sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A Canção da Estrada (Pather Panchali, 1955) de Satyajit Ray, por Gibran Khalil


A Canção da Estrada é o projeto inaugural do mais importante diretor hindu de todos os tempos, Satyajit Ray. Incorporando elementos do neorrealismo italiano e elementos fundamentais da cultura e tradição da Índia, Ray desenvolve um trabalho singelo sobre a infância, o feminino, o amor e a família.

Em um pequeno vilarejo no interior da Índia, uma mulher cuida da casa e da filha, Durba, tendo ainda que suportar os sonhos do marido e os caprichos de uma sogra na beira da morte. É neste universo repleto de tradição que nasce Apu, uma pequena criatura, o filho homem de uma casa predominantemente feminina.

Uma pequena trama se desenrola durante o filme que em sua maior parte se resume a um relato realista do dia a dia desta família, as dificuldades da mãe, o sofrimento final da avó e as descobertas e experiências dos irmãos Durba e Apu.

Satyajit Ray, com tendências neorrealistas ao estilo de “A Terra Treme” (Lucchino Visconti, 1948), busca com seu filme muito mais que um entretenimento onde a trama evocada é superior aos personagens. É impossível negar, todavia, a face trágica da vida simbolizada pelas forças da natureza – a tempestade e a morte. A morte é dada, ela entristece, mas ao mesmo momento chama a necessidade de um novo recomeço. Os personagens devem continuar independente da tragédia que os abate e essa continuidade da vida, do crescimento - do tempo - é um maravilhoso recurso trabalhado por Ray para
desenvolver a subjetividade dos personagens frente as dificuldades da vida.

Com um realismo que beira ao etnográfico, Ray se aprofunda na individualidade de cada membro da família envolvendo-os em um suave e lento vagar pela tela. Do trabalho doméstico diário da mãe de Apu às meninices da velha que rouba comida na dispensa, tudo é imensamente real e profundamente singelo.

Tecnicamente o filme demonstra o contexto histórico no qual ele foi desenvolvido. Os avanços com o som e a câmera mais viva que nos grandes estúdios (movimentos de câmera na mão, panorâmicas, etc) , as filmagens em locação com atores não profissionais, as panorâmicas leves, as atuações menos melodramáticas que as habituais, tudo isto possibilitou ao filme não só a sua existência por torná-lo mais barato, mas também o seu realismo, sua vivacidade, o seu caráter único, histórico, social. Vemos na tela uma vida, não imortalizada, mas sim, um pai que já faleceu, uma mãe que deixou boas memórias, um jovem que agora é um adulto ou um velho. Assistir A Canção da Estrada é quase como presenciar o fenômeno da criação.

Enfim, tudo é imensamente simples em um realismo profundamente marcando pela simplicidade do povo o qual a história representa. Uma bela aliança de Ray entre técnica, narrativa e atuação.

O olhar sobre a infância transforma as descobertas dos irmãos Apu e Durba em novas descobertas também para os espectadores. Cabe dizer que este é o primeiro filme da trilogia da vida de Apu e alguns acontecimentos marcam imensamente as atitudes do Apu adolescente em “O Invencível” (1957) e o Apu adulto em “O Mundo de Apu” (1959).
Por último, vale ressaltar a grande importância do feminino neste filme. Por mais que seja o ponto de vista de Apu que vai importar nos filmes seguintes, em A Canção da Estrada são a mãe, a irmã e a avó que desempenham os papéis principais da narrativa. A mãe é símbolo de força e de resignação ao lar, a avó é a sabedoria e a irmã o amor ingênuo e o prolongamento da família.

Já o marido é visto como um homem ausente, fraco, indeciso e em alguns momentos egoísta. Em um momento do filme, A mãe de Apu questiona o porque da vida ser tão difícil ao mesmo tempo que reconhece nos sonhos do marido as causas das dificuldades.
Depois da tragédia final, essa sensação da fragilidade do homem fica mais latente.

Narrativamente o pai atua através de sua ausência. Apu não é fruto de uma educação paternal, ele cresce e amadurece diante dos cuidados femininos, e estes traços serão carregados e trabalhados de forma brilhante por Ray nos filmes posteriores.

Enfim, A Canção da Estrada é uma estreia maravilhosa de um dos reinventores do cinema hindu. Singelo, corajoso, belo e bem construído. A família como tema central é uma família que vive, e este “viver a vida” é um dos pontos altos e um dos motivos pelo qual o filme deve ser assistido.