quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

"Mudanças nos usos cinematográficos do medo" por André Antonio



Filmes assustadores (ou que se preocupassem com monstros e fatos horríveis) sempre existiram, desde a infância do cinema. Mas foi do solo fértil dos anos 80, chamada por muitos de “década perdida”, que brotou um “gênero” bem específico (hoje esgotado) de filmes cujo intuito era dar medo. Acredito, aliás, que a noção do gênero “terror” se formou – ou, pelo menos, se fortaleceu grandemente – nessa época. Vamos à descrição dos pontos principais desse gênero particular oitentista: um serial killer aterroriza um grupo de adolescentes amigos que gostam de rock (este, aliás, acaba dividindo a trilha sonora com as músicas instrumentais “de suspense”) e usam, eventualmente, drogas. Ele mata esses jovens um por um ao longo do filme (o espectador corre o risco de levar um susto a cada morte – muitas vezes insolitamente criativa), ao fim do qual a única sobrevivente é a “personagem principal” – a adolescente CDF, “certinha” e virgem do grupo (a peituda loira e gostosa sempre – sempre – morre primeiro). Esse serial killer não é um homem comum – está envolvido com algo aterrorizantemente satânico ou sobrenatural (nada de realismo aqui, o fantástico é um elemento indispensável), o que faz com que, no último segundo dos finais aparentemente calmos e idílicos, uma pista inquietante seja revelada de modo que o espectador perceba que o serial killer mais uma vez não pôde ser morto – ele voltará na continuação, no próximo longa da “série”.

Quatro dessas séries (Halloween, Sexta-feira 13, A hora do pesadelo e Brinquedo assassino) foram a avenida principal de onde saíram outras ruazinhas (O massacre da serra elétrica, as infelizes continuações – houve três – do Psicose original, as seqüências de O exorcista, Os tomates assassinos, As piranhas assassinas, etc, etc, etc, etc, etc...). Vale a pena percorrê-la rapidamente: O assassino de Halloween é Michael Myers. Quando criança, ele matou, no dia das bruxas, a irmã mais velha. 17 anos depois – justamente no Halloween – ele foge do manicômio onde havia permanecido desde então e, com uma máscara branca inexpressiva, vai atrás de sua outra irmã (Jamie Lee Curtis) e de suas amiguinhas do colegial. A série teve dez filme. Quem aterroriza Sexta-feira 13 é Jason, com sua máscara de rockey. Ele era uma criança retardada que “morreu” afogada no Lago Cristal (num acampamento para jovens norte-americanos no meio do mato) por causa do desleixo dos monitores. Mas, devido a algum pacto demoníaco nunca esclarecido feito pela mãe de Jason, ele não morreu. Nunca morre – volta sempre para matar os novos monitores do acampamento que insiste em ser reaberto, mesmo com esses massacres constantes. 11 filmes no total. A hora do pesadelo é sobre Freddy Krueger, um assassino de crianças que foi queimado por pais furiosos muito tempo atrás. Mas, como vingança, o espírito dele voltou nos sonhos dos novos filhos daqueles pais assassinos. Oito filmes foram feitos. Em Brinquedo assassino, um matador, Chucky, na hora da morte, transfere sua alma para um boneco (ele tinha aprendido uns truques de vodu). Ele aterroriza a vida do jovem Andy, pois, só com a morte deste, pode voltar a ser humano. Cinco filmes. Esses quatro assassinos tornaram-se ícones da cultura pop. Os sucessos estrondosos de bilheteria permitiram a quantidade absurda de “continuações”. A relação dos espectadores com tais filmes estava permeada por uma sensibilidade (“uma das coisas mais difíceis de falar sobre”, segundo Susan Sontag[1]...) que tentarei descrever parcialmente a seguir.

Em primeiro lugar o público majoritário era juvenil (não é à toa a predominância de jovens nas tramas e a trilha sonora de rock). Dentre esse público havia os jovens que eram os fãs do “gênero” (geralmente meninos), outros que eram indiferentes a esses filmes e outros, ainda, que não gostavam, por terem medo ou acharem nojento (geralmente as meninas). Enquanto o primeiro tipo colecionava as fitas dessas séries (a cultura do videocassete ficava cada vez mais forte na época), material relativo a elas e podia assisti-las repetidas vezes, mesmo solitariamente, os outros tipos tinham contato com os longas na maioria das vezes em grupo. A experiência de ver o filme de terror em grupo era especial – tanto no cinema quanto, principalmente, numa “farra” na casa de um amigo. Uns jovens ficavam pregando sustos nos que tinham medo, ficavam comentando o filme, lembrando dos anteriores e conjecturando sobre os futuros, solucionando o mistério da trama, contando histórias “verídicas” que davam medo... esse tipo de experiência, de diversão, pode perdurar (mesmo que de forma um tanto diferente) hoje em dia, mas a gênese dela foi certamente na década de produção desses filmes. E, afinal, o que mais fascinava nestes, o que suscitava a sensibilidade por eles requerida? Citarei alguns elementos específicos: em primeiro lugar o próprio mistério sobrenatural das tramas (nunca de todo revelado; o roteirista não tinha essa liberdade porque a empresa produtora sempre queria apostar numa continuação); a permanência de personagens de longas anteriores da série (quando era o mesmo ator, melhor ainda[2]), principalmente com uma mudança “psicológica” (com a experiência traumática do filme anterior, o personagem está mais “maduro” e “cauteloso”...); sua intertextualidade: imagens (e outras referências) dos filmes anteriores da série sempre apareciam nos longas novos, como piscadelas para quem a acompanhava.

Pode parecer estranho eu citar Aristóteles num texto sobre filmes de terror oitentistas, mas é que o filósofo, na famosa Poética, diz que, na arte, ao contrário da vida real, podemos olhar para cadáveres ou para coisas horrendas em geral de uma maneira segura (ou seja: podia-se, no caso em discussão, ter o mesmo medo que alguém sendo assassinado por Jason, só que sem correr o risco de levar facadas). O medo é o sentimento principal que permeava esse gênero específico de que estou falando. E ele (e o modo como a arte o manipula) pode ser a chave para se investigar dimensões cruciais da vida social, ideológica e inconsciente (no sentido psicanalítico) de certas épocas. Daí meu desejo de um livro aprofundado sobre uma época em que o terror – o medo, o sangue, o susto, o horrível – começou a fazer um sucesso midiático nunca visto antes. O que esse gênero, com essa configuração específica tão bem sucedida, revelava? E, ainda: o que significa a decadência desse gênero (além de, é claro, o esgotamento e o desgaste de seus clichês), de modo que esse tipo de filme desperta, hoje, gargalhadas e outra coisa é que suscita medo em nossa sociedade e no público contemporâneo? Claro que não pretendo responder a essas perguntas num texto como esse, mas as respostas podem passar por análises (à la Fredric Jameson) do “medo do outro” em certas épocas sociais e o modo terapêutico ou neurótico com que a mídia de massa trabalha com ele. Claro, esse gênero, vez ou outra, retorna nos dias de hoje, mas apenas em chave nostálgica e/ou paródica[3] (vide, por exemplo, a trilogia Pânico, que trabalha conscientemente – e ao mesmo tempo com reverência e saudade – os clichês do gênero. A trilogia foi feita na década de 90, quando a crise de tal gênero fez com que o cinema de terror entrasse em momentânea estagnação; Halloween H20 e O filho de Chucky, aquele mais nostálgico, este mais irônico; Freddy VS. Jason, uma “homenagem” a esses dois vilões, etc, etc...).

Mas, passada a estagnação a que eu me referi, o cinema massivo de terror pareceu enveredar por novos territórios (claro, sem abandonar totalmente tudo o que ele aprendeu com aquele “gênero oitentista”). Agora parece que o contemporâneo requer filmes mais “limpos” e sutis, como mostram alguns excelentes longas de espírito recentes (O sexto sentido, Os outros, O chamado, A sétima vitima, etc...); ou, quando é muito sangue o que se quer, essa “limpeza” sai da trama e entra numa espécie de “realismo” (basta citar a série Jogos mortais, que já conta quatro filmes – e o quinto já tem estréia definida[4]). Mais uma vez: o que é possível descortinar com essas mudanças? Sem responder, passo a outro nível da discussão: como no pós-modernismo a prática do Grande Divisor (Huyssen) vem, cada vez mais, se extinguindo (não se sabe ao certo, por exemplo, se M. Night Shyamalan – um dos destaques do cinema de medo atual – é um “massivo” se utilizando da alta cultura ou vice-versa; mas talvez seja até hora de abandonarmos essas categorias...), é relevante darmos uma rápida olhada nos usos mais interessantes que o cinema vem fazendo do medo, recentemente, já que ele começou a ser visto, por artistas cuja preocupação primordial não é o mercado, como um material rico a ser investigado.

Aqui vai uma rápida enumeração: 1) Em vários de seus filmes, David Lynch parece se utilizar com sucesso do medo, em tramas – ou em “fiapos” delas – onde pessoas inicialmente bem centradas e “definidas” psicologicamente começam a entrar em contato com algo muito grande e misterioso, que pode ter a ver com o inconsciente (aqui sombrio e assustador), e cujos principais sinais são a desestruturação dos signos da cultura de massa que permeiam o contemporâneo e um clima onírico e surreal. 2) Alguns filmes de David Cronenberg (principalmente os menos novos) se utilizam com sucesso da gramática massiva dos filmes de terror, mas sem nunca deixar de respeitar certas obsessões do diretor – que parecem indicar imagens de um mundo decrepto, com corpos derretendo como insetos num universo onde a tecnologia parece criar uma forma nova de grotesco. 3) Segundo Slavoj Žižek, para entendermos o subtexto de um filme de terror, basta retirarmos o elemento fantástico da trama sem sairmos dela. Mas Lucrecia Martel já fez isso por nós (principalmente em A menina santa, um filme sobre desejo cuja direção de arte cria um clima que não deve nada aos melhores filmes de espírito atuais). A diretora, em, seu mais novo longa (A mulher sem cabeça), ainda inédito no Brasil, flerta mais “descaradamente” ainda com fantasmas. E seu novo projeto (El eternauta) é baseado em quadrinhos de ficção científica cuja história se passa num futuro escuro e desolador com a presença de extraterrestres. 4) Os créditos finais de Los muertos (Lisandro Alonso) são idênticos (fundo preto,letras vermelhas, música tensa heavy metal) àqueles dos filmes de terror dos anos 80. Eles só vêm a confirmar o sentimento que perpassa o filme todo: uma tensão assustadora criada por um trabalho de som primoroso cujo intuito parece ser mostrar ao espectador uma dimensão sócio-cultural diferente que, apesar de sempre reprimida, quer com força vir à tona.

Walter Benjamin[5] diz que é preciso escrever uma história da literatura esotérica, sob pena de revelações cruciais da história cultural e social serem descortinadas. Aqui faço um segundo apelo: a ciência dos usos que a mídia fez e faz do medo pode iluminar dimensões importantes das relações entre cultura e sociedade. Se isso é verdade, é preciso olhar atentamente, também, para o modo como vários cineastas contemporâneos (apenas quatro citados no parágrafo anterior) vêm moldando o terror. Eles parecem apontar para caminhos estéticos mais amplos...


NOTAS

[1] Em “Notes on camp”. Ver: http://interglacial.com/~sburke/pub/prose/Susan_Sontag_-_Notes_on_Camp.html
[2] Era freqüente um personagem X ser representado por outro ator na continuação de um desses filmes. Nesses casos, na maioria das vezes, pegava-se um novo ator parecido com o antigo e o personagem participava pouco da nova trama. Houve, porém, um caso bizarro em A hora do pesadelo 3. A personagem de Patrícia Arquette permaneceu no 4, mas foi interpretada por outra atriz, inacreditavelmente diferente (só a cor do cabelo era a mesma). Interessante também eram as “desculpas” inventadas porque um personagem saía da seqüência, já que determinado ator não pôde (ou não quis) fazê-la. “Onde está fulano? – Um tijolo caiu na cabeça dele...”.
[3] De fato, para Linda Hutcheon, o pós-modernismo é precisamente esse misto de nostalgia e ironia. Ver: http://www.library.utoronto.ca/utel/criticism/hutchinp.html
[4] Ver: http://www.entretendo.com/jogos-mortais-5-tem-data-de-estreia-definida/
[5] No ensaio “Surrealismo: o último instantâneo da inteligência européia”.

domingo, 7 de dezembro de 2008

"Um gosto de mel" por Lara Asfora


“Um gosto de mel” (Tony Richardson, 1962) aborda vários temas polêmicos, de uma maneira bem sutil, através da história da vida de Jo, uma adolescente do subúrbio de uma cidade inglesa na década de 60. Relata o drama uma garota que vive com a mãe, Helen, se mudando de um lado para outro da cidade por não ter como pagar a seus credores, devido à vida promíscua e desocupada de Helen. Elas mantêm uma relação frágil e praticamente inexistente, já que esta mãe vive em busca de seus próprios interesses, relacionamentos com homens mais jovens que possam suprir suas necessidades. O seu tempo se torna escasso demais para as indagações e carências afetivas da sua filha adolescente que se vê sempre sozinha. O tom rebelde e sarcástico da personalidade de Jo reflete todas as dificuldades da realidade que ela vive e chega a incomodar inclusive os pretendentes da mãe.


O autor consegue através de um cenário rotineiro de cais, fábricas, e moradias singelas imprimir um lirismo tocante, como, por exemplo, na cena em que Jo conhece o marinheiro negro Jimmy e a ele se apega rapidamente por encontrar nele uma pessoa atenciosa e delicada. Vive um amor fugaz, sendo o marinheiro praticamente a sua única companhia. Após um momento íntimo, Jimmy vai embora por causa do trabalho, e Jo se vê novamente sozinha já que a sua mãe resolve se casar com Peter, seu novo namorado que é um homem alcoólatra e grosseiro, deixando Jo ao Deus dará.

A personagem tem que se virar sozinha, logo acha um trabalho em uma sapataria e aluga um quartinho, realizando um pequeno sonho que era de ter o seu próprio espaço. Nessa sapataria ela conhece Geoffrey, um jovem estudante gay. Sem muitas opções, Geoffrey aceita o convite de morar com ela, passam a dividir o mesmo espaço. A partir daí começa a surgir cumplicidade, forma-se uma pequena família suprindo as necessidades afetivas de ambos. Geoffrey,vítima do preconceito homossexual da sociedade, é acolhido por Jo. Esta por sua vez, vítima de uma rejeição por parte da mãe e grávida do marinheiro negro que partiu, recebe cuidado, amor e proteção nunca imaginados de um rapaz desconhecido.

Contrastando com toda dificuldade vivida pelos jovens, surge o gosto mel, que são momentos únicos de beleza e alegria, vivenciados num bolo preparado com carinho, em risadas, brincadeiras, incentivo, proteção e afeto no “segurar das mãos” tão significativos, estreitando cada vez mais a relação deles.

Em algumas cenas do filme vemos os medos de Jo virem à tona, como o medo de ser mãe, o medo de crescer e virar mulher, o medo do bebê herdar a suposta loucura do seu pai, o medo do escuro que existe dentro dela, sem perspectivas de qualquer claridade. Nitidamente vemos estampado o egoísmo de Helen, que só regressa ao ser abandonada pelo marido e não ter pra onde ir. A mesma critica tudo ao seu redor e tenta romper a relação existente entre Geoffrey e Jo, expulsando-o e atropelando os sentimentos da filha, pois a jovem preferia a companhia agradável e sincera de Geoffrey do que da sua própria mãe. O jovem acompanha a situação desastrosa de longe sem conseguir se afastar, porém após notar que Helen vai realmente ficar por lá, se vê obrigado a seguir outro caminho, por mais doloroso que isso seja.

Apesar da situação caótica que Jo está vivendo, ao receber de um criança das vizinhanças um fogo de artifício, ela tem outro momento açucarado estampado em um sorriso, mesmo com um futuro incerto pela frente. O autor faz uma analogia entre o escuro e o brilho do fogo de artifício/ a vida difícil de Jo e o momento efêmero de alegria que ela tem.

"O mundo" por Leonardo Nóbrega da Silva




"O mundo", filme do diretor Zhang-ke, de início aparenta uma simples denúncia política contra o mundo da repetição, da simulação da vida dentro da vida. Algo que se poderia basear na teoria do simulacro de Baudrillard, se não fosse o pessimismo de vida deste autor. O Mundo é o nome de um parque de diversões em Beijing onde estão colocadas várias réplicas dos principais pontos turísticos. Dessa forma, pode se “ver o mundo sem sair de Beijing”. Pegando um trenzinho que roda o parque, pode-se dar a volta ao mundo em apenas quinze minutos. São os apelos da modernidade lançados ao extremo.

O enredo gira em torno de alguns funcionários que trabalham no parque. Tao detém o ponto de vista narrativo. Sua vida fica praticamente toda restrita ao parque: um dia ela pode fazer o papel de indiana e no outro será uma africana. Atrás de uma aparente vida de glamour, vive alguns poucos momentos de felicidade que são sempre quebrados pelas brigas com o namorado, Teisheng. A complexidade desse último personagem vai acompanhar as mudanças que trazem dinâmica ao filme e mostram a beleza e impossibilidade de se simular tudo por aparatos tecnológicos. Teisheng recebe alguns familiares na cidade e, depois de mostrar orgulhoso onde trabalha, os encaminha para as obras onde eles vão poder trabalhar.

Um dos poucos contatos que se tem realmente com o mundo externo é com o grupo de russas que chega para trabalhar no parque, alguns pessoas que ao morar fora, como o ex namorado de Tao e Qun e algumas fotos que mostram locais que o parque não consegue reproduzir.

O mundo, que se propõe simulado totalmente pela proposta do parque, começa a se mostrar extremamente complexo quando se aprofunda na alma de cada um daqueles funcionários. A dinâmica de suas interações faz quebrar as suas aparências de “fakes”, de criaturas fantasmagóricas que vivem naquela simulação que pretende abarcar o mundo todo. A utilização do celular dá um toque descontraído, joga cores e revela os sonhos de quem os utiliza. É pelo celular também que se chegam noticias ruins e que encaminham o filme para o final trágico.

A beleza em tudo é de se mostrar a impossibilidade de se viver esse mundo que muitas vezes nos parece proposto como um dado, um mundo que se vê através da tela do computador, do celular, da televisão. Beijing no filme é colocada como a esperança que já de cara é falsa, o futuro que desde que se chegou já não se faz mais presente. Os planos de câmera que correm o parque podem mostrar uma pirâmide egípcia a alguns metros da torre Eiffel. Toda essa simulação vai perdendo espaço para o enredo estritamente humano, a complexidade das relações, as formas de sobrevivência que cada pessoa arruma. As conversas entre Anna, bailarina russa que chegou com o grupo, e Tao, são reveladoras exatamente desse complexo mundo afetivo. Alguns olhares que elas trocam sugerem sensualidade, porém elas, mesmo não falando a mesma língua, começam a se entender e parecem nos fim das contas serem a únicas pessoas ali a manterem uma relação verdadeira de companheirismo.

“O Mundo” se revela então distante daquela coