treme” (Lucchino Visconti, 1948), busca com seu filme muito mais que um entretenimento onde a trama evocada é superior aos personagens. É impossível negar, todavia, a face trágica da vida simbolizada pelas forças da natureza – a tempestade e a morte. A morte é dada, ela entristece, mas ao mesmo momento chama a necessidade de um novo recomeço. Os personagens devem continuar independente da tragédia que os abate e essa continuidade da vida, do crescimento - do tempo - é um maravilhoso recurso trabalhado por Ray para
desenvolver a subjetividade dos personagens frente as dificuldades da vida.

Com um realismo que beira ao etnográfico, Ray se aprofunda na individualidade de cada membro da família envolvendo-os em um suave e lento vagar pela tela. Do trabalho doméstico diário da mãe de Apu às meninices da velha que rouba comida na dispensa, tudo é imensamente real e profundamente singelo.

Tecnicamente o filme demonstra o contexto histórico no qual ele foi desenvolvido. Os avanços com o som e a câmera mais viva que nos grandes estúdios (movimentos de câmera na mão, panorâmicas, etc) , as filmagens em locação com atores não profissionais, as panorâmicas leves, as atuações menos melodramáticas que as habituais, tudo isto possibilitou ao filme não só a sua existência por torná-lo mais barato, mas também o seu realismo, sua vivacidade, o seu caráter único, histórico, social. Vemos na tela uma vida, não imortalizada, mas sim, um pai que já faleceu, uma mãe que deixou boas memórias, um jovem que agora é um adulto ou um velho. Assistir A Canção da Estrada é quase como presenciar o fenômeno da criação.

Enfim, tudo é imensamente simples em um realismo profundamente marcando pela simplicidade do povo o qual a história representa. Uma bela aliança de Ray entre técnica, narrativa e atuação.

O olhar sobre a infância transforma as descobertas dos irmãos Apu e Durba em novas descobertas também para os espectadores. Cabe dizer que este é o primeiro filme da trilogia da vida de Apu e alguns acontecimentos marcam imensamente as atitudes do Apu adolescente em “O Invencível” (1957) e o Apu adulto em “O Mundo de Apu” (1959).
Por último, vale ressaltar a grande importância do feminino neste filme. Por mais que seja o ponto de vista de Apu que vai importar nos filmes seguintes, em A Canção da Estrada são a mãe, a irmã e a avó que desempenham os papéis principais da narrativa. A mãe é símbolo de força e de resignação ao lar, a avó é a sabedoria e a irmã o amor ingênuo e o prolongamento da família.

Já o marido é visto como um homem ausente, fraco, indeciso e em alguns momentos egoísta. Em um momento do filme, A mãe de Apu questiona o porque da vida ser tão difícil ao mesmo tempo que reconhece nos sonhos do marido as causas das dificuldades.
Depois da tragédia final, essa sensação da fragilidade do homem fica mais latente.

Narrativamente o pai atua através de sua ausência. Apu não é fruto de uma educação paternal, ele cresce e amadurece diante dos cuidados femininos, e estes traços serão carregados e trabalhados de forma brilhante por Ray nos filmes posteriores.

Enfim, A Canção da Estrada é uma estreia maravilhosa de um dos reinventores do cinema hindu. Singelo, corajoso, belo e bem construído. A família como tema central é uma família que vive, e este “viver a vida” é um dos pontos altos e um dos motivos pelo qual o filme deve ser assistido.

domingo, 7 de novembro de 2010

A mulher das Dunas - Hiroshi Teshigahara (1964), por Sofia Donovan


Parece grande, mas descobrimos que a “rocha” que vemos na primeira cena do filme é um grão de areia. A Mulher das Dunas discute, ora de forma direta, ora através de metáforas, alienação, indivíduo e sociedade, tradição, sexualidade; questiona, como filmes de outros movimentos cinematográficos de ruptura contemporâneos, os parâmetros estabelecidos. Reage (assim a Nouvelle Vague Japonesa, em geral) às drásticas mudanças que ocorreram no Japão após a segunda guerra.

Um professor coleta insetos em meio a dunas semi-desertas. Sua voz em off nos expõe uma inquietação, uma inclinação crítica e cética “Você diz que eu discuto muito. São os fatos que discutem”, fala a uma mulher que surge em meio as dunas (mas é só uma aparição, não está ali, nem chegamos a saber quem exatamente é). Ele acaba perdendo a hora do ônibus que o levaria de volta a cidade, e um dos moradores das dunas o oferece estadia com uma conterrânea em uma estranha casa, construída no fundo de um buraco na areia. A trilha sonora tensa, por vezes contundente, deixa o espectador na espreita de algo ruim. A conterrânea o recebe com sorrisos receosos e na manhã seguinte o professor descobre que foi enganado pelos moradores da vila e está preso junto à mulher, que não tem poder para fazer nada a respeito.

A areia possui um enorme papel na narrativa, se revolta em momentos de crise, desliza lentamente se não, mas não apenas acompanha, determina e controla mais que os próprios sequestradores os acontecimentos. A areia prende o protagonista quando ele tenta fugir, dela brota água quando ele alucina de sede, foi ela quem engoliu o marido e a filha da mulher. Além de ser o foco da maioria dos muitos planos detalhe do filme (seja a das dunas ou a da pele dos personagens). A já citada música, que em si já é quase uma alucinação, somada a essa personificação criam uma atmosfera fantástica e sinistra.

A mulher, em contraste com o professor, é extremamente ligada às tradições da vila, submissa, resignada, subserviente, porém cultiva uma admiração inocente pela capital e um medo enorme da solidão e da vida. Mesmo após superar a “fase da raiva” dela, ele continua em uma posição machista (não é “moderno” nesse sentido). A tão almejada “liberdade” dele e a “prisão” onde ela vive são relativizadas. Ela sofre calada, acaba não significando nada para ele, nem mesmo quando engravida. A atuação de Kyôko Kishida é extremamente comovente. Junto à grande diversidade de enquadramentos (que ganham com o claro/escuro naturalista), ela consegue prender o espectador no filme de locação única.

Outro filme do mesmo movimento Japonês que se assemelha a A Mulher das Dunas: um sequestro, o cárcere prolongado, trazendo ao protagonista uma nova perspectiva sobre o mundo; Cega Obsessão (Yasuzo Masumura, 1969) também é auto-reflexivo. Porém em ambos o personagem sequestrado acaba cedendo à loucura ou alienação a que tinha aversão. Não se encontra nesses filmes a necessidade de uma clara resolução ideológica.

Zabriskie Point, por Ana Lúcia Diniz


O nome é uma homenagem à região árida localizada no oeste dos Estados Unidos, no Vale da Morte. Também árido é o tema principal abordado pelo filme: o movimento da contracultura, que teve seu auge na década de 60. E só tem uma palavra que pode definir a maneira como filme foi recebido pela crítica e pelo público da época: aridez.

Zabriskie Point (1970), do cineasta italiano Michelangelo Antonioni, é marcado pelo encontro de dois jovens. Ela, Daria, viaja de carro até Phoenix para encontrar seu chefe, um empresário que planeja construir um condomínio de luxo na Califórnia. Ele, Mark, jovem que está insatisfeito com o falatório das reuniões estudantis e decide que - muito mais do que discussão e reflexão - precisa de ação. Por isso, quando os protestos na universidade tornam-se violentos com a chegada da polícia, ele decide comprar um revolver e tomar atitudes práticas. No conflito entre estudantes do Campus e policiais, alguns alunos são atingidos por gás lacrimogêneo e um estudante é baleado. Neste momento, Mark saca a arma e aparece a cena de um policial sendo morto. O autor do tiro não é claramente definido, mas a atitude de Mark é fugir. Para isso, ele rouba um pequeno avião. No meio do deserto, os dois se encontram e a atração é imediata.

Mark e Daria são claramente representantes dos que presenciaram este momento de transformação social, política e cultural, seja ativamente ou não. Encontram-se entre os extremos dos intelectuais de esquerda e da burguesia capitalista, pois essa dicotomia não fazia mais sentido. E a solução para eles, no momento, parece ser o escapismo. Talvez para poder observar essas transformações de fora, talvez para simplesmente se esquecer delas. Essa “viagem” pelo deserto, onde eles estão de passagem, remete, inclusive, a um certo isolamento dos jovens da geração beat - que teve seu auge nos anos 50 e que foi de fundamental influência para o movimento da contracultura nos anos 60 - retratados em romances como “On the road” de Jack Kerouac.

É no deserto que ocorrem cenas marcantes do filme. Vale a pena destacar a cena de amor na areia, que, além da sua beleza estética claramente perceptível, evidenciam-se temas defendidos pela ideologia hippie, como a liberdade sexual e o amor livre e primitivo. Todo o ato dos jovens é embalado pela trilha sonora que garante o tom preciso para a cena. A trilha sonora do filme inteiro, aliás, é um show à parte, apresenta canções de vários artistas como Pink Floyd, Jerry Garcia, The Kaleidoscope... Com algumas música escritas especialmente para o filme.

O filme, no entanto, não foi visto com bons olhos nem pela crítica especializada nem pelo público. Ele é o segundo de um contrato fechado por Antonioni para realizar três filmes em inglês. Os outros dois foram Blow Up (1966) e Profissão: Repórter (1975). O filme sofreu problemas com os produtores, até porque é bastante complicado tratar de temas polêmicos como o combate ao capitalismo, justamente dentro dos Estados Unidos. Por isso, foi duramente ressaltada a arrogância de um estrangeiro de vir criticar tão enfaticamente o país. Outra crítica feita foi em relação à atuação de Mark Frechette e Daria Halprin, que, inclusive, emprestaram seus nomes aos personagens. A escolha de atores amadores, no entanto, tem o mérito de filmar rostos novos e pessoas menos presas a “técnicas” de atuação pré-definidas.

Em relação ao público, Zabriskie Point foi um fracasso de bilheteria, arrecadando apenas um décimo da soma que Blow Up arrecadou. Esse fracasso de público talvez se deva à demora de quase dois anos para lançar o filme, pois, nos anos 70, já há um certo desencantamento em relação ao movimento da contracultura e , ao mesmo tempo, já surgem novos anseios de mudanças. Então a identificação com o filme não ocorre por completo.

Hoje, fora do contexto de seu lançamento, Zabriskie Point já é olhado de maneira diferente. Apesar de muitos admiradores dos filmes de Antonioni ainda acharem que este é o seu pior trabalho, o filme é considerado por muitos como um retrato genial de uma época. Quase vinte anos depois, pode-se dizer, citando o editor da Rolling Stone, David Fricke, que “ Zabriskie Point foi um dos desastres mais extraordinários da história do cinema moderno”.

Noivo neurótico, noiva nervosa – Woody Allen, 1977, por Bruna Belo


Noivo neurótico e noiva nervosa é o primeiro marco da carreira de Woody Allen. Foi nesse filme que ele finalmente atingiu sua maturidade artística como comediante e diretor, unindo humor, drama e romance para definir a sua persona cinematográfica. Segundo o próprio Woody Allen: “contemporâneo, neurótico, mais orientado para a vida intelectual, perdedor, homenzinho, (que) não lida bem com máquinas, deslocado do mundo”.

O filme é composto de uma estrutura narrativa fragmentada e fora da ordem cronológica; além de possuir vários experimentalismos: animações, contando a historia da paixão platônica do personagem do diretor pela bruxa de A Branca de Neve; legendas, que revelam os verdadeiros pensamentos dos personagens; tela dividida, na qual os personagens “conversam” durante sessões de terapia; e a “quebra” da quarta parede: quando Allen se dirige diretamente a platéia ou quando pára diversos pedestres na rua e faz perguntas sobre o amor. Ele explica o porquê: “eu sentia que muitas das pessoas na audiência tinham os mesmo sentimentos e problemas. Eu queria conversar diretamente com elas, confrontá-las”.

Foi pensado inicialmente para ser um suspense, com a trama centrada num assassinato que deveria ocorrer logo nos primeiros 15 minutos de exibição. Porém, percebendo que as melhores cenas estavam no romance, Woody decidiu excluir esta primeira trama – diminuindo o filme de 140 para 93 minutos –, passando a narrar apenas os altos e baixos da relação entre o comediante Alvy Singer (Woody Allen) e a cantora Annie Hall (Diane Keaton), intercalando com histórias anteriores das vidas de cada um deles. Através desse romance, são abordadas a maioria das dificuldades que encontramos em relacionamentos amorosos: obsessões morais, fidelidade, sexo, imaturidade emocional, etc. – assuntos recorrentes a quase todos os filmes de Allen.

Apesar de o diretor negar, Noivo neurótico, noiva nervosa é considerado por muitos um filme quase autobiográfico, devido às inúmeras semelhanças entre personagens e atores, por exemplo: Woody Allen e Diane Keaton mantinham um relacionamento na época da filmagem; quando jovem ela era conhecida como Annie Hall (título original do filme) e as roupas da personagem são da própria atriz; e Alvy Singer “é” Woody Allen, ambos são comediantes, judeus, foram expulsos da NYU, adoram a vida da metrópole (em especial, Nova Iorque) e Fellini – são coincidências demais! O diretor acredita que a comédia “exige a realidade”, talvez seja por isso que os dois protagonistas sejam tão bem construídos, complexos, humanos e, principalmente, reais.

Além da construção dos personagens, essa busca pela realidade também afeta a trilha sonora – praticamente inexistente – e a montagem do filme: são utilizados planos muito longos – o plano médio em Noivo neurótico, noiva nervosa é de 14,5 segundo, enquanto nos outros filmes da época, a média ficava entre 4 e 7 segundos – evitando o corte, ele dilatava a ação, dando mais ritmo à comédia e aumentando a importância dos diálogos.

O filme foi aclamado pelo público e pela crítica na época do seu lançamento, as roupas de Annie Hall viraram moda, as falas do filme passaram a ser ouvidas em conversas cotidianas. Noivo neurótico, noiva nervosa foi nomeado a cinco Oscar, dos quais ganhou quatro (melhor roteiro, diretor, atriz e filme). Criativo, divertido e envolvente, o filme é, sem dúvida alguma, uma das obras primas de Woody Allen!

“O Eclipse”, de Michelangelo Antonioni, por Renato Souto Maior


Ensurdecedora pode ser a atmosfera aparentemente silenciosa de um espaço ambientado apenas por um som de ventilador, ao fundo, uníssono, em tom constante. Em meio a um barulho pontual e sobressaltado – o ruído do aparelho a girar realmente tem seu volume aumentado e potencializado diante dos outros sons da cena – do eletrodoméstico, temos, em preto e branco, profundamente marcados, Monica Vitti e seu gestual típico de incomunicabilidade já visitado e averiguado em outras produções do diretor Michelangelo Antonioni. O tédio cai sob os personagens como uma manifestação pesada e difícil de ser ignorada ou subjugada. Apesar da tentativa inicial de ambos – obviamente um casal – em circular e lidar um com o outro de forma natural, dentro do espaço de um apartamento, logo se instala a agonia, e o fingimento não se torna mais sustentável, resultando na partida da mulher. Vitti troca algumas palavras, saí do espaço até então sufocante, e ganha às ruas de um bairro italiano tipicamente burguês, em condições estranhas, de deserto absoluto; mal se vê alguma movimentação no espaço urbano. Toda a primeira passagem de “Eclipse” retrata o fim de uma relação; não necessariamente o fim, mas o começo de um desfecho irreversível, prestes a desabar. O silêncio do casal prestes a se separar dialoga com outra passagem do filme, onde a ação se passa em ambiente totalmente contrário ao desértico bairro em que Vitti mora: uma bolsa de valores. Aqui, Antonioni delata o tempo, em momento arrastado, longo, deixando o espectador inquieto, agoniado, e frustrado. É um corte brusco entre uma paisagem aberta, ampla, vazia e silenciosa para um espaço claustrofóbico, barulhento, sufocador, repleto de doses elevadas de “algazarra” e gritaria, típicas de um ambiente como este, onde a presença de mulheres torna o quadro um tanto destoante de seu “aspecto natural”. A mãe da personagem de Vitti procura o local por motivos financeiros, apenas, enquanto a filha se vê “atormentada” por meros conflitos amorosos. É neste lugar que Vitti encontra o personagem de Alan Delon (Piero), jovem efusivo, em contraposição ao amargurado semblante de Vittoria (Vitti). O encontro se dá, então, em momento adverso de ambos; para ela, a crise de um relacionamento recém acabado, para ele a possibilidade de conquistá-la.

A posição dos atores em cena é realmente fabulosa; Antonioni movimenta a câmera com sutileza, mas ao mesmo tempo força. É uma marca visível, a sua, de saber filmar, lindamente, seus atores em cena. A beleza estonteante e o entrosamento crível de Vitti e Delon ajudam, obviamente, na elevação das cenas almejadas, mas não se mostram como aspectos exclusivamente responsáveis pelo sucesso do que se alcança; sem os enquadramentos inspirados, a direção milimétrica e a fotografia marcante de Antonioni os dois poderiam passar por mais belo casal, e só. Muitas vezes o rosto intocável de Vitti é negado ao espectador, e a vemos, diversas vezes, apenas de costas, a caminhar; assim como Delon. São várias as situações onde a câmera acompanha o andar dos dois, sem cortes, por trás. Há uma passagem curiosa logo no começo do filme, quando Vitti simula uma dança africana, vestida e pintada a “caráter”, em um momento não muito claro, sem muita “coerência” dentro da narrativa; mais adiante Vittoria se depara com trabalhadores “negros” em uma localidade que mais parece um ponto distante do centro, em local mais bucólico. Ela é levemente intimidada pela presença dos dois trabalhadores, e talvez seja uma ligação possível entre a cena da dança africana forçada, – que é muito engraçada e mostra uma Vitti totalmente fora do padrão “blasé” e contido no qual nos acostumamos. A burguesia é retratada, novamente, como classe egoísta, desinteressada e evasiva, em um cotidiano atípico, de suspiros e lamentações a cerca de problemas de origem puramente sentimental, nada mais. A presença do jovem Piero (Delon) parece tirar Vittoria do marasmo em que sua vida se encontrava, mas temporariamente. O vazio das ruas ao decorrer da projeção dá espaço a um ambiente mais movimentado e habitado. Mas o tom desértico do espaço é sufocante, e gera imagens belíssimas de avenidas largas e ruas amplas desprovidas completamente de pessoas. Uma construção, ao final do longa, bastante investigada pela câmera de Antonioni, aparece meio que fora do contexto, mas pode ser associada em um paralelo entre a estrutura em início de obras e o próprio relacionamento dos dois, também novo, fresco e em via de ser construído. A recém separação de Vittoria, e a possibilidade, tão repentina, de novo envolvimento, podem estar associadas ao título do filme. Como em um eclipse Vittoria se encontra, justamente, entre estas duas realidades, em momento de intersecção, de trânsito. Se a interpretação seguir embasada na ideia deste fenômeno astronômico, ela também suscita e trás a tona a noção de passagem; a nova relação, assim, provavelmente não perdurará. É o olhar de Antonioni sob um rápido e breve acontecimento na vida dos dois. Um olhar igualmente espetacular, misterioso e belo, como o de um genuíno eclipse.

“A primeira noite de um homem”, de Mike Nichols, por Camilla Vanessa


O filme conta a história de Benjamin, um rapaz que tem tudo para ser bem sucedido, mas quando começa a se envolver com uma mulher casada sua vida sai dos trilhos. Um jovem com problemas, sem experiência com mulheres; um protagonista desajeitado, quebrando com a expectativa do Galã-Herói- estrela de Hollywood. Uma comédia romântica com poder de quebra e que não deixa a desejar em aspectos técnicos como a maioria de filmes do gênero.

A direção do longa é curiosa. Ela faz de nós confidentes do protagonista, de seus anseios, desejos e angústias. Na festa em que se inicia o filme, a câmera acompanha o estado de espírito do personagem, nos faz conhecer sua mente, seus problemas apenas por movimentos de câmera e uma mise- en- scène sufocante. Há enquadramentos que chamam atenção como na cena em que benjamim está no começo da escada da Sra. Robinson e precisa devolver-lhe a bolsa. A escada serve de bela moldura para a insegurança dele. Os zooms são abruptos, quebrando um pouco a narrativa, mas de certa forma colaborando com a mesma. Quando a verdade é revelada para Elaine, por exemplo, sua mãe se encontra em primeiro plano, então ocorre um zoom out e revela Dustin Hoffmann a certa distância.

O som no filme merece destaque, geralmente vindo fora de cena, para depois ser mostrado onde o mesmo se encontra. O que ocorre na transição da cena da piscina para a cabine telefônica: primeiro escutamos a conversa, depois vemos onde o personagem está. Gritos estridentes, a respiração forte e solitária de Ben antes de pular na piscina revelando mais uma vez o íntimo do personagem, sufocado. A trilha sonora composta para o filme se adéqua a todos os momentos da trama, sendo as músicas usadas em outras trilhas (The sound of silence em Watchmen, por exemplo) . A união entre a música e a narrativa é tanta que até quando falta gasolina e o carro vai desacelerando a música acompanha a diminuição do ritmo. O que traz humor à cena de forma incomum.

Montagem leva a história de forma dinâmica, numa harmonia incrível com a música. Na montagem da cena de Ben no hotel e em casa em diferentes momentos, desnorteia um pouco, mas esclarece a passagem de tempo e certa rotina na vida dela sendo estabelecida. Também certa mudança de atitude por parte dele, que deixa de lado seu futuro promissor e entra num momento de diversão com a senhora Robinson.

Um filme leve, mas que traz inovações, trama e personagens incomuns.

"A aventura", por Lady Patrícia Oliveira



A obra do diretor italiano Michelangelo Antonioni costuma dividir opiniões, mesmo entre seus fãs e admiradores: há os que aceitam que seus melhores filmes são aqueles que foram feitos nos Estados Unidos, como Profissão: Repórter (1975) ou o inglês Blow Up (1966). Outros elegem a sua fase italiana como a melhor, com a sua trilogia da incomunicabilidade. Porém, não há dúvidas da linearidade de sua obra, em que Antonioni usou e abusou da prerrogativa de autor de cinema para tratar sempre, em diferentes graus e perspectivas, dos mesmos temas: o tédio, o individualismo, e a falta de comunicabilidade entre as pessoas.

O primeiro filme da sua já citada trilogia foi A Aventura (1960). Nele temos Anna, uma jovem rica e bonita que participa de um luxuoso passeio de iate com seu namorado Sandro e alguns amigos. Após uma parada numa ilha, Anna desaparece misteriosamente, provocando uma mobilização de Sandro, da melhor amiga Claudia, e dos outros para encontrá-la. O tempo vai passando, e Anna jamais é encontrada. Durante sua procura, seu namorado e sua melhor amiga iniciam um caso amoroso. Aos poucos, a jovem é esquecida, enquanto seus amigos voltam para suas vidas monótonas e sem motivação.

Nos dois filmes seguintes, A Noite (1961) e O Eclipse (1962), que completam a trilogia, Antonioni repete a fórmula ao trazer personagens sempre entediados, principalmente casais, que não conseguem se entender, e que estão eternamente em busca de algo do qual nem mesmos estão certos do que seja. Logo, em A Aventura, o mote (o sumiço de Anna) é apenas pano de fundo para o diretor expor a impossibilidade de entendimento, que parece ocorrer com todos, primeiro com Anna e Sandro, depois entre este e Claudia: está claro que estes últimos não estão apaixonados; ficam juntos apenas por ficar, levados por um impulso, e talvez por certa curiosidade, tal qual seus amigos, que viram no desaparecimento da jovem um acontecimento interessante, fora de rotina, mas que passada a “novidade”, retornam inexoráveis ao seu cotidiano burguês enfadonho. E assim, Antonioni promove o “desaparecimento do desaparecimento”.

Esse foco nas elites era uma das marcas de Antonioni, que pretendia criticar esse estilo de vida fútil, destacando seu vazio existencial. O ex-estudante de arquitetura era dono de um estilo inconfundível, de enorme rigor estético, e tinha uma câmera estudada e elegante. Gostava de incorporar paisagens e logradouros em seus filmes, sobretudo como metáfora dos sentimentos dos seus personagens (aqui, a imensidão do mar e ilhas rochosas e inóspitas, inacessíveis). Ele também dá continuidade a outra de suas características já utilizada no filme anterior, O Grito (1957): a constante deambulação, o vagar sem motivo aparente, como ilustração da eterna busca de algo desconhecido e inalcançável.

O reconhecimento para Antonioni chegou tardiamente. Não obstante serem repletos de beleza visual, seus enredos difíceis e sua narrativa lenta contribuíram por muito tempo para a rejeição do público, que chegou a vaiar A Aventura no Festival de Cannes. Mal sabiam eles que o diretor – que tanto abordou a falta de comunicação entre os seres, e ironicamente morreu impossibilitado de falar – estava apenas iniciando a aventura de ratificar o status do cinema como arte.

"O Enigma de Kaspar Hauser", por Lucas Freire Rafael


Façamos um teste: imagine uma situação bizarra, curiosa e única, algo que você jamais ouviu falar muito menos presenciou. Pronto, pensou? Imaginou? Tenha certeza que Werner Herzog já pensou algo igual ou mais obscuro e muito provavelmente já exista um filme que trate do tema. Baseado em fatos reais, o filme O Enigma de Kaspar Hauser é uma prova disso. Como reagir diante de um ser já adulto que não lê, escreve nem sequer fala? Que nunca aprendeu funções básicas do ser humano como andar e gesticular? E que jamais entrou em contato com outro ser humano? Herzog reúne todas essas questões curiosas e singulares num único filme e personagem e com isso, aproveita para nos propor uma visão diferente e mais profunda da sociedade. E você? Como reagiria?

No ano de 1829, um velho encapuzado à lá Zé do Caixão cria, desde o seu nascimento, um rapaz que supostamente é seu filho. Por algum motivo não revelado, este velho o prendeu, logo após seu nascimento, num calabouço e lá o deixou. Amarrado pela cintura e sem entrar em contato com ninguém mais, o senhor encapuzado o mantém preso, em condições precárias de alimentação e de higiene. É comum imaginar que tal velho deva ter algum distúrbio mental, seja louco, maníaco ou qualquer coisa do gênero, mas não, isso não procede. Não é possível dizer o porquê mais algo naquele senhor transparece o contrário, ele me parece ser lúcido e equilibrado. Maldade também é algo que não enxergo neste velho. Imagino que tais atitudes dele tenham um propósito bem mais obscuro do que simples loucura ou malícia.

Logo ao início do filme, depois que vimos do que se trata aquele enclausurado, o senhor que o cria dá início a trama: ele, rapidamente, faz ensinamentos breves de como escrever e falar algumas poucas palavras, se manter ereto e andar, em seguida ele o leva para uma rua qualquer da cidade de Nuremberg. Neste ponto temos a trama instalada: um ser adulto que não possui nenhuma educação no que diz respeito a funções e reações básicas do ser humano é literalmente jogado no meio de uma sociedade no século XIX.

Esse ato do senhor de o deixar em praça pública me pareceu estritamente pensado. Imagino que tudo feito por ele tem um propósito experimental. Desde o nascimento de Kaspar Hauser (assim o chamam pois essas duas palavras foram as primeiras que aprendeu a escrever), tudo foi meticulosamente elaborado para então, na sua fase adulta, dar início a um experimento que não está diretamente ligado a ele, mas sim, à sociedade que o encontrará.

O filme pode ser dividido em duas fases: a primeira (e menos interessante) demonstra o Kaspar Hauser nos seus primeiros momentos com a cidade e seus moradores, todo o processo de aprendizado, de reconhecimento e de descobertas, tanto da sociedade que o acolheu, quanto do próprio Kaspar Hauser. Pareceu interessante? Também pensei isso, até assistir os primeiros momentos da segunda parte. A passagem da primeira para a segunda fase se dá quando um professor o encontra e o salva em um circo que o exibia numa espécie de freakshow. Logo em seguida, a história dá um pulo e encontramos Kaspar Hauser muito bem instruído, já sabendo se comunicar, escrever e se tratar, até certo ponto, com todos a sua volta.

E aí está, talvez, o verdadeiro propósito do ser Kaspar Hauser. Nesta segunda parte, ele passa, em determinados momentos, a questionar alguns valores daquela sociedade e esses questionamentos passam a intrigar os indivíduos e estudiosos que atentam a seu caso. Como esse rapaz, que há tão pouco foi inserido na sociedade, já consegue questionar e argumentar sobre certos costumes e valores vigentes? Como ele, que não possui uma visão de mundo (na óptica deles) é capaz de tal feito?

Para explicitar tais questionamentos, direi aqui dois momentos do filme. O primeiro se trata quando Kaspar Hauser conversa com a governanta da casa em que mora e pergunta a ela “para que servem as mulheres?” e, conformada com sua situação, a senhora responde que a função dela é servir seu patrão, o professor. Kaspar Hauser indignado tenta inflamar a situação e passa a questioná-la mais e mais, porém, ela alega ser apenas uma governanta e que sua função não passa e nem nunca passará da simples servidão,

O segundo momento é quando um estudioso e matemático vai até a Kaspar Hauser lhe fazer uma visita com a intenção de entender mais a complexidade do caso dele. Neste encontro, o matemático propõe-lhe um enigma cuja saída é apenas uma, não existindo outras respostas ou soluções. É interessante frisar que nessa ocasião, a mesma governanta que foi questionada sobre sua importância, estava presente e desde o início da conversa entre Kaspar Hauser e o estudioso, afirmava e reafirmava que ele jamais seria capaz de responder tal enigma. Pois então, o enigma é proposto e Kaspar H. não sabe responder, o estudioso então lhe dá a única e complexa resposta. Alguns segundos depois, Kaspar H. diz “existe uma segunda resposta para esse enigma”, o matemático, assustado, não acredita e então, com uma simples e óbvia resposta, ele desconstrói toda a lógica do grande estudioso. A partir daí, o matemático fica inconformado com tal resposta e não lhe dá crédito algum por tal solução, afirmando que para tal enigma a lógica deveria ser usada e não a dedução.

Nesses dois momentos é possível enxergar uma necessidade, ou instinto, de Kaspar Hauser ir contra aqueles valores da sociedade. As indagações feitas por ele durante todo o filme soam de forma simples, humilde e singela, sem qualquer pretensão intelectual ou culta. Essas indagações também não são simplesmente jogadas ao léu e esquecidas ou deixadas de lado na cena seguinte. Com o desenrolar do filme, Kaspar Hauser vai aderindo uma incompatibilidade com aquele mundo, aquela sociedade e em determinado momento, durante uma cerimônia e diante de todos da mais alta sociedade local, Kaspar Hauser, visto como alegoria intelectual pelos presentes, afirma num súbito desespero que preferia o calabouço que vivia a sua situação atual.

Ao seu final, quando menos se imagina, o velho encapuzado que havia criado Kaspar Hauser retorna, sorrateiramente, e mata sua própria criação. Pode-se pensar que tal ato foi, mais uma vez, premeditado, como se a sociedade precisasse de mais uma teste: o enfrentamento da morte de Kaspar Hauser. A cena final é claramente uma representação da suposta reação da sociedade com o assassinato. Depois da autópsia realizada em seu corpo, é constatado que em seu cérebro havia deformidades, seu cerebelo era hipertrofiado enquanto outras regiões eram pouco desenvolvidas. E então, o escrivão da cidade, sai da autópsia com notória felicidade, pois havia descoberto o enigma de Kaspar Hauser e o porquê de todas aquelas reações e questionamentos dele. Essa atitude do escrivão só comprova a necessidade da sociedade de transpor para outras áreas, neste caso o cientificismo, a solução para questões bem mais profundas, tão mais profundas que até fogem a nossos conhecimentos. Bem, de uma forma ou de outra, Kauspar Hauser cumpriu sua missão.

É possível identificar que o “enigma” existente no título do filme não se trata do mistério envolvendo a origem de Kaspar Hauser, mas sim, diz respeito à real função deste ser inserido na sociedade. Suas indagações e seus questionamentos permeiam o povoado de Nuremberg com o propósito de incitar valores jamais pensados por eles. Durante certo tempo, é possível acreditar que Kaspar Hauser está surtindo efeito naquele núcleo, mas logo somos surpreendidos (ou não) com a verdadeira reação da sociedade, no caso, o conformismo diante de uma solução cética dada ao caso Kaspar Hauser. Enigma? Não! O caso Kaspar Hauser está devidamente arquivado e engavetado, e se depender de nós mesmos, permanecerá assim. Pois afinal, existe medo maior para a sociedade do que questionar seus próprios valores?

"Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo (Mas Tinha medo de Perguntar)", por Marcílio Camelo


Nas décadas de 1960 e 1970, a poderosa Hollywood tentava se levantar de uma crise que preocupava a indústria cinematográfica americana. A Nova Hollywood, como ficou conhecida essa época de redescoberta fílmica, ao mesmo tempo em que se aproximou do modernismo europeu, aperfeiçoou o modelo de filme de sucesso, o blockbuster. Com temáticas contemporâneas à sociedade americana, o Cinema desse momento abre mão de uma censura ultrapassada e se lança a explorar o meio das drogas, do rock 'n' roll, da violência, do sexo, etc. Nesse cenário, despontam novos autores como o diretor Woody Allen, que consegue transformar o livro Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo (Mas Tinha medo de Perguntar), do especialista em sexo Dr. David Reuben, em uma divertida coletânea de contos inusitados.

Ator e comediante, Woddy Allen explora sete perguntas sobre sexo da maneira menos cientificamente correta, livrando-se qualquer receio para falar sobre o assunto. Logo no início, somos levados a um reino da Idade Média no qual o bobo da corte é o personagem do próprio Allen, que atuará em outros três capítulos do filme. Felix, o bobo que carrega um boneco igual a ele, recebe a visita do fantasma de seu pai, que só poderá descansar caso o filho transe com a rainha. Felix recorre, então, a um afrodisíaco para conquistar a dama, mas o cinto de castidade que ela usa atrapalha seus planos e ele acaba sendo descoberto pelo rei. O hilário fim acontece com o bobo ainda fazendo graça antes de sua execução, na qual aparece a cabeça do boneco decepada.

Percorrendo lugares e épocas diferentes, Allen trata com bom humor o que para muitos é tabu ainda hoje. Seguindo as esquisitices que ocorrem a cada capítulo, vemos a sodomia de um médico que se apaixona pela ovelha de um paciente seu, é descoberto pela esposa num quarto de hotel com o animal, e acaba sozinho bebendo um sabão líquido tão macio quanto lã. O humor bem empregado com um assunto sempre polêmico, prende ainda mais o espectador, e ótimas tiradas garantem a descontração, como o vibrador que o personagem de Woody tenta usar em sua esposa para acabar com a frigidez dela, mas que termina pegando fogo. No próximo episódio, o diretor lança a dúvida de que travestis são homossexuais, mostrando um homem que gosta de se vestir de mulher e tem seu estranho gosto descoberto pela sociedade. Woody também aborda a televisão e seu meio midiático com muito humor, criando um programa de TV que procura descobrir as perversões dos telespectadores e realizar suas fantasias sexuais. Ainda nesse capítulo, o diretor trata comicamente da sexualidade em uma propaganda de condicionador masculino em que o estereótipo de machão é desfeito quando os homens se beijam no final.

Vale a pena falar sobre a paródia da história do Dr. Frankenstein, na qual um médico maluco faz experimentos sexuais em humanos. Seu ajudante, um corcunda medonho também chamado Igor, ficou desse jeito por conseqüência de horas de orgasmo. Mais uma vez como protagonista, Allen interpreta Victor (outra referência ao conto gótico), o mocinho que consegue salvar a cidade de um seio gigante, que mata pessoas espirrando leite nelas. Para fechar o filme, Woody faz uma hilária comparação do corpo masculino a uma máquina, operada por vários homens, desde o momento da conquista da mulher até a ejaculação, sendo o próprio diretor um dos espermatozóides em ação.

O que Woody Allen propôs ao retirar perguntas de um livro sério e criar situações cômicas foi justamente não respondê-las, e mostrar que o sexo não é como a matemática, cheio de fórmulas e regras. A sexualidade é algo estranho, problemático, imprevisível, surpreendente. E por que não engraçado?


Ficha técnica:
Everything You Always Wanted to Know About Sex ( But Were Afraid to Ask)
Título Brasileiro: Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo (Mas Tinha medo de Perguntar)
Direção: Woody Allen
Roteiro:
• David Reuben (livro)
• Woody Allen (adaptação)
Tempo de Duração: 87 minutos
País de Origem: EUA
Ano de Lançamento: 1972
Elenco:
• Woody Allen - Fabrizio/Victor Shakapopulis/Esperma 1
• Regis Philbin - Regis Philbin
• Louise Lasser - Gina
• Lou Jacobi - Sam
• Burt Reynolds - Esperma Chefe
• John Carradine - Dr. Bernardo
• Anthony Quayle - O Rei
• Gene Wilder - Dr. Doug Ross
• Lynn Redgrave - A Rainha
• Ian Abercrombie - Bernardo

domingo, 26 de setembro de 2010

"Acossado", por Ramon Dias Ferreira



A subversão sempre foi parte integrante da arte. Como um círculo vicioso, os movimentos e escolas artísticas são fadados a deparar-se, logo após seu ápice, com questionamentos que colocarão à prova sua estética e significação, para assim reinventarem-se ou abraçarem o seu ocaso. Este é um movimento natural no qual se torna possível a evolução, e coloco aqui a palavra “evolução” não no sentido restrito de aprimoramento, mas sim de surgimento de novos caminhos que, apesar de muitas vezes opostos ao seu predecessor, contribuem para o enriquecimento de sua expressão. E é nesta conjuntura de crise e recriação que se encontra a importância de Acossado.

Após o cume do star-system americano, o cinema europeu irrompe como uma resposta ao modelo hollywoodiano, que no contexto do pós Segunda-Guerra, parecia não fazer mais tanto sentido. Emerge então o neo-realismo na Itália, assim como a Nouvelle Vague francesa, que agora pensavam o cinema como uma expressão mais próxima do ser humano, e serviriam de influência para movimentos mais periféricos, como os Cinemas Novos. Mas além de uma transformação temática, a Nouvelle Vague possuiu também uma característica de revisão da própria linguagem cinematográfica. Os cineclubes e a Cahiers du Cinema já demonstravam o caráter cinéfilo surgido na França entre as décadas de 50 e 60, e foram pilares fundamentais para as discussões que precediam o nascimento da “nova onda” francesa. Surgia a teoria do autor, que retirava o diretor do seu lugar de um mero técnico e o colocava como um artista de fato, capaz de refletir em suas obras estilos próprios e singulares. E dentre estes autores, o que talvez mais tenha experimentado foi Jean-Luc Godard. Já em sua estréia com Acossado, o cineasta proporcionou inovações estéticas que rompiam com os padrões clássicos e revisavam a “gramática” do cinema. Apesar de ainda influenciado pelo cinema americano (a temática gângster, a trilha sonora noir), Godard incorporou tais aspectos a uma forma experimental que ao mesmo tempo negava o próprio modelo que o havia inspirado. Enquanto os americanos diziam “filme apenas em um eixo de 180 graus”, “mantenha a continuidade espaço/temporal”, ou ainda “é impensável o olhar para a câmera”, Godard brincava com essas convenções, em um ato antropofágico que foi muito presente nos anos 60: a assimilação da cultura tradicional para sua consequente subversão.

Contudo, Godard não recriou a gramática, mas sim adaptou-a. Ou melhor, organizou-a de maneiras diferentes. Todas as ferramentas que caracterizam a linguagem cinematográfica estão presentes: os planos abertos, médios e close-ups, os travellings e pans, entretanto, ajustados de uma maneira distinta. Um dos exemplos mais famosos dessa nova “práxis” criada por Godard foram os jump-cuts: cortes rápidos e secos que excluíam o “tempo morto” dentro das cenas. Esse recurso causou forte estranhamento na época, pois apesar dos cortes, os planos mantinham os mesmos cenários, ângulos de câmera e posição de atores dos planos anteriores, algo impensável para os moldes tradicionais. Mas a despeito desse cinema evidenciar o seu caráter enquanto artifício, ocasionando um distanciamento com o público, há os que defendem que essa reinvenção aponte para uma experiência fílmica mais intensa. Em sua idéia de continuidade intensificada, David Bordwell argumenta que desde meados da década de 60, os cineastas desenvolvem um maior repertório de recursos narrativos, num processo gradual que visa uma intensificação na percepção do espectador. Desse modo, pode-se fazer um paralelo entre Godard e outro cineasta de grandeza “inversamente proporcional”: D. W. Griffith. Enquanto Griffith é considerado o responsável pela organização sistemática dos recursos estilísticos que caracterizam a narrativa clássica, Godard foi aquele que “desconstruiu” esses recursos e os re-arranjou de maneiras distintas. O que mudou então não foi o princípio na estrutura narrativa, mas as ferramentas que a constroem.

Completando o círculo citado no início do texto, a Nouvelle Vague perecia à medida que a década chegava ao fim. O mundo havia se transformado, e as questões problematizadas por esses cineastas já não eram mais tão vanguardistas. Emergia nos Estados Unidos a “New Hollywood”, incorporando em suas obras muitas das inovações propostas pelos franceses, assim como estes incorporaram conceitos americanos. Hoje, pode-se perceber claramente o impacto da Nouvelle Vague no cinema de Tarantino ou Guy Ritchie, ou até mesmo no nacional Cidade de Deus. E é por esta fórmula, “vanguarda transforma a tradição, tradição assimila a vanguarda”, que a arte se pluraliza.

sábado, 25 de setembro de 2010

Bande à part, por Lucas Simões


Lucas vê "Bande à part".
Lucas destrói o teclado.
Anna Karina anda de bicicleta.
Lucas perde o foco.
Lucas fica "à bout de souffle".
http://www.youtube.com/watch?v=YVeex4GpQP4
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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

"Avenida Brasília Formosa", por Camila Nascimento


A partir do personagem-sujeito que constrói, o filme "Avenida Brasília Formosa" (2010) nega e assume sua condição de filme de ficção, com requintes de uma “autoria” moderna e mistura uma abordagem poética com um olhar mais objetivo da realidade.

O espaço, que recebe um tratamento estético rigoroso da fotografia, toma a forma de quadros marcadamente ficcionais e contrasta, mas principalmente ressalta uma atuação hiper-real, naturalista, impressionante, dos atores. O filme acompanha de perto a vida de alguns moradores do bairro de Brasilia Teimosa, na periferia do Recife, região de beira mar, ocupada de maneira ilegal por pescadores desde os anos 60 que atravessou inúmeros governos sem receber a atenção necessária até que um projeto Federal de urbanização do atual governo é executado, mudando a vida da população.

São personangens-sujeitos reais que representam a si mesmos dentro de seus espaços sociais habituais. O diretor Gabriel Mascaro aposta numa análise mais profunda de seus personagens do que aquela feita por ele em seu longa-metragem anterior “Por um lugar ao sol”, e consegue aliar a verdade do filme à verdade dos personagens sem opiniões pré-concebidas como fora o caso.

O filme exerce fascínio por manter firme o ponto de vista num entre-lugar entre o real e a ficção ao tempo em que reconfigura o distanciamento brechtiano em uma nova aproximação baseada numa realidade que já está dissolvida na ficção. Através de intervenções mínimas nas vidas reais dos personagens, o diretor traça um fio de narrativa ficcional entre eles e deixa pistas ao longo da estória. Longe de quebrar a ilusão de realidade, estas pistas só intensificam a realidade desta ilusão. Ocorre um casamento entre realidade e ficção como o que ocorre entre os personagens de Hilda Hilst, por exemplo, quando ela os confunde os e os mistura, cada um contendo o outro em seu romance “Estar sendo. Ter sido”. Mas ela o faz através da forma, Gabriel Mascaro fundiu os conteúdos.

Por outro lado, aliando abordagens estéticas mais antigas a uma construção em modelo mais atual, o filme traz uma montagem conceitual que sugere a natureza fragmentária do sujeito contemporâneo na era da predominância das imagens. É um híbrido bem pós-moderninho que apesar dos traços modernos suplanta a sensação de esgotamento contemporânea ao promover uma nova espécie de investigação da realidade não só no cinema, mas através do cinema e da relação do homem com sua imagem.

Ao percorrer os caminhos que constroem a identidade do sujeito num contexto específico – suas relações sociais, inter-pessoais, sua angústias e desejos, o filme adquire um irrevogável caráter político, mais amplo, que tem por base uma análise subjetivista mas mostra e portanto, denuncia, na medida em que é claro em sua escolha pelo discurso consciente.

O filme questiona ainda, a posição do próprio cinema na construção deste sujeito “personagenzado” contemporâneo, na medida em que evidência o poder de penetração das imagens – e, em última instância, discute o poder ideologizante da mídia - através da presença da câmera já naturalizada dentro das casas das pessoas.

O que o filme aponta é, neste sentido, a condição que proporciona sua produção, uma perfusão de fronteiras entre imagem e vida, entre o cinema e a realidade, entre o homem e sua representação.

Ascensor para o cadafalso, por Ana Luiza Fernandes Alencar



Alfredo Manevy descreve Ascensor para o cadafalso como um filme jazzístico que dialoga com o film noir. Essa talvez seja a definição mais precisa para ele, e mais interessante para um filme. Na visão de Amir Labaki, o que existiu foi um casamento perfeito entre a música de Miles Davis e o filme de Louis Malle. Para Marcel Martin, Malle fez uma utilização racional e inteligente do jazz, como um “contraponto permanente a uma ação visual”. Esse recurso obedece ao que ele chama de “música ambientação”, dessa forma, Martin considera que a música opera como um contraponto livre e independente da tonalidade psicológica e moral do filme considerado em sua totalidade (Martin 2007, p.128).

Sidney Lumet em seu livro Fazendo filmes, brinca com o papel da música no cinema, para ele aquele clichê que diz: “vai melhorar quando acrescentar a música” é totalmente verdadeiro. Nas suas palavras: “quase todo filme melhora com uma boa trilha musical”. Ele parte do pressuposto de que a música é um meio rápido de atingir emocionalmente as pessoas, logo o filme de Malle tem a trilha sonora totalmente a seu favor. Tarkovski sugere que a música quando bem utilizada tem a capacidade de alterar todo o tom emocional de uma sequência. Para ele, a música “deve ser inseparável da imagem visual a tal ponto que, se fosso eliminada de um determinado episódio, a imagem não apenas se tornaria mais pobre em termos de concepção e impacto, mas seria também qualitativamente diferente” (Tarkovski 1998, p.191). Prova disto é a uma sequência em que Jeanne Moreau caminha pelas ruas de Paris em busca de seu amante, e a música se torna responsável por transmitir a forte carga emocional da personagem.

Um elemento que condiz bem com a trilha sonora de Miles Davis é a ambientação nas ruas de Paris. A principal metáfora da cidade (como um todo), segundo Walter Benjamin, é a figura da passagem. Jean-Louis Comolli acrescenta a essa figura, a passagem dos homens, das mercadorias, dos desejos e, sobretudo, do tempo. “A cidade filmada se desdobra em um conjunto de temporalidades paralelas, de histórias sobrepostas. O cinema escolhe exaltar a cidade dos mistérios, das conspirações. Tempo, ficção, segredo, invisível, são partes ligadas” (Comolli 2008, p.182). Deleuze percebe na agitação urbana uma figura privilegiada da emoção cinematográfica, “o movimento de movimentos”.

Para Deleuze, Louis Malle procedeu se um modo quase evidente na maior parte de seus filmes, que ele caracteriza por “movimento de mundo”. Segundo ele, é sempre através desse “movimento de mundo” que o personagem se torna capaz de um crime. Em Ascensor para o cadafalso, Deleuze identifica na parada do elevador, o movimento que inibiu o assassino e que por sua vez impeliu outros personagens a praticar seus atos.

A noite, a chuva constante, o brilho das ruas molhadas, as luzes de neon das fachadas dos bares, entre vários outros elementos da estética noir são empregados em Ascensor para o cadafalso, de maneira a aumentar a sensação de incômodo, angústia e insegurança transmitida pelos personagens. Malle emprega na construção do filme também elementos temáticos dessa “estética”, tais como o crime, a traição, a troca de identidades, ou a identidade roubada. Os personagens, porém, parecem escapar das tentativas de enquadrá-los em categorias. A personagem de Jeanne Moreau, por exemplo, não é a típica femme fatale, apesar de ser o motivo de desencadear o crime.

O universo claustrofóbico próprio do film noir encontra no elevador sua forma mais opressiva de representá-lo. Passar um minuto dentro de um elevador já não é uma sensação muito confortável, que dirá passar uma noite inteira? E acrescente a isso, saber que a ajuda não virá e nem poderia. E mais, saber que você cometeu um assassinato e na condição em que se encontra não poderá ocultar a única evidência do crime que aponta você como o culpado. O que dizer de uma situação dessas? Bem, no mínimo angustiante, é quase como se o acaso tivesse se encarregado de punir o assassino, antes mesmo da justiça se encarregar de fazê-lo. E é de fato uma sensação cruel, porque não há meios de escapar, e o mais irônico é que talvez ele nem precisasse ter se dado ao trabalho de voltar para retirar a corda (isso porque há uma cena, quando Florence vai até o prédio onde Julien está, e no seu desespero ela sacode o portão violentamente; se aproxima então dela uma menina para lhe perguntar o que faz ali; as duas vão embora, cada uma para um lado, entretanto, a menina antes de ir embora, apanha no chão uma corda, com os fixadores, exatamente igual a que Julien havia esquecido pendurada).

Contudo, para o personagem, o mais desesperador não era o fato de ficar preso durante uma noite e um dia dentro do elevador, mas sim o fato de que quando saísse dali não seria para ir se encontrar finalmente com Florence, e sim para ir para outra prisão, e essa talvez definitiva. O interessante é que ele mantém uma postura relativamente calma, sua angústia é refletida pelo passar (ou pelo não passar) das horas em seu relógio, que ele se volta constantemente para conferir. Mas calma não é palavra correta para definir sua atitude, frieza está mais compatível. Julien é realmente um personagem interessante, porque ele é cínico, frio, até um pouco rude, porém se revela totalmente diferente através de sua relação com Florence, da qual entrevemos apenas fragmentos, no início, com a ligação telefônica e ao final, através das fotografias do casal.

O espelhismo é um dos elementos recorrentes na estética noir, de acordo com Marcia Ortegosa, ele remete a um universo de aparências, no qual as certezas desapareceram, estabelecendo assim, diversos sentidos. Há dois momentos em que a personagem de Jeanne Moreau se detém para olhar sua imagem refletida, na primeira no espelho do bar, onde entra em busca de vestígios de Julien; a outra, quando ela sai da delegacia e se vê refletida em seu carro. Nessas superfícies refletoras em que as imagens se duplicam e geram uma temporalidade subjetiva, se instaura uma parada, “um tempo para se voltar para si”, nas palavras de Ortegosa. A tentativa da personagem de recompor sua imagem diante desses espelhos se revela frustrada, uma vez que as imagens lhe escapam. O espelho nesse sentido ocupa o lugar da ausência, “do abismo entre a visão das coisas e sua aparência” (Ortegosa 2010, p.22). Além disso, como elemento gerador de cópias, pode ser considerado como uma metáfora da “perda da unidade”. Ele se constitui na verdade como um duplo, a imagem da imagem.

Outra questão recorrente no cinema noir é a da identidade roubada, da simulação, da farsa para fins escusos. Louis, ao roubar o carro de Julien assume sua identidade, incentivado por sua namorada Verónique. Após uma série de peripécias com o carro, acontece o encontro com um casal de turistas alemães. Nesse momento assumem a identidade de senhor e senhora Julien Tavernier. Louis acaba não sendo muito convincente em sua “representação”, colocando em ameaça a “realidade” encenada por ele e Verónique. Descrente da “fachada” empregada por Louis, e prevendo o que este iria fazer, o senhor alemão arma para que não lhe roubem o carro. Ao ver frustrada sua tentativa de roubo e temendo ser entregue a polícia, Louis mata o casal e foge com Verónique no carro deles, acreditando que dessa forma ocultava suas pistas. A polícia acredita então que o crime havia sido de fato cometido por Julien, logo que as evidências não deixavam dúvidas. Neste ponto se instaura uma busca pelo homem errado, algo que remete a Hitchcock e sua obsessão pelo “falso culpado”.

O filme evidencia com que facilidade as posições sociais podem ser invertidas. Com a revelação das fotos, Florence deixa de ser madame Carala, aquela que estava acima da lei, devido ao poder exercido pelo marido. Ao ser cúmplice (e amante) do seu assassino, ela havia abdicado do “direito” que gozava da impunidade, ou do status que a permitia. Mergulhamos então na questão da efemeridade do mundo, no qual o tempo representa o elemento de destruição. Ortegosa destaca que no universo do noir, encontramos a alegoria de um mundo que perdeu seu equilíbrio, resultado da sociedade contemporânea, na qual as pessoas sentem a inadequação, em virtude da extrema fragmentação de suas vidas. Esse mal estar social é responsável por uma constante vertigem e a conseqüente fragmentação das identidades (Ortegosa 2010, p.57).

Louis Malle construiu o filme de forma meticulosa como um quebra-cabeça, no qual as peças vão se encaixando pouco a pouco, mas que para os espectadores já foi dado praticamente montado, o suspense que se cria é que nós sabemos o que os personagens desconhecem. Porém, isso não nos priva de um desfecho surpreendente, pois “o envolvimento catártico é, reforçado por uma estratégia importante e bastante usada: a ilusão de participação na trama. No jogo de ocultar/revelar informações, garante-se uma maior cumplicidade do espectador com a ficção.” (Ortegosa 2010, p.20)

Perdemos a ilusão de que as fotografias são representações fies do mundo, que expressam a realidade “pura”, como acreditava Bazin. Nesse contexto e também no nosso (se podermos provar que não houve manipulação) uma foto equivale a uma prova incontestável de que uma determinada coisa aconteceu. Logo, no desfecho do filme, a prova que esclarece os dois crimes vem através das fotografias contidas em única câmera. Quando as fotografias são reveladas, o mistério também o é. “A água surge como líquido gerador da revelação da imagem, diluída entre os banhos químicos. A água reflete imagens fugidias, levando à vertigem o olhar que a contempla em demasia” (Ortegosa 2010, p.78). Para a personagem Florence a visão daquelas fotografias parece contrapor a efemeridade do tempo, podendo ser vista como um meio de “vencer” a morte, de congelar o tempo, tal como a figura do embalsamento, pensada por Bazin.

Todavia, podemos pensar na metáfora da imagem fotográfica não apenas como um fragmento imagético, mas também como uma narrativa de uma história. Desta forma, ela pode ser como escreveu José de Souza Martins: “memória dos dilaceramentos, das rupturas, dos abismos e distanciamentos, como recordação do impossível, do que não ficou e não retornará. Memória das perdas. Memória desejada e indesejada” (Martins 2008, p.45). A fotografia parece se tratar de fato, como expressou Susan Sontag de “um mundo–imagem, que promete sobreviver a todos nós”. E como completa ela, “hoje, tudo existe para terminar numa foto” (Sontag 2004, p.35).











Referências bibliográficas:



*BAZIN, André. “Ontologia da imagem fotográfica”. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

*COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

*DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007.

*LABAKI, AMIR. É tudo verdade: reflexões sobre a cultura do documentário. São Paulo: Francis, 2005.

*LUMET, Sidney. Fazendo filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.

*MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2007.

*MARTINS, José de Souza. Sociologia da imagem fotográfica. São Paulo: Contexto, 2008.

*MANEVY, Alfredo. “Nouvelle vague”. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. São Paulo: Papirus, 2006.

*ORTEGOSA, Marcia. Cinema noir: espelho e fotografia. São Paulo: Annablume, 2010.

*SONTAG, Susan. “Na caverna de Platão”. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das letras, 2007.

*TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Fahrenheit 451, por Kátia Martins



Em um futuro indeterminado, num Estado totalitário, os "bombeiros" têm como função principal queimar qualquer tipo de material impresso, pois para esta sociedade a literatura levaria à infelicidade. Mas Montag (Oskar Werner) começa a questionar tal raciocínio quando conhece uma mulher que o incentiva a ler os livros antes de queimá-los.

Este é o enredo de Fahrenheit 451 (1966 – François Truffaut); o título se refere à temperatura em que os livros são queimados. E para quem assiste a este filme sem informações prévias sobre ele, é bastante surpreendente ver já na sua seqüência inicial, os bombeiros entrando em ação não para apagar algum incêndio, mas sim para provocar um fogo em alguns livros apreendidos. O protagonista do filme e um dos bombeiros, Montag (Orkar Werner), fazia seu trabalho sem nenhum questionamento, até conhecer Clarisse (Julie Christie), uma professora de primário, que faz perguntas sobre sua profissão e o faz refletir sobre ela, apresentando-lhe também a possibilidade de ler escondido os livros com os quais entra em contato através do seu serviço. A partir disso, Montag fica curioso para saber o conteúdo dos livros e passa a roubá-los das casas em que vai apreender os livros.

Fahrenheit 451, na verdade, é uma crítica contundente sobre o totalitarismo, a ausência de prazer e liberdade intelectual e a alienação das pessoas pela sociedade, alienação exercida especialmente através de meios de comunicação como a televisão. Isso fica bem claro no filme através da direção de arte, que dá bastante atenção aos objetos da casa de Montag, que tem uma presença massiva de aparelhos de TV por toda a parte, além de uma enorme TV na sala principal, muito parecida com as televisões existentes hoje em dia (bem grande e pregada na parede); ou no “jornal” que Montag apanha na entrada da casa, cheio de imagens, sem palavra alguma. A direção de arte do filme, aliás, tem um cuidado especial, já que o filme é futurista, tentando projetar os objetos de um tempo futuro, como no caso da TV. Mas como não poderia deixar de ser, esses objetos são datados, como, por exemplo, o aparelho de barbear mais recente que Montag ganha de sua esposa, Linda e o formato de alguns aparelhos, como o telefone. O figurino é outro aspecto do filme que é datado, e apesar de se pretender uma projeção para o futuro, às vezes cai no velho clichê das roupas prateadas ou brilhosas dos filmes futuristas. Afinal de contas, os filmes são documentos do período de sua produção, e qualquer representação do passado ou do futuro existente em um filme está intimamente relacionada com o período em que este foi produzido.

Mas para além dessa datação, este filme, em se tratando de uma crítica a uma sociedade dominada pelo poder das imagens, paralelamente traz questionamentos políticos e ideológicos ainda bastante atuais.

“Roma, cidade aberta”, por Lucas Mariz



“Roma, cidade aberta” aborda um fato real freqüentemente ignorado pelo colégio nas aulas de história: a resistência italiana contra a ocupação alemã, sua aliada, na segunda guerra mundial.

Particularmente eu nunca tinha parado para pensar na reação da população frente seus líderes durante os períodos de guerra. Normalmente ouve-se o professor dizer: a Itália, junto com o Japão e Alemanha, formavam o Eixo, e tem-se a impressão de que todas as pessoas do país concordam com a ideologia dominante, como se elas agissem feito um bloco. Quando na verdade não é assim. Daí a importância de filmes como este agora analisado, principalmente pela forma como foi realizado.

Em condições mínimas, Rossellini conseguiu rodar o seu filme, dando um marco inicial para o que iria vir a se chamar neo-realismo italiano. Este diretor mostrou que um filme pode ter qualidade mesmo com baixos recursos. O que importa é a criatividade humana e não o poder tecnológico.

A Itália ficou ocupada nos anos de 1943 e 1944, o filme foi rodado em 1945. O realismo alcançado na película nos dá a impressão não de estarmos vendo uma história que aconteceu, mas que a vemos de fato acontecer. Quase como a sensação de comemorar o aniversário um dia depois.

Levar a verossimilhança ao limite é uma característica do neo-realismo. Entre outras técnicas adotadas por este grupo cinematográfico estão: uso de atores não profissionais, trabalhar com o improviso, locações reais, câmera na mão e planos longos. Normalmente o tema é atrelado ao cotidiano. A idéia é captar as problemáticas de um período, registrando-o para sempre.

Em “Roma, cidade aberta”, inclusive, pessoas do bairro interpretaram a si mesmas, e soldados alemães prisioneiros foram personagens de soldados alemães repressores. Algumas tomadas, como a marcha do exército, são filmagens reais, capturadas nos anos anteriores. Os cenários destruídos são realmente construções abaladas pela guerra. Imagino o nível de emoção por parte dos atores ao reproduzir um acontecimento ainda tão fresco na memória. A comoção transborda os participantes da produção e atinge o espectador.

Os protagonistas são resistentes ao domínio alemão. Por isso, vivem basicamente fugindo das garras dos poderosos. Talvez seja essa a sua maior manobra estratégica. Além da necessidade óbvia de salvarem a própria pele, eles ferem a moral do inimigo mostrando que ele não é tão forte assim. Essa luta desleal lembrou-me bastante a ditadura militar aqui no Brasil.

O lado “família” dos revolucionários é bem explorado. Vemos um governo tirano caçando homens simples, que por serem dignos, são forçados a lutar contra as injustiças. Por sua vez não temos idéia da vida pessoal do vilão. Na verdade, ele só sai do seu escritório uma vez, para uma sala próxima. A escolha de ponto de vista beneficia a maior parte da população italiana da época. Se a intenção é entender o clima de um tempo, então é preciso mergulhar na maioria.

Há vários momentos de tensão em que os principais escapam por pouco de serem pegos pelo exército. Em cada novo ataque o enredo dá um pulo. O espectador não sabe o que esperar. Não é um filme clichê ou previsível.

Por fim, os revolucionários são apanhados, torturados e mortos. Graças a uma traição da amante de um deles. Em troca de um casaco de pele ela entrega o próprio namorado. Na execução do padre, as crianças, também guerrilheiras ao seu modo, assobiam uma melodia indicando que a resistência não irá acabar com a morte daqueles indivíduos.

domingo, 19 de setembro de 2010

"Le Monde Vivant", por Rayssa Costa





Nascido em Nova York (EUA), Eugène Green se considera um francês típico, talvez por isso a mudança da fonética de seu nome. Mudou-se para a Europa e lá estudou letras, línguas, história e história das artes; fundou a companhia de teatro barroco Teatro da Sabedoria. Tem uma filmografia pequena, composta por curtas e longas metragens premiados. Suas direções mais conhecidas são seus longas: “Toutes les Nuits” (2001), “Le Monde Vivant” (2003), “Le Pont des Arts” (2004) e “La Religieuse Portugaise” (2009).

Em "O Mundo Vivente", Green traz ao espectador a narrativa do Cavaleiro de Leão que vai a um castelo salvar a donzela da torre do domínio de um Ogro. Nesse caminho, o destemido Cavaleiro encontra um rapaz que o acaba por ajudar nessa luta. A procura do Ogro, o guerreiro e seu “leão” chegam à casa do monstro e encontram então a mulher do bichano. As histórias começam a se entrelaçar e até um pouco a se confundir, mas isso só aumenta meu gosto pelo filme.

O cineasta francês mostrou nessa produção um estilo peculiar: assistimos a um faz de conta cinematográfico. A partir de um registro extraordinariamente fantástico, o filme adquire significados que ultrapassam o tom da fábula. Lembrei de muitas histórias e contos marcadamente infantis, mas fui capaz de expandi-los e acreditar, por exemplo, que quando um coelho é mostrado e dito um elefante, de fato é esse outro animal e isso não é, em nenhum momento, rebebido como trash ou inconsciente. Green se liberta da normativa e transforma os códigos a partir de um conceito próprio. Um cachorro faz o papel de um leão. Ele faz o público enxergar novas formas de percepção no que já é tido como formalizado nas amarras da idéia sã.

O filme é todo trabalhado a partir da ideia do poder do texto. A encenação aqui não foi sensorial, ela se libertou da figuração clássica instalada no cinema. Não é preciso sorrir para se dizer feliz ou chorar quando se está triste. A enunciação é mais um ponto extremamente forte deste filme. Palavras, palavras e palavras, os atores usaram delas para nos tocarem e nos imergirem por completo nas cenas que estão sendo vistas. O cinema de Green além de permitir a fantasia do espectador, também permite a imaginação do próprio cinema como artifício.

O diretor apresenta o inesperado em vários segmentos do filme. O figurino dos atores é paradoxalmente oposto e mesmo assim é aceitado como existente para o público. Enquanto as mulheres vestem-se com longos vestidos ou pequenos adereços mais próximos do que se espera dos contos de fata medievais, os homens usam simplesmente jeans, camisas de botão e sapatos contemporâneos. Enquanto no cenário existiu uma pesquisa técnica e muito cuidado no local onde o filme seria gravado, os artefatos usados pelos personagens, a exemplo das espadas, parecem de brinquedo.

Green, ao mesmo tempo em que quis sair do classicismo rigorosamente formal que uma produção cinematográfica impunha ao filme, preocupou-se também com detalhes marcantes de cena – a fita no cabelo da mulher do Ogro. Estamos no domínio do tempo, ou mais precisamente de uma estranha atemporalidade. É um filme que tem marcas de uma época, mas que não se resume nem se restringe a ela.

"O Mundo Vivente" é um filme incrível e verossímil, e a partir desse paradoxo hipnotiza o espectador. Existem entrelinhas em que Green trouxe à tela algumas ironias ou frases e nomes que talvez merecessem um prévio conhecimento, porém isso não transforma o filme em pílula para um “cabeça” cinematográfico. O filme de Eugène Green é história para se ver e se transmitir, é algo que nós faz acreditar que a imaginação é o mais importante artifício para a criação e para o sensorial, “No mundo vivente, o sopro do espírito é o sopro do corpo”

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

"Jules e Jim – Uma mulher para dois ", por Sofia Donovan


A abertura de Jules e Jim já precede a confusão: Você disse “Eu te amo”, eu disse “espere”, eu quase disse “sou sua” você disse “vá”. Jules (Oskar Werner) e Jim (Henri Serre) são dois jovens que, através de uma identificação incomum, de uma mútua sensibilidade e paixão pela arte, criam uma amizade incondicional. Somos introduzidos a essa amizade rapidamente por um narrador também presente em vários outros momentos do filme. E então conhecemos Catherine (Jeanne Moreau), uma mulher excêntrica e misteriosa com quem Jules começa a ter um caso, e por quem Jim também se apaixona. Ao falar de Catherine sinto-me obrigada a dar uma “fugida” dos limites desse filme.

Esta crítica inicialmente seria sobre Viver a Vida, de Godard, porém uma coisa me incomodou nesse filme: Nana (Anna Karina), a protagonista, não parecia um ser humano, eu não consegui encontrar nela uma “mulher de verdade”. Em meio às suas indagações e contradições eu a perdi, e foi esse o fato que me levou a trocar Viver a Vida por Jules e Jim. A relevância da minha mudança de escolha para essa crítica está exatamente na questão da representação das personagens, que são bem diferentes, mas em ambos os filmes, enigmáticas.

Também tive problemas inicialmente para assimilar Catherine, porém, aos poucos ela foi surgindo: Uma intensificação extrema da mulher, em suas inseguranças e desejos, uma figura instável e encantadora. Ao fim, diferente de Nana, ela se tornou palpável. O problema está em como esse processo ocorreu. Suas ações e intenções foram explicadas pelo narrador e pelo próprio Jules, tirando do espectador a liberdade de assimilar e interpretar sozinho o filme.

Catherine muda completamente a vida dos dois, a música que aparece mais de uma vez no filme “Le Tourbillon de la Vie”, sobre a fascinante femme fatale e encontros e desencontros marca bem a situação que os envolve. Mas o filme nunca perde o ar lúdico, com cenas simples e simbólicas como a em que Catherine se alegra ao sair vestida de homem e ser reconhecida como tal ou a que Jules, Jim e Albert (Boris Bassiak), outro homem que ela conquistará, se admiram com a figura de uma mulher de pedra.

A fotografia fragmentada excitante, as belas locações e as fortes atuações de Catherine Jeanne Moreau e Oskar Werner se complementam.

O filme propõe um amor “livre de hipocrisia” que a insegurança dos personagens, que seus defeitos humanos, impedem que funcione.

Os incompreendidos, por Ricardo Duarte



É de se admirar como Truffaut transformou um potencial melodrama em uma história lírica e madura. Tendo em mãos uma estória envolvendo um menor ignorado pelos pais, fugindo de casa e sendo mandado para um reformatório, o jovem diretor conseguiu fazer um filme em que as possíveis lágrimas da audiência são transformadas em pequenos sorrisos contidos, em que há doçura, mas sempre com a presença do amargo. Tais pensamentos também me ocorreram ao término do filme “Um gosto de mel”, de Tony Richardson, com o qual “Os incompreendidos” possui bastante semelhanças e formaria uma excelente sessão dupla.

Com uma forma de direção mais calcada no modelo clássico, ao menos quando comparada com a de seu colega Jean-Luc Godard, Truffaut conta uma história simples de maneira simples. A influência do neo-realismo é marcada, principalmente, pelo uso de atores não-profissionais e locações externas. Falando-se dos atores, seria um erro não comentar do garoto que interpreta Antoine Doinel, Jean Pierre Léaud, que é o grande trunfo do projeto. Sendo um filme que depende, basicamente, da conexão dos personagens com o público, Pierre brilha ao dar vida a um adolescente comum, com os mesmos anseios e curiosidades do que qualquer outro. Fica-se difícil, até mesmo, dividir o ator do personagem, pois aparenta que um foi feito para o outro. O monólogo de Antoine contando sobre sua vida para uma psicóloga é um dos maiores exemplos da potência artística do garoto.

Embora dito no parágrafo anterior que Truffaut segue mais uma espécie de direção clássica, pode-se perceber nesse filme, um manifesto. Não tão visível, violento e radical quanto o presente em “Acossado”, mas escondido de forma sutil já numa das primeiras cenas. O professor deixa Doinel de castigo e esse escreve uns pequenos versos na parede, sendo repreendido e humilhado pelo docente, que reclama de sua forma de escrever. Sendo preso por regras e normas, o protagonista acaba por ter de quebrá-las para se libertar. Uma grande metáfora ao que os cineastas da nouvelle vague faziam: quebravam as regras asfixiantes do cinema clássico, e tentavam inovar e dar um novo sopro de vida ao cinema francês, tão criticado por Truffaut no ensaio “Uma certa tendência do cinema francês”.

Um dos pontos mais positivos do filme é o seu final. Optando por um encerramento em aberto, o filme deixa com o público o poder de decidir o futuro de seu protagonista (ou deixaria, caso não houvesse continuações). No última cena, na qual Doinel olha para a câmera de uma forma extremamente marcante, vários sentimentos, como o medo, a incompreensão, a dor, são passados apenas com esse olhar, de forma bastante melancólica. O último fotograma é congelado, e o olhar fita fixamente a platéia por mais algum tempo. É o gesto máximo de carinho do diretor. O personagem é congelado após sua triunfante fuga, ficando preso para sempre naquela imagem estática, protegido da ação devastadora do tempo e guardado intacto nos nossos pensamentos, como um inseto no âmbar.

Jules e Jim - Uma mulher para dois, François Truffaut, 1962, por Bruna Belo



Jules e Jim, considerado por muitos a obra-prima de François Truffaut, é seu terceiro filme e um dos que melhor representa a nouvelle vague francesa, fazendo uso de técnicas de filmagem baseadas na improvisação e desrespeitando as regras clássicas da montagem. Baseado no romance autobiográfico de Henri-Pierre Roché, o filme possui dois dos temas centrais da obra do diretor: o amor e as mulheres.

Ambientado na Paris do inicio do século XX, em plena belle époque, conta a história de dois amigos: Jules (Oskar Werner) e Jim (Henri Serre), ambos escritores, o primeiro é austríaco, retraído e introspectivo, enquanto o segundo é francês, bem humorado e extrovertido. Depois de uma viagem às ilhas do mar Adriático, eles conhecem Catherine (Jeanne Moreau), uma mulher livre, liberal e apaixonada pela vida. Ambos se apaixonam por ela, dando inicio a uma amizade sólida e a um dos mais famosos triângulos amorosos do cinema. Jules casa com Catherine e tem uma filha, porém após a Primeira Guerra Mundial – na qual os dois amigos lutam em lados opostos – ela já havia perdido o interesse no seu marido, passando a ter casos extraconjugais. Quando reencontram Jim, Catherine se descobre apaixonada por ele e os três passam a viver juntos.

O filme tem um narrador em off para, como disse Truffaut, evitar o corte dos textos mais belos, dando conta das partes mais densas do livro. Além disso, ele ajuda a dar sentido às ações e diálogos entre os personagens, que, sem a narração, poderiam parecer sem propósito, ajudando na fluidez do filme, que une cinema e literatura de forma encantadora.

Como não podia deixar de ser, Truffaut – um dos fundadores da nouvelle vague – incorporou a Jules e Jim o surgimento de tecnologias de filmagem, a fim de obter a nova linguagem cinematográfica tão desejada, fazendo uso de imagens congeladas e jump cuts. Foram usadas câmeras portáteis as quais, por serem leves, facilitavam a locomoção, já que podiam ser levadas na mão, aumentando a liberdade do cinegrafista (Raoul Coutard) para fazer o que quisesse, por exemplo, algumas cenas do pós-guerra foram filmadas por câmeras montadas em bicicletas. Apesar dessas técnicas já terem sido usadas em seus filmes anteriores, em Jules e Jim o diretor aperfeiçoa seu estilo, marcando uma transição, de uma direção livre e espontânea para uma mais refinada visualmente.

A utilização de congelamento da imagem usado ao longo do filme é um dos aspectos que chama mais atenção na montagem, pois perpetua determinados instantes, como expressões de Catherine e o reencontro dos amigos após a Guerra.
O filme pode ser dividido em três partes, assim como o livro: na primeira ele mostra a amizade de Jules e Jim, como se conheceram, como é a relação dos dois; na segunda parte eles conhecem Catherine, e Jules se apaixona e casa com ela; a terceira começa a partir do envolvimento de Jim com Catherine, concretizando o triângulo. Porém, essa divisão não ocorre apenas no roteiro, essas mudanças também podem ser percebidas através da montagem e da trilha sonora.

A fluidez e “rotação” (swirling) das imagens, a edição rápida e a musica vivaz da primeira parte do filme se encaixa perfeitamente à jovialidade, às brincadeiras e às emoções exageradas dos personagens. Na segunda metade, enquanto nós entramos mais fundo na intimidade dos personagens e enquanto a trama começa a se complicar, o filme desacelera.

A trilha sonora, composta por Georges Delerue, lembra composições de Claude Debussy e Erik Satie, dois dos mais proeminentes compositores franceses do período em que a historia se passa. É possível perceber que a relação entre personagens se torna mais tensa e complicada através do desenvolvimento dos temas musicais, por exemplo: há uma melodia que se repete durante toda a trama quando os personagens se encontram, primeiramente ela é idílica (quando eles visitam o campo e vão à praia de bicicleta), depois, com o decorrer da historia, essa mesma melodia se torna mais lenta e sombria. A partir desta reordenação dos temas musicais no decorrer das cenas, o diretor sugere significados implícitos na narrativa. Todo esse cuidado com a trilha sonora ajuda, e muito, a dar uma unidade à obra. A música Tourbillion, que ficou famosa após o filme, é cantada por Catherine em determinada cena e é capaz de sintetizar em poucos versos a sua personalidade e toda a relação dos três.

Embora Jules e Jim sejam os personagens principais, é Catherine quem rouba a cena, e sintetiza o espírito do filme. É ela quem os guia, comandando a relação entre eles. Jeanne Moreau, após essa sublime interpretação, ganhou fama internacional e passou a ser um dos rostos mais lembrados da nouvelle vague, já que esta personagem é uma das que melhor sintetiza os ideais desse movimento, a confusão e intensidade de emoções.
Com uma sutileza inerente ao diretor, Jules e Jim, se tornou uma celebração à sinceridade para com os seus sentimentos e emoções. Uma das melhores adaptações literárias para o cinema, a história é, como disse o próprio Truffaut, um “perfeito hino ao amor e, talvez, à vida”.



Fontes:
BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. Film Art: an introduction. Ninth Edition. New York, NY: McGraw-Hill, 2009.
http://www.scribd.com/doc/17704250/Jules-et-Jim-Fotonouvellevague

OS INCOMPREENDIDOS – Uma educação, por João Roberto Cintra


No filme “Educação” (An Education, 2009), da diretora dinamarquesa Lone Scherfig, há o confronto entre dois tipos de educação: a formal, tradicional, como se tem nas escolas e uma outra, pouco ortodoxa, a da experiência, do dia a dia. Na Inglaterra dos anos 60, com Beatles e Rolling Stones a ponto de pipocarem, fica difícil para a protagonista não se seduzir em deixar a escola para conhecer o mundo. Entretanto, mais cedo do que esse período, a educação tradicional já não bastava para uma juventude que cada vez mais não queria olhar apenas para professores e livros, mas também para o mundo e fazer dele também um aprendizado.

Talvez seja a partir desses paradigmas sobre a educação que se possa começar a (sem trocadilho) compreender “Os incompreendidos” (Les 400 coups, 1959). Filme de estréia de François Truffaut, ele funciona como uma síntese desse sentimento de inadequação por parte dos jovens à educação tradicional que se impõe como “a verdade”. Antoine Doinel é um garoto que parece não pertencer a qualquer esfera em que esteja: em casa, enfrenta uma mãe descuidada; na escola, entra em conflito com o professor. Nesse meio tempo, suas escapadas à rua, ficando dias sem voltar para casa, parecem ser a melhor parte da sua vida, sem qualquer amarra social e tradicional em voga – apenas a descoberta da cidade e da (sua) própria vida.

Um dos clássicos mais celebrados do cinema, há talvez no enredo e na figura de Antoine Doinel a cara de toda a geração responsável pelo movimento do qual o filme se originou. A Nouvelle Vague trazia nos seus realizadores um olhar para o cinema o mais distante possível do que se vinha produzindo até então. O movimento nasceu dentre outras maneiras de uma consciência sobre a memória e a história do cinema, de como tinha sido feito até então – principalmente pela prática da cinefilia, com jovens assistindo e discutindo os filmes em reunião com amigos. Truffaut, Godard, Chabrol e outros da ‘turma’, começaram a enxergar o cinema de outra maneira – não pela gramática formal de se filmar, mas um modo mais livre, sem amarras desse formalismo. Assim como as experiências que buscava Doinel.

Essa ‘nova onda’ que propunha esses jovens realizadores iria de encontro à forma de se conceber o cinema, de se contar uma história. Isso já é claro na forma quase documental que é contado “Os incompreendidos”. Mais que a história do garoto é um recorte na sua vida, em um momento culminante de passagem da infância para a adolescência. As duas fases são recorrentes em todo o filme: as brincadeiras do protagonista com os amigos, a reação das crianças assistindo ao teatro de bonecos; do mesmo modo, Doinel fuma, rouba, é levado para uma delegacia e depois para um reformatório – universos não mais infantis. Sem grandes amarras na história de começo ou fim, o que temos é a história do ‘entre’, o meio, o que não é ainda. Em suma, um rito de passagem do personagem principal – e um rito também para o seu realizador. O olhar enrijecido dos adultos não via o que Doinel podia ver. Os cineastas da Nouvelle Vague não queriam mais enxergar daquele modo.

Interessante pensar que os filmes franceses até o movimento seguiam as convenções do cinema de forma extrema para parecer o mais natural, o mais real possível. Escrevendo para a revista Cahiers Du Cinema os críticos diziam que as convenções cristalizadas retiravam do público a verdadeira noção do que é real. Nos filmes da Nouvelle Vague essas convenções começaram a ser desrespeitadas em nome de mostrar o tempo inteiro ao expectador que aquilo não era a vida, mas um filme. Quebra de racord, montagem não linear, diálogos livres (sem estar diretamente atrelados a “contar” a história) são algumas das características dos filmes, que causaram estranhamento na época (ainda causam!), mas estão a serviço de uma legitimidade da mise-en-scène menos maniqueísta.

Uma das grandes cenas de “Os incompreendidos” está exatamente no encontro do protagonista com a psicóloga no reformatório: mesmo com a voz dela, há o estranhamento de sua imagem não ser mostrada em momento algum. De forma orgânica, Truffaut nos diz que não há um diálogo entre as duas instâncias, uma via de duas mãos, há, sim, um interrogatório. Apesar do estranhamento, não há nela nada de artificial: as respostas diretas, a inquietação das mãos, o olhar perdido de Doinel para nós (ele olha para a câmera, para a platéia) mostram agora muitas verdades e convergem para uma das mais reais e sinceras passagens que o cinema produziu.