domingo, 10 de agosto de 2014

"Armadilha do destino (Cul-de-sac)", por Heric Bacellar

    
  


  Sem antecipar meu gosto, digo que “Armadilha do destino” é um filme bem estranho, o que, aliás, não é nada de incomum em Polanski. O que gera esse estranhamento não é a característica claustrofóbica, uma marca do autor que se tem, por exemplo, em “O bebê de Rosemary” – uma belíssima obra desse que é um dos grandes cineastas da história – mas a mistura entre tipos psicológicos tão diferentes convivendo em um castelo ilhado em que sua estrada de acesso é coberta pela maré alta da praia. Um lugar em que o noivo George (Donald Pleasance) imaginava ser perfeito para ele morar com sua, muito mais jovem, noiva, um lugar que o livraria das “inconveniências” sociais. Ele é um industrial inglês que nunca deixa o seu papel de gentleman e que nunca toma uma atitude perante uma situação de conflito, o tornando um ser totalmente passivo diante dos outros. Já sua noiva Teresa (Françoise Dorléac), é uma francesa bem jovem que possui uma personalidade totalmente oposta. Não há logo no início como entender que os dois formam um casal de noivos, que apesar de ser visível uma intimidade amistosa entre eles, durante todo o filme não há nada que os ligue amorosamente, nada que faça imaginar o porquê que a jovem e decidida Teresa aceitaria viver com o passivo George num lugar totalmente rodeado por nada – lugar esse que ressalta o título do filme que é uma expressão para beco sem saída, que também ilustra o estado emocional do casal.   O filme possui uma crítica comportamental na forma de humor negro sobre o jeito extremamente “inglês burguês” de George.
  
A trama tem início quando Dickie (Lionel Stander) um bandido beberrão e espalhafatoso aparece diante do casal invadindo o castelo e os obriga a lhe ajudar com seu comparsa Albie (Jack MacGowran) que está ferido por tiros e posteriormente morre. Dickie se faz de hóspede do castelo enquanto espera um transporte de seu chefe, que percebe-se que nunca chegará, e durante esse tempo ele perturba a vida do casal sem nenhuma reação por parte de George, o que irrita Teresa e faz com que ela goze da cara de seu noivo, o provocando até mesmo junto com o bandido, como na cena em que os dois jogam pedras na janela do quarto de George para fazê-lo cavar a sepultura de Albie enquanto eles se embebedam com vodka. Como essa se tem várias outras passagens durante o filme que se vê esse humor no conflito psicológico do casal, em que ele não busca o interesse dela e ela o trai com muitos outros.

    Nas cenas finais Teresa rouba a arma de Dickie e a dá para George expulsar o bandido, este que o ignora e George sem muita percepção de suas ações atira todas as balas do revólver e o mata depois entrando num estado de delírio, é nesse momento que Teresa desiste dele e foge com um amante pela estrada que some com o aumento das marés, George, arrependido de deixa-la ir, corre atrás dela enquanto a maré enche e ele se vê ilhado em cima de uma pedra e chorando – uma cena bem cômica no estilo Ben Stiller.


    Um ponto alto do filme – além da beleza francesa provocadora de Françoise Dorléac - é o personagem vivido por Lionel Stander, que me fez rir e também me fez lembrar logo de cara, tanto pelo porte físico como pela voz, do ator Mickey Rourke nos dias atuais. Outro elemento bem interessante é a trilha sonora jazzística de Komeda que também incorpora o humor colocado no filme por Polanski. Porem diferentemente de outros filmes deste grande mestre, as estranhezas de Cul-de-sac não me agradaram, o filme possui momentos que, na minha visão, se alongam e rastejam desnecessariamente atrapalhando seu rítimo e também não há sentido de aquele casal existir, principalmente naquela situação de em dez meses de noivado estar vivendo no meio do nada de uma maneira totalmente apática e feiamente estranha.

"Tabu", por Daniella Tavares


Na natureza nada se cria tudo se transforma, segundo o químico Lavoisier. Não só para a natureza material das reações químicas é valida a regra, mas para toda manifestação artística. Num mundo em que o novo já perdeu a graça da novidade, Miguel Gomes conseguindo trabalhar com uma forte intertextualidade com o cinema de Murnau e nem por isso o seu filme deixa de ter suas peculiaridades. Em Tabu, além da escolha do nome do filme, como a da personagem Aurora, partirem de nomes de filmes de Murnau; o enredo também sofre a influência do cineasta alemão quando narra a história de amor impossível (Tabu, 1931) e a  história de traição (Aurora, 1927). Tabu dirigido por Gomes assim como o dirigido por Murnau é dividido em dois atos, mas enquanto o deste ultimo começa com o paraíso para depois passar para o paraíso perdido, o de Gomes já começa com a perdição para depois passar para o paraíso, ou seja, há uma quebra no prólogo, o filme começa no tempo atual e pula para o passado.  Característica esta que estar presente não só em Tabu, mas também em ‘Aquele Querido Mês de Agosto’ (2008), produção que pode ser analisada de vários ângulos.
O paraíso perdido, primeira parte do filme, gira em torno de três mulheres: Aurora, Pilar e Santa. Aurora é uma idosa solitária que é viciada em jogos de azar, em quais sempre perde tudo e utiliza sonhos surreais para desculpar o seu vício. Santa, a empregada, sempre pede a ajuda da vizinha dedicada e religiosa, Pilar, para solucionar os problemas da patroa. Embora convivam com Aurora há anos, as duas nada sabem do passado desta. No entanto, Aurora já no leito de morte faz-lhes um pedido: quer um encontro com Gian Luca Ventura. O encontro não acontece, já que Aurora morre antes que Ventura chegue ao hospital e é a partir da sua morte que o seu passado vem à tona. Ventura inicia a segunda parte do filme, Paraíso, na qual conta às duas senhoras a história de amor e crime que viveu há décadas com Aurora no Monte Tabu, um local belo, exótico e imaginário situado na África. Essa segunda parte é contada a partir da memória de Ventura, não contendo diálogos, apenas sons diegéticos. Dessa forma apenas o narrador e a imagem são os responsáveis por nos informar tudo o que sucede.  

Tabu é essencialmente um filme nostálgico, volta a um cinema simples e imagético e é a partir dessa simplicidade que Gomes faz com que seu filme se torne grande. É o tipo de filme que a imagem diz tudo; não é preciso de som, de diálogos ou de cores para compreendê-lo. A volta a uma África colonial descreve o recontro entre passado e presente materializando na questão da memória. Assim Miguel Gomes mostra como o cinema necessita de tão ‘pouco’ para ser maravilhoso.

"Cosmopolis", por Carissa Vieira


Cosmópolis, filme dirigido pelo cineasta canadense David Cronenberg e adaptado de um romance homônimo de Don Delillo, conta a história de um jovem bilionário chamado Eric Packer. Querendo fazer um corte de cabelo ele atravessa a cidade inteira para ter seu desejo atendido. Enquanto viaja por Manhattan faz uma aposta errada e acaba perdendo todo o seu dinheiro. Vendo sua ruína financeira ele acaba fazendo uma jornada de transformação pessoal, mas não necessariamente uma transformação clássica de jornada do herói, onde existe um crescimento no final. A jornada de Eric é muito mais única que isso.

Sem sombra de dúvida Cosmópolis não é um filme fácil. Somos inseridos no mundo de Packer, mas sem nenhuma explicação prévia do que acontece. O filme é contado por cenas aleatórias e que não têm necessariamente uma ligação entre si, o que muitas vezes incomoda; mas quanto mais da realidade de vida do protagonistas nós vemos, mais clara fica a ligação de uma cena até a outra.

Com interpretações muito competentes, onde a frieza e artificialidade estão muito presentes, causando uma sensação de estranhamento e incômodo constante. Também fica difícil sentir empatia pelos personagens, que muitas vezes parecem ter perdido sua humanidade. Com uma encenação marcada pelos diferentes modos de filmar a limusine do personagem principal, é notável o fato desse espaço circunscrito nunca cansar os olhos do espectador.

O longa trabalha com temas bem interessantes como a morte, o futuro da sociedade, o poder do dinheiro, o uso desenfreado da tecnologia, a insatisfação em meio ao excesso, entre outros assuntos bastante pertinentes à estrutura da nossa atual sociedade. Tudo isso é exposto de maneira nada óbvia na tela. Cronenberg quer mostrar o que ele próprio deseja, incitar quem assiste ao filme a pensar em questões muito mais comuns do que acreditamos através do estranhamento que as imagens na tela causam, que suas escolhas na hora da encenação permitem.


Definitivamente é um filme que não agrada a maioria, mas que não foi feito para agradar.

"Palavras ao vento", por Luiz Carlos Nascimento (Lucas Patrese)




O melodrama se constitui, desde sua origem, a partir de uma matriz popular caracterizada pelo excesso/exagero ao retratar a intimidade. Explora esse espaço do íntimo com motivos sentimentais não apenas na relação entre as personagens, mas busca, com isso, um envolvimento do público que se identifica com a ‘estória ali contata’. Douglas Sirk, com seus filmes, conquistou a simpatia dos espectadores; o mesmo não ocorreu com a crítica da época (e mesmo posteriores).  Acredito que a má reputação se justifique pela sua ligação com a Universal (visto como um estúdio brega e kitsch por conta das suas produções melodramáticas – gênero que nunca teve prestígio como o noir, por exemplo) do que por conta das suas realizações.

Fora preciso um distanciamento, não apenas temporal, mas geográfico, para seu nome ganhar prestígio. Isso graças a críticos e realizadores europeus (incluindo Godard e Fassbinder), responsáveis pelo resgate da imagem de Sirk, ao apontarem qualidades e marcas autorais nos seus filmes hollywoodianos. É importante ressaltar que os enredos dos seus filmes nos levam para o contexto social dos Estados Unidos em meados dos anos de 1950 e faz duras críticas à classe média da época.

A questão estética também é outro ponto a ser destacada na sua produção. A maioria dos filmes foram rodados com o uso de technicolor, que davam uma textura esmaltada e apresentavam cores mais vivas na tela. Além de iluminação artificial, fotografia e cenários que eram compostas de combinações diferentes das cores e uso de carrinhos e gruas que possibilitavam maior movimento nas cenas.

“Palavras ao Vento” (1956) é considerado um dos melhores filmes do diretor e conta a história de uma família onde o patriarca, dono de grandes poços de petróleo, vê sua vida ir ao ‘fundo do poço’ por conta dos excessos e mentiras de seu filho Kyle (Robert Sttack numa atuação afetadíssima) que é alcóolatra e sua filha rebelde Marylee (Dorothy Malone, ganhadora do Oscar de Atriz Coadjuvante por sua atuação nesse filme) que tá sempre em busca de aventuras com alguns homens.  O enredo também conta com Mitch Wayne (Rock Hudson) que é o amigo de infância de Kyle e Lucy Moore (Lauren Bacall) que a princípio solucionaria os problemas da família com um casamento (infeliz) com o primogênito.

Como é comum aos filmes do gênero, todas as personagens rapidamente tornam-se infelizes. Mitch apaixona-se por Lucy, mas não pode tê-la; Marylee, desde a infância, é apaixonada por Mitch, mas a personagem de Rock Hudson, interpretando ele mesmo, não tem interesses por mulheres como Marylee. Ela, por outro lado, convence seu irmão de que sua esposa e seu melhor amigo estão mantendo um caso. Com essa trama, aparentemente previsível, é anunciado que uma tragédia acontecerá, assim como já nos é antecipada nos primeiros minutos de projeção.

É verdade que “Palavras ao Vento” é menos visual que o filme anterior de Sirk (meu preferido, por sinal) “Tudo Que o Céu Permite” (1955). Mas se analisarmos um pouquinho mais, perceberemos que há variações de luzes e cores numa única moldura, como de uma forma de ‘retratar’ o estado psicológico/emoções das personagens com áreas escuras que não condiz com o resto da imagem. Também é importante ressaltar momentos marcantes na trama, como na cena em que Marylee dança uma espécie de mambo e, de forma paralela, seu pai, ao subir as escadas, cai ao ter um ataque fulminante.  Essas duas ações paralelas é emblemática (até dialoga com outros momentos da narrativa), no que concerne ao ritmo e os cortes (pra frente e para trás) na montagem e pela própria música, como de um ato sexual onde seu ápice se dá com a queda (literalmente) do velho.

Outro momento de deleite sexual da personagem acontece quando ela encontra-se sozinha no rio e se recorda da infância com Mitch. Enquanto ouvimos vozes de crianças, Marylee morde os lábios e se contorce. Mas a cena que resume todo o filme (podemos comparar com a cena em que a protagonista de “Tudo o Que o Céu Permite” vê a sua imagem refletida num aparelho de tv e isso serve também como síntese) é quando ela (mais uma vez a personagem de Dorothy Malone) senta-se à mesa do pai e acaricia um modelo de torre de petróleo e atrás dela há um retrato dele, imponente, segurando o mesmo modelo.


Com esse ato, Sirk resume todos os elementos que circulam a trama desde o seu início. O trocadilho da réplica da torre de petróleo com algo fálico (numa interpretação Fassbinderiana) tanto representa a impossibilidade de Kyle em ter filhos – lembrei-me de um momento que achei hilário no filme, quando Kyle fica sabendo do médico que é estéreo e, ao sair da farmácia, encontra um menino saltando (loucamente) em um cavalo mecânico – e não poder corresponder às expectativas de seu pai, assim como o fato de Marylee ter perdido o homem que ama. Nisso, Sirk apresenta uma estória sobre fracassos e como o dinheiro não é sinônimo de felicidade. 

"As praias de Agnes", por Maria Alencar


Agnès que um dia já foi Arlette reconstrói nesse documentário autobiográfico séries de situações que fizeram parte de seu passado. Tendo na mudança de seu nome como um primeiro ato explicitado no filme de desmaterialização desse tempo, introduz a ideia que a revisitação proposta por ela à sua infância, juventude

e caminhos que percorreu, sempre ocasionalmente guiada pelo mar, não carregam o apego material a essas memórias.
Ainda que a construção cenográfica inicial se configure em um ambiente extremamente aurático à beira-mar (cada espelho em seus detalhes remonta um momento de sua vida) e os materiais ali presentes se façam vivos em si, ela afirma o desapego ao dizer que não sente saudades da infância. O que se remonta não são as memórias dos fatos, mas sim da sensações. As Praias de Agnes é um memorial afetivo e desafiador da matéria. O que é posto em cena como passado corporificado necessita e é induzido por ela a se resignificar.
Ao criar um dispositivo onde um carroça contendo um projetor que exibe imagens recentes de um falecido ator enquanto é empurrada por seus filhos demonstra, talvez, uma preocupação com o tratamento desses valores emocionais gerando um esforço físico de afastamento da memória tangível, como que um movimento de colocar as coisas em seus devidos lugares.
O espelho que tem a capacidade de replicar todas as suas praias, as câmeras que registram, guardam aqueles poucos momentos em que toda a família se reuniu, o corpo que pode até regressar no espaço. Tudo isso se contrapõe às sensações genuínas de um toque nos cabelos do amado, do encantar-se com o mar e com outras culturas e do enternecer-se perante as crias. É impossível revivê-las, elas ficaram e com elas a vontade de combinar o tempo objetivo com o subjetivo, porém sem descaracterizá-los.
Varda abre seu universo para mais essa experiência norteada pelo desejo dessa combinação, do tempo que pertence a ela nas suas emoções com o tempo  que é próprio dos objetos e que se identificam como ‘meros’ dispositivos.
Enfim, uma história de amor.


sábado, 9 de agosto de 2014

“Tabu” (2012) de Miguel Gomes, por Lucas Mendonça Cecchino


O filme Tabu, de Miguel Gomes, foi para mim uma grande surpresa vinda do cinema português. Além de sua bela fotografia, do excelente trabalho sonoro e pelo modo como é narrado, o sotaque português lusitano dos personagens foi um bônus bastante agradável, principalmente na primeira parte do filme onde há mais diálogos.

Tabu de Miguel Gomes remete diretamente ao Tabu de Murnau. Ou seja, Gomes faz quase uma paródia da obra do cineasta Alemão. O enredo desses dois filmes são semelhantes, a começar pela estrutura. Os dois filmes são divididos em dois capítulos, Paraíso e Paraíso Perdido. O primeiro capítulo do filme de Murnau, intitulado Paraíso, trata de um pescador que se apaixona por uma mulher proibida. No segundo capítulo, Paraíso Perdido, eles resolvem fugir para viverem sua paixão, longe das crenças da ilha da polinésia onde viviam, buscando mais liberdade em um lugar civilizado, o pescador no final das contas acaba morrendo e o amor não se concretiza de fato. O filme de Gomes trata sobre o mesmo tema, mas inverte a ordem dos fatos e os capítulos. O primeiro capítulo, Paraíso Perdido, apresenta Aurora (que é outra referência a outro clássico de Murnau) Uma senhora de idade avançada, em Lisboa nos tempos atuais, que sofre de um mal que não é doença alguma, Saudades. Perdida entre o passado e o presente, no fim de seus dias, como num delírio de reminiscência, remete constantemente a alguns crocodilos (presente de seu marido em tempos passados e que tinha certa obsessão por eles) e um tal de Ventura,  sua paixão juvenil . Aurora vive com sua empregada, Santa, uma negra fria e taciturna, que só faz aquilo que a mandam fazer e que conta com a ajuda financeira da filha de Aurora, personagem que nunca vemos, só escutamos falar.Há também a visinha, Pilar, engajada nos movimentos sociais, que é bastante solitária e sofre de um mal pior que o de Aurora, a Melancolia, saudades de um tempo que talvez nunca existiu, entusiasmada por receber uma freira polaca em sua casa para tentar reviver algum contato perdido no passado, em outras pessoas.

Foi necessária a morte de Aurora para que a narração de Ventura desse vida à segunda parte do filme, Paraíso. Assim a narração volta no tempo em que Aurora vivia em uma fazenda no monte Tabu, na África, que foi palco de uma história de amor e tragédia entre ela e Ventura. É interessante o modo como essa parte da história foi produzida, a começar pela filmagem, foi usada película de 16mm para causar essa estética ruidosa na fotografia, que remete a algo antigo. Na primeira parte utilizou película 35mm, que proporcionou uma imagem extremamente nítida e fotografia em preto e branco impecável.  O trabalho de som dessa segunda parte é bastante complexo do ponto de vista diegético. É evidente a mudança sonora na transição entre a parte um e a parte dois. Os ruídos e barulhos dos ambientes onde se passava a primeira parte dão lugar a um silêncio, onde só se escuta barulhos relevantes ao entendimento das ações dos personagens e a narração em over. De maneira que proporcione uma experiência imagética ao espectador daquilo que está apenas na narração, na fala de um personagem. Esse artifício de flashback que Gomes usa é inovador, mas não é novo. Ele reutiliza recursos da época do primeiro cinema e do cinema clássico mudo de maneira muito criativa, mesclando o passado com o presente cinematográfico. Essas referências aparecem ao longo do filme, como a música das primeiras cenas que não deixam de recordar a trilha sonora dos filmes do século XIX. Essas influências de Miguel Gomes denunciam seu fascínio pela gênese do cinema e por Murnau, em uma entrevista ao criticos.com.br ele diz que: “Murnau é uma referência central para quem tiver visto sua obra. Para mim, ele é a materialização mais pura do cinema. Talvez seja o maior diretor de todos os tempos”.

Assim, Tabu trata sobre o ideal de uma paixão entusiástica e aventureira entre jovens de classes sociais distintas em um tom triste e melancólico, colocando os personagens em impasse entre seguir o lado racional e o emocional, retratando as consequências que ambas as escolhas acarretam. Trata da relação neo-colonialista que perdura até os dias de hoje entre Portugal (e países imperialistas) e países africanos, e a imposição cultural. Faz uma homenagem metafórica a gênese do cinema e ao cinema clássico dos anos 30 em um gênero memorialístico que não é nem um pouco cansativo, como outros exemplos atuais que temos. Em fim, são vários os temas que se pode extrair dessa deliciosa obra de Miguel Gomes.


Uma coisa é certa, se existe algum Paraíso para esse cineasta, esse paraíso trata-se da sala de cinema. 

"Palavras ao vento", por Davi Fox




O filme Palavras ao Vento de 1956, dirigido por Douglas Sirk, segue o modelo clássico do melodrama, mas ao contrário do que se espera normalmente de um filme deste gênero, o roteiro é muito bem escrito e podemos observar um bom aprofundamento dos personagens, o que enriquece a narrativa e não faz do filme, apenas mais um.
O filme gira em torno de quatro personagens e das relações que estabelecem entre si. Mitch Wayne (Rock Hudson), amigo de infância de Kyle Hadley (Robert Stack), o considera um irmão. Desde pequenos os dois se conhecem e passam por várias fases da vida juntos, Mitch sempre ajudando Kyle que se envolvia em muitos problemas, principalmente pelo fato de ser alcoólatra. Marylee Hadley (Dorothy Malone) é irmã de sangue de Kyle e desde pequena é apaixonada por Mitch. Ela, assim como seu irmão também se envolve em muitos problemas, mas não por causa do álcool, ela se envolve com vários homens e é falada pela cidade, suas atitudes parecem ser uma forma de tentar chamar atenção de Mitch.
A quarta personagem do quarteto é Lucy Moore (Lauren Bacall) ao ser contratada como secretária executiva da empresa Hadley (da família de Kyle) se depara com Mitch, que a chama para uma conferência com Kyle. Já podemos observar que Mitch se interessa por ela. Porém, na conferência, Kyle também se interessa por Lucy e age de forma mais direta, chamando-a para viagens e pagando roupas e hotéis luxuosos para ela. Lucy e Kyle acabam se casando.
O início do casamento ocorre sem problemas e os dois ficam felizes. As coisas começam a desandar quando Kyle descobre ser quase estéril, sendo assim, muito difícil de engravidar Lucy e ter um filho com ela. Isso o faz voltar a beber e o casamento dos dois começa a tomar um rumo diferente, com brigas e discussões. Paralelo à questão de ser quase estéril, Kyle é convencido por Marylee que Lucy tem um caso com Mitch (o que não é verdade, apesar dos dois se gostarem).
O grande clímax do filme é quando Lucy descobre estar grávida e conta a Kyle, que por acredita em Marylee, pensa que o filho é de Mitch. Ele vai até sua casa e acha a arma (que Mitch havia escondido por desconfiar que algo de ruim poderia acontecer). Ao tentar matar Mitch, Marylee aparece e consegue impedir que Kyle atire, porém, a arma acaba disparando nele mesmo, que morre.
Um julgamento acontece porque todos acham que Mitch matou Kyle, a única testemunha real era Marylee, que fica sem saber se diz a verdade ou incrimina Mitch. Esse é um dos pontos que o filme aborda de forma muito interessante. O amor que Marylee sente por Mitch é doentio, ela faz de tudo para ficar com ele, mas ele ama Lucy, e agora com Kyle morto, ela sabe que os dois ficarão juntos. Por isso a cena do julgamento é repleta de tensão. Mas tudo acaba bem, ela diz a verdade, mesmo sabendo o que iria acontecer.

O filme é muito bem escrito, o roteiro tem ritmo, e prende o espectador. Apesar de ser um pouco previsível, não deixa de causar tensão em algumas partes. É de fato, um bom filme, que merece um destaque para os filmes de sua geração, e principalmente para os filmes do gênero melodrama.

"Paisagem na Neblina (Theo Angelopoulos)", por Ronald Paixão



Poderia começar esta resenha descrevendo a poética narrativa que se sobressai durante todo o filme, mas não o farei. Começarei do princípio visível, daquilo que nos distancia da história contada na tela e que de certo modo, abrange questões muito além de uma ótica simplista vinda de um espectador comum.

O filme em si poderia ser definido como “estático”; longos planos e pouca inovação no âmbito da montagem. Trarei um exemplo de cena que caracteriza bem esse tipo de inércia: A pequena Voula se agarra ao irmão na cabine do caminhão do estranho que lhes havia dado carona. O motorista diz que vai descansar e sai da cabine, mas acaba retornando pouco tempo depois, já no lado das crianças que ainda descansam, e retira a menina de lá. A cena se estende durante quase dois minutos, focando a lona dos fundos do caminhão, escondendo o ato de estupro que a pobre jovem sofria. E é angustiante a cena pois não vemos o que a acontece, apesar de sabermos, enquanto um carro para na rodovia logo ao fundo do plano, o que estala a mente do espectador num surto positivo “Ela será salva e ele será punido pelo ato!” mas não acontece isso. Durante quase dois minutos observamos apenas a lona do caminhão, verde, sóbria, inerte. Até que o irmão acorda e clama desesperado o nome da irmã.

A composição das cenas também chama bastante a atenção. As crianças parecem sempre miúdas o bastante em comparação com o cenário, isso nos passa uma sensação de impotência, como se tudo ao redor deles os reprimissem e os colocassem na condição frágil de uma criança perdida nas vielas podres de uma sociedade.

Outra coisa também no âmbito técnico/sensível é a sua trilha sonora melancólica. O filme já começa com a trilha que é repetidas vezes inserida em cenas de deixar o espectador com uma certa inquietude fascinante. O som do filme é bem natural, faz com que percebamos de imediato o clímax da cena.

Esquecendo um pouco as questões técnicas, temos uma história que em si já tornaria o filme numa dessas obras primas para guardarmos numa estante. A aventura dos irmãos é totalmente grandiosa e triste. Não sabemos nada sobre o pai deles ou sobre a mãe. Na verdade não sabemos nada. O filme se desenvolve e você permanece não sabendo de nada. A mãe não tem rosto, tampouco o pai. Até que ao serem pegos (as crianças) num trem sem o passaporte, são entregues a polícia e de lá são encaminhadas ao tio, irmão da mãe das crianças, e este diz que o pai na verdade não existe ou deixou de existir, e que a Alemanha (Destino da viagem dos irmãos) foi só uma invenção da mãe deles para que imaginassem como deveria ser a vida do pai. A pobre Voula não acredita no que o tio havia dito e foge, some do nosso olhar.

A Voula talvez seja a personagem mais fantástica do filme, não tirando o mérito do excelente personagem Alexandro que está o tempo todo querendo parecer o mais forte possível, apesar de ser apenas uma criança que sonha com o pai frequentemente. Voula é uma jovem menina que guarda dentro de si um mundo de complicações femininas, e que sofre pelo desespero do irmão de achar o pai. Ela não se rende, pelo contrário. Ela leva o filme nas costas durante quase todo ele, até que o irmão equilibra os pesos. Vítima de um estupro, angustiada por essa Alemanha tão distante, e por essa busca desenfreada que não os leva a lugar algum, acaba por enfraquecer perante a realidade cruel de que eles não conheceriam o pai, mas continua, graças ao otimismo do irmão.

Conhecem Orestes, um rapaz que também enfrenta uma aventura interior. Ator de um grupo teatral falido, e prestes a se alistar no exército. O crescimento dos três personagens é de uma total sensibilidade. Eles são frágeis, frágeis e tão fortes. Até que se separam, rumo as suas aventuras prioritárias.

O fim é totalmente interpretativo. Estão enfim prestes a chegar à Alemanha, logo após o rio. Entram no barco e se lançam no rio que os separava do término da aventura, a tal terra prometida onde o pai mora. A cena escurece e uma voz ecoa firme “ALTO!” e logo após um estampido. Nada vemos novamente, o que acaba por nos lembrar da cena do estupro. Mais uma vez a sensação de inquietude aflora o espectador. Até que Alexandro acorda, cercado pela neblina que esconde tudo. É uma cena muito bonita e confusa. Voula diz em sussurro “Tenho medo” e Alexandro agora, invertendo os papéis do protetor e protegido, repete uma das frases do conto que a irmã lhe contava e que nunca chegava ao fim, sempre os impediam de terminar o conto, mas não dessa vez. “E depois se fez a luz” e a neblina se vai, revelando logo ao fundo uma árvore grande e imponente. Os irmãos se agarram à arvore e o filme acaba.


Acaba-se a aventura, ou ela apenas começou? Paisagem na Neblina meio que não nos responde essa pergunta, talvez não responda pergunta alguma, belo e confuso, como neblina. 

"O fundo do coração", por Alex de Freitas Lira



A história é centrada em um casal, Hank, que trabalha em um ferro­ velho nos arredores de Las Vegas e Frannie ,uma vitrinista de uma agência de turismo. Frannie, é uma sonhadora e ávida por aventuras, enquanto Hank é mais discreto, preocupado em garantir estabilidade ao casal. Após uma discussão no feriado de 4 de julho, após completarem 5 anos desde de que se conheceram, acabam por terminarem a relação e saem ao encontro de novos parceiros pela cidade. Frannie acaba se relacionando com Ray que se dizia pianista e cantor, mas era apenas  um garçom, ao passo que Hank é seduzido por Leila, uma artista de circo, porém ao fim, ambos percebem que tais relacionamentos eram puramente ilusórios e acabam reatando o relacionamento dois dias após o 4 de julho.

Poderíamos dizer que este filme foi uma grande aposta de Coppola, pois filmar um filme inteiramente em estúdio já não era nem um pouco comum no cenário hollywoodiano. O já consagrado diretor foi audacioso, pois somou-se o fato de fazer um filme demasiado simbólico e metafórico, o que não foi de grande sucesso tanto para o público em geral quanto para a  crítica, gerando uma crise ao estúdio levando­ o à falência.

O filme passa longe de ser realista ou naturalista, os cenários são propositalmente artificiais, dando um ar teatral, e a iluminação é surreal, especialmente o vermelho, presente em cenas nas quais as emoções dos personagens estão a flor da pele, as luzes, os neons das ruas, deixam explícita a essência da cidade de Las Vegas, tudo para evidenciar o caráter fantasioso dos romances de Hank e Frannie com seus respectivos amantes, que no fundo nada mais são que projeções do que seria um par ideal para os protagonistas, soma­se a tudo isso, as cenas no estilo musical e a trilha sonora do filme, ao som do jazz de Tom Waits dando um tempero no estilo Broadway ao filme.

 A narrativa do filme tem como finalidade clara apresentar os romances vividos pelos protagonistas com seus amantes como relações puramente fantasiosas, surreais, gerando uma certa confusão ao nos fazer nos perguntarmos se determinadas cenas são de fato reais (dentro da narrativa do filme), como espetáculos ou
sonhos, um simbolismo do escapismo comum na sociedade como um todo.

"Uma mulher sob influência", por Sarayana Leite


Nessa obra de John Cassavetes somos apresentados a um retrato pitoresco e com  típicos questionamentos do início de 1970. O filme sobre uma mulher tendo um colapso nervoso revela o auge do estilo do “pai” do cinema independente norte americano. Com a câmera na mão perseguindo os personagens, respirando e transpirando com os atores, buscando apurar o tom humanista e depurar o voyeurismo inerente ao espectador, temos a sensação de tensão que nos submete a zelar por uma família que não é nossa.

O enredo é singelo, Mabel, uma mulher cujas influências de todo um ambiente patológico apenas gradualmente se revelam, ama apaixonadamente seu marido, Nick Longhetti, os amigos de trabalho dele, objetos que possam lembra-lo e todo seu entorno. Ela também se rende a jornada materna devota ao amor que têm pelos três filhos que, ao contrário do marido saturado pelo trabalho, retribuem instantaneamente o amor que lhes é oferecido durante o transcorrer da película. E no contexto da sociedade conservadora da época, ela também se entedia, bebe, toma pílulas, sai à noite sozinha e procura companhia masculina num bar.

Somos totalmente convencidos pela Mabel louca ou pela Mabel carinhosa e gentil. Zelamos simultaneamente pela mulher afetuosa, materna e bondosa e a mesma esquizofrênica, quase sem distinção. Uma loucura quase sempre manifestando “excesso de amor” como causador determinante desse desvio do centro do comportamento dito lógico. As súbitas reações e os trejeitos criados por Gena Rowlands, o olhar melancólico por vezes, afetuoso e otimista em outras, maternal quase que sempre e sua redenção dramática diante do “olhar” da lente da câmera ágil transborda todo drama do impasse íntimo sem recorrer à interpretação que “excede e chuta o balde para fazer-se verdadeira”.

Os planos-sequências da película estão dentre os melhores da filmografia do diretor, uma aula de direção e atuação, havendo espaço para improvisação por parte dos atores e revelando planos cada vez mais imprevisíveis. Cassavetes constrói a maioria das cenas na tensão ocasionada pela consciência do espectador de que tudo aquilo é inadequado, é falho de bom senso, mostrando-nos a complexidade das relações matrimoniais. Limites como, a placa “Private” (privado) na porta da cozinha e as divisórias da casa, separando um ambiente do outro, quase sempre são desrespeitados. A exposição, principalmente emocional, é rotina da família. Os personagens, na maior parte do tempo, têm atitudes invasivas e, mesmo dotados de boas intenções, confundem e desestruturam pessoas e circunstâncias já fragilizadas. De alguma forma, empaticamente rogamos que se fechem as portas, até mesmo para nós espectadores, e haja privacidade para que a família possa respirar no seu próprio ritmo, sem comportamentos invasivos de outrem.


Mas a tentativa de síntese do título é insuficiente. No transcorrer da película Mabel passa de desequilibrada e causadora de problemas à vítima da agressividade ao seu redor. Vemos que os outros são tão loucos quanto ela pairando num ambiente de ambivalência (a casa). A loucura de Mabel, sua insubordinação ou qualquer sintoma clínico é proveniente dos mesmos motivos responsáveis por gerar o resultado de todo drama ocasionado pela exposição, pela garotinha nua, pelo olhar de apreensão do pai dos amigos dos filhos, pelo olhar de julgamento da mãe de Nick e pela música. E nesse artificio Cassavetes não peca, usando muitas vezes a trilha sonora erudita e a ópera em cenas casuais de convívio familiar caseiro, assim conflitando os sentidos visuais e auditivos. Como no momento em que Mabel e as crianças brincam hiperativos ao ar livre e somos atraídos para o clima pessimista de O Lago dos Cisnes. O resquício de tragédia da cena registra o que não é visível nem palpável, é apenas um delírio de consciência pressagiando o que está por vir. 

"A morte do cisne", por Juliana Casanova




Em "A morte do cisne", o diretor Evgenii Bauer reproduz cinematograficamente a trágica novela de Zoia Barantsevich. É um novo passo na trilha de Bauer na busca das verdades sobre o Amor e a Morte, constantes em sua obra como um todo, por exemplo, em Twilight of a Woman's Soul (1913), Daydreams (1915) e Figli della Grande Città (1915).

A aproximação da literatura e do cinema através da encenação de uma obra literária, a revelação de personagens subjetivamente mais complexos, permeados psicologismos, o uso de intertítulos, o plano fixo, a câmera quase sempre estática, nos permite contextualizar, até pela própria cronologia do cinema mundial, o cinema de Bauer dentro ainda do cinema de transição. 

A trilha sonora que apesar de servir como reforço do entendimento cênico e da própria subjetividade, animus, da personagem principal de forma alguma recai na pura e simples redundância, tendo em vista que ela ultrapassa o limite da trama e a onda sonora resvala na nossa sensibilidade de forma aguda. O auge é atingido no fim do primeiro um quarto (1/4) do filme quando Gizella descobre a traição do seu amado, a composição progressiva dos violinos e piano acompanhando a subida das escadas do amado e sua nova amante, Gizella com passos trêmulos e descrédulos até os olhos enxergarem fixamente o casal à janela. 
Nesse momento, o sofrimento de Gizella é o nosso sofrimento e a música colabora pra isso.
O filme apresenta a protagonista, Gizella, cuja boca é incapaz de pronunciar uma palavra, mas a face e a alma cantam o que há de mais belo, segundo seu próprio pai, e vão muito além das palavras. Em uma caminhada na companhia de seu pai, acabar conhecendo Viktor, rapaz de porte altivo e aparência aristocrática, que inicialmente a coloca diante de sua deficiência, a mudez, causando-lhe um desmoronamento, mas que novos encontros inesperados em jardins e passeios em dias ensolarados, faz florescer o Amor. Gizella é absorvida por um encantamento até assistir incrédula e só o seu bem querer e expectativas amorosas despencar pelo parapeito da janela que emoldura Viktor e uma nova mulher. 

Convencida de que o distanciamento físico é a melhor opção pra recompor sua alma, com a ajuda de seu pai, consegue uma vaga em uma escola de dança. ‘Gizella ama dançar, é sua vida, é sua alma’.
Gizella torna-se uma famosa bailarina e realiza apresentações por diversas cidades. Em uma delas surge a figura de Glinskii, um artista fúnebre obstinado a encontrar o verdadeiro significado da Morte, que ao saber da apresentação de Gizella interpretando ‘A morte do Cisne’ acredita, indubitavelmente, que encontrará a resposta para seu delírio sepulcral. Glinskii em busca de um ‘milagre artístico’ e acreditando que a figura de Gizella invoca a morbidez absoluta, convida-a para servir de modelo para uma de suas pinturas. Gizella aceita e durante as sessões Glinski torna-se seu devoto mais fiel. Gizella passa a ser, então, uma entidade espiritualizada, como a deusa de uma paz mórbida, posto que pra Glinski a paz é o que existe de mais sublime e a maior manifestação de paz é a morte. Glinski, como oferenda, lhe cerca de flores, gestos submissos e, por fim, coroa Gizella sua rainha. Gizella passa do repúdio a devoção exagerada de Glinski e ao fomento de um cotentamento e demonstra até, em certa medida, uma reabertura a novos sentimentos apaixonados depois da traumática relação vivida com seu outro amante.
Depois da alegria com o presente de Glinski, uma coroa, segue-se um crepúsculo onírico com aparências e aparições muito reais. Gizella está em foco dormindo e o movimento da câmera se afastando, nos conduzindo dentro do quarto a um distanciamento da figura de Gizella, a sensação de que estamos sendo levados para outra atmosfera, que depois descobrimos serem os sonhos, ou melhor, os pesadelos de Gizella. O tom cromático do filme assume um teor azulado e torna clara a existência de dois planos no filme, o real e o onírico. Gizella é atormentada pelo fantasma de uma mulher envolvida por um manto aparentemente sagrado, lembrando a figura de uma santa, mas que antagonicamente se mostra uma ‘profeta do apocalipse’, que diz ser a dona da coroa que adorna a figura de Gizella e prevê para esta o mesmo fim trágico daquela, que morreu encarcerada no refúgio de Glinski. Vale dizer que a música engrandece o clima de tensão próprio do pesadelo que nos é mostrado e ajuda a compor um contorno de suspense no filme.
No plano real Gizella reencontra Viktor. O reencontro traz à tona sentimentos e sensações que estavam obscuros e perdidos em um limbo do esquecimento, de forma que Gizella é notoriamente abalada. Viktor, arrependido, tenta arriscar um recomeço com Gizella enviando-lhe um bilhete prometendo dedicar toda a sua vida a ela se assim ela quiser. Gizella então, na dúvida entre delírio e realidade, perdoa e resgata todo o amor por Viktor que triunfa em um beijo e promessa de casamento.


Gizella se veste de uma aura muito branca e resplendente que ofusca e confunde o olhar de Glinski durante o que será a última sessão de modelagem e pintura. Glinski percebe a mudança essencial que aconteceu em Gizella e passa a ver frustrado seu ideal de alcançar o retrato da morte através de sua Arte. No auge de sua obsessão e loucura, Glinski enforca Gizella, matando-a em uma tentativa desesperada de recuperar a exaustão e tristeza dos olhos dela pela qual ele se encantou. Concretiza-se, assim, a ‘profecia’.

"O Grande Hotel Budapeste", por Daniella Tavares


Em 28 de julho de 1914 o Império Áustro-Húngaro declarou guerra à Sérvia iniciando assim a I Guerra Mundial. Cem anos depois, Wes Anderson, com um preciosismo estético, reconstrói a Europa entre guerras em seu mais novo filme, O Grande Hotel Budapeste. O filme que passa numa versão da Hungria foi rodado numa pequena cidade alemã, Görlitz, que faz fronteira com a Polônia e que já foi retradada em filmes sobre a II Guerra Mundial como Bastardos Inglória, Quentin Tarantino, A Menina que Roubava Livros, adaptação para o cinema do livro de Markus Zusak e Caçadores de Obras-Primas, George Clooney. A Áustria não aparece explicitamente no filme, mas sim na sua referencia ao escritor austríaco Stefan Zweig.
Anderson afirmou, durante o Festival de Berlim, que muitas das ideias expressas e exploradas no filme foram roubadas diretamente da vida e da obra de Zweig. Assim como a estrutura da trama (uma história dentro de outra história), a atmosfera do filme e o personagem M. Gustave.
Zero Moustafa (F. Murray Abraham), velho proprietário do hotel de um país fictício do leste Europeu e que dá nome ao título, conta sua história para um escritor (Jude Law) no restaurante do hotel. O lugar é decadente, sem hóspedes, triste, mas não foi sempre assim. Moustafa leva seu interlocutor e o público para os anos quando ele era o lobby boy e seu protetor era o lendário conciérge Gustave (Ralph Fiennes). Viciado no perfume L’Air de Panache,  Monsieur Gustave, enquanto, gerencia o hotel com mãos de ferro para que tudo seja perfeito,  dá uma especial atenção às velhotas milionárias que ali se hospedam. Umas dessas velhotas morre, a Madame D (Tilda Swinton), deixando sua herança para o Monsieur, os filhos se recursam a aceitar o testamento e fazem com que Gustave seja preso acusado pelo morte da velhota. Mesmo na cadeia o gerente do hotel não abandona seus bons modos.
Dessa forma, em um mundo no qual a educação, cordialidade e a memória ficaram perdidas no tempo ou em alguma definição do dicionário, pois se não estão perdidas onde encontrá-las? Na plateia que vaiou a presidenta Dilma na abertura e no encerramento da copa ou nos soldados israelenses que bombardeiam como autômatos a Faixa de Gaza e deixam entre os escombros corpos destroçados de crianças? Anderson nos apresenta M. Gustave que tenta perpetuar valores tidos como arcaicos. Assim o filme é uma luta para manter os padrões de refinamento e o ambiente de luxuosa perfeição que já rareiam no mundo exterior.
O impacto visual obsevado em outros filmes, como Os Excêntricos Tenenbaums (2001), continua com cores marcantes, embora o amarelo dos Tenenbaums seja substituído pelo rosa no Hotel Budapeste. Outra característica do diretor são os cenários grandiosos que faz os seus filmes pareçam um belíssimo livro de ilustrações. Anderson brinca com os exageros apenas para deixar claro o tempo todo que seus filmes são apenas uma grande metáfora de muitas coisas.
O Grande Hotel Budapeste retrata de forma sutil e irônica a passagem da vida perfeita e elegante para frieza das guerras. Assim o estilo clássico, a arte neobarroca e as cores sedem lugar para os regimes políticos totalitários e seus prédios de concreto cinza, frios e robustos. O filme é uma mistura de aventura, comédia, romance, drama, fantasia e quando parece que o caldo vai desandar para uma bagunça desenfreada, a narrativa se recupera e tudo faz sentido novamente.



"Gigi", por Rebeka Barbosa


            Gigi, a exemplo de outros grandes filmes clássicos, é resultado da combinação simples de elementos como uma história de amor numa bela e artificial Paris, vista através dos olhos de Vincente Minnelli, diretor considerado um dos maiores expoentes do musical moderno, e da MGM, no seu ultimo grande filme da era de ouro dos musicais.
            A história se passa na Paris na virada do século XX, na qual Honoré Lachaille (Maurice Chevalier), membro da alta sociedade parisiense desfruta da vida como bem entende, assim como seu sobrinho Gaston Lachaille (Louis Jourdan) jovem rico e famoso que se encontra entediado com sua vida e com o que a sociedade espera dele. Tem, em seus momentos de fuga, a satisfação em frequentar a casa de Madame Alvarez (Hermione Gingold), uma senhora de passado glorioso que mora com a filha, uma cantora decadente e sua neta Gigi (Leslie Caron), uma adolescente inteligente e desinibida.
            Gaston e Gigi se conhecem desde muito jovens, tendo Gaston acompanhado todo o desenvolvimento e transformação de Gigi de garotinha para uma jovem mulher, que, com sua jovialidade encanta o rapaz. Gigi é uma história de amor moldada no estilo dos contos de fada. Uma Cinderela que ao ser notada pelo príncipe, a persegue até que a torne sua esposa, não se importando com sua posição social. Mas o filme certamente vai muito além.
            O ator francês Maurice Chevalier desempenha o novelesco papel de narrador participante no musical de Minnelli. Tem como papel nos localizar no tempo da ação e lança o mote para o filme: "Thank heaven for little girls!" (Obrigado aos Céus pelas Menininhas), que identifica seu espírito namoradeiro, espírito esse que, a partir dali, se estende ao resto do filme. A canção abre espaço para uma corrente interpretativa carregada com um quê de pedofilia; o apreço pelas moças muito jovens soa estranho aos dias atuais, porém compreensível na época retratada no longa.
            Nota-se em Gigi, o tratamento dos cavalheiros franceses destinado às damas de classe inferior e o que era esperado destas socialmente. Enquanto que para a burguesia, a dama deveria preocupar-se em ser culta e distinta a fim de casar-se bem, a de classe menos favorecida devia fazer o mesmo, só que o objetivo era o de se tornar amante e ser protegida economicamente pelos ricos cavalheiros.
            O papel da mulher é retratado de modo divertido, porém sutil. O suicídio da amante é tratado com descaso; o tratamento que as mulheres dão umas às outras e a ambição de conseguir a graça de um rico e o medo de perdê-lo para outra também são pouco explorados, se sobrepondo a preocupação com a vaidade e o luxo.
            O filme retrata a transformação da protagonista de menina para mulher, desde aulas de etiqueta que toma com a sua Tia Alicia até seu casamento. Além de uma história sobre o desenvolvimento de um personagem e que obedece a clássica curva dramática, o musical também valoriza os protagonistas como indivíduos singulares dentro do meio onde vivem. Apesar de rico e famoso, Gaston se entedia com a vida que tem, e Gigi, apesar de pobre não sucumbe ao comportamento habitual de moças da sua idade de casar-se por dinheiro, mesmo que incentivada por sua Tia para esse fim.
            A moça Gigi vai de contraponto às demais personagens, com ares de uma independência e do feminismo que estava nascendo naquele começo de século. Ao recusar a proposta de Gaston, a garota manifesta não se contentar apenas em ser amante, tem ambição e dignidade diferente e à frente daquelas de seu círculo social, no entanto a espontaneidade e perspicácia da personagem, à esta altura, já tem perdido força.
            A marca típica do estilo de Minelli se faz clara no filme. O grande reconhecimento da fotografia, figurino e da direção de arte do filme se devem à experiência e ao conhecimento previamente adquirido por Minelli, que já havia trabalhado como cenógrafo e figurinista.
            A Direção de Arte dialoga com o Vulgar em vários pontos do filme sem se apropriar dele como elemento estético. Os figurinos sempre coloridos e ricos, vão além de vestimentas de época e dialogam com a personalidade dos personagens, inclusive a mudança da Gigi adolescente para uma jovem mulher se dá mais evidentemente pela mudança do seu figurino, que dialoga até com a trilha sonora em alguns momentos, como na canção "She Is Not Thinking of Me" ou "She's So Gay Tonight". A Cenografia Art Nouveau traz sua expressão mais significativa no design dos móveis e na arquitetura dos ambientes internos, em especial o apartamento de Honoré Lachaille.

            Como musical, as sequências musicais são alegres, coloridas e dançantes. Embora longe de filmes muito mais performáticos como Cantando na Chuva e Roda da Fortuna, no qual as sequencias musicais são muito mais elaboradas, Gigi vem com uma proposta diferente quando traz as performances musicais para o cotidiano das personagens, sem perder a essência de sua estética Gigi impõe sua marca da história do cinema para ser sempre um clássico. 

"Beau Travail", por Max Roger




Escrever sobre esse filme foi algo difícil pra mim, preciso confessar. Resolvi escolher uma palavra como ponto de partida. Escolhi hipnose. Sim, esse é um filme altamente hipnótico. Suas imagens repetidas, como a s cenas na danceteria que se reproduzem como uma rotina, e é uma rotina, ou sua palheta de cores, em quase todo o filme reduzida, tomaram meus olhos. Roubaram meus olhos. Beau travail.  

Assim como a sequência de ir e vir de um pêndulo usado pelos hipnotizadores, Claire Denis tem como seu pêndulo os corpos masculinos, belos rapazes em diversos momentos de alta coreografia teatralizada. Não é teatro, é coisa séria, é treinamento de soldados da Legião Francesa na costa africana. Mas ainda assim é teatral. Como todo bom ato teatral tem seu figurino com aqueles soldados não é diferente. Estar uniformizado, inclusive nos momentos de diversão, com vincos perfeitos faz parte do show assistido por todos aqueles nativos e nativas com seus enormes olhos fixos. 

A coreografia é constante. Ela é sonora na música em coro, ela é quase imóvel num momento de energização do corpo pelo sol africano (era isso mesmo que estavam fazendo?), ela é performaticamente mística num ritual de corpos carregando corpos nas ruas da periferia local ou numa cerimonia fúnebre, ela é dançante em um treinamento de luta corporal e ela chega ao seu ápice sendo um fluido ballet aquático.

Uma aura perturbadora de erotismo ronda aqueles homens. O que lhes excita é também seus demônios. O gozo contido, reprimido, auto-policiado, silenciado por uma bala. Uma dúvida é muito gritante: estaria Galoup hipnotizado ao dançar “Rhythm of the Night” de uma maneira enérgica como aquela ou estaria ele auto-hipnotizado em seu ambiente de trabalho, fingindo ser um soldado padrão (entenda-se heterossexual como componente marcante desse padrão) como o membro de uma plateia que ridiculamente acha ser uma galinha num desses espetáculos de hipnose?

"O estranho caso de Angélica", por Hannah Cunha Alves















Em O estranho caso de Angélica (2010), Manoel de Oliveira aborda um tema peculiar e pouco visto em filmes atuais. Passado em 1950, poderia ser retratado em qualquer tempo e espaço; a narrativa segue no ponto de vista de um homem, um fotógrafo introvertido, apesar de abordar o ponto de vista de alguns outros personagens em certa altura da trama. Isaac (Ricardo Trêpa), personagem curioso e complexo,  vê-se na oportunidade de exercer seu trabalho certa noite e sua vida desaba. Com um tom natural e ao mesmo tempo onírico e transcendental, o filme se desenvolve a partir dos monólogos e melancolia vindos do protagonista.

A obra é linear, com quase imperceptíveis e leves passagens de tempo e trilha sonora com Chopin, acompanhando e dando leveza nos momentos certos. Os planos são longos e, na maioria, abertos, mas não cansativos, geralmente centrando em algum objeto/ser ou iluminação, contrapondo com os tons escuros ao redor, deixando-os em destaque, revelando uma facilidade em se apossar e ingressar na trama.

Há certa monotonia, apesar do caráter inquietante que nos faz questionar o viver, no que se diz respeito à narrativa, o que não desmerece o filme, mas o enriquece, somando à vida do personagem que se vê mergulhado em visões e dúvidas. Percebe-se muitos paralelos e menções entre personagens e objetos e animais e o diretor não propõe disfarçar tais comparações e metáforas ou adiar o julgamento do teor da obra – uma vez que há a certeza do que o espectador está embarcando nos primeiros segundos do filme com uma citação de Antero de Quental –, mas deixar o mais claro possível o que está sendo tratado, com sutileza e destreza.

É impossível, também, reparar a religiosidade implícita no filme e não associar a certos padrões e costumes nele apresentados, pois sua relação com o divino é parte central e o que nos faz questionar as decisões e ações do indivíduo dentro e fora da tela.  Seria incompleto se não mencionasse a corrente invisível que o personagem aplica em si, preso no passado, reavivando cenas cotidianas de outrem nas suas fotografias, vivendo por isso. Tal fuga da realidade seria um espelho entre mundos – material e espiritual – cujo devaneio se dá pela incerteza da morte e pelo amor versus obsessão por algo que não se pode ter – ao menos materialmente. Um desespero, sim, pelo amor e por algo mais que a mera existência humana, algo profundo e não carnal; desespero interno alimentado pela necessidade de que um “anjo”, Angélica (Pilar López de Ayala), o liberte das algemas e o carregue para o sublime, afastando-o de suas angústias. As janelas são fechadas, um novo ciclo começa.



"Estranhos no Paraíso", por Alan Douglas


Estranhos no Paraíso é um dos primeiros filmes do diretor estadunidense Jim Jarmusch. O filme, que iria inicialmente ser um curta-metragem, tornou-se um longa graças às sobras de negativos que o diretor Wim Wenders não usou em  O Estado das Coisas. O filme mostra a vida monótona de Willie, que vive em um apartamento na cidade de Nova York e vive de apostas de corridas e trambiques com a ajuda de seu amigo Eddie. Certo dia, Willie recebe a visita da sua prima Eva que veio da Hungria e lá fica por alguns dias. Inicialmente os dois primos se estranham e Eva vai para a casa da tia em Cleveland. Entediados, Willie e Eddie decidem ir até Eva para busca-la e irem juntos à Flórida.

O filme que Jarmusch cria é o que podemos chamar de “não convencional” (principalmente no aspecto técnico). A câmera se mantém estática durante o filme, onde ocorrem longos planos e tudo parece acontecer de forma muito natural. É quase um documentário sobre a vida tediosa de 3 sujeitos. É tudo muito simples, tanto na questão de cenários, os diálogos, trilha sonora, como na interpretação dos atores. Mas isso não significa que o filme seja descuidado ou preguiçoso. Aquele filme que no começo parece ser algo chato de ser acompanhado, cansativo, vai ganhado espaço e se tornando algo bastante curioso e interessante.

 No longa nos é mostrado que o “não fazer nada” para alguns pode ser algo maravilhoso, para outros pode ser um grande tédio. Os personagens no filme são mostrados de forma desleixada. A imagem em preto e branco, o vazio das paisagens, dá um certo ar marginalizado ao filme. Tudo o que os personagens querem é sair daquele lugar, querem desfrutar de novos horizontes. Mas talvez só o fato de ir á outro lugar não seja suficiente para acabar com o tédio existente. É uma mudança muito mais comportamental. O personagem Eddie deixa isso bem claro quando diz: “ Você vai para um lugar novo e tudo parece igual” 
A Flórida ensolarada, tão desejada por Willie, de nada adiantará por si só.

O diretor ganhou vários prêmios com esse filme que é considerado um marco do cinema independente dos Estados Unidos, incluindo a Câmera de Ouro em Cannes. Ele sabe mostrar muito bem o comportamento humano. É tudo muito seco, muito cru, muito Jarmusch.

Ficha técnica:
Direção e Roteiro: Jim Jarmusch
Elenco: John Lurie, Eszter Balint e Richard Edson
Produção: EUA e Alemanha

Ano: 1984 -  P&B  – 89 min.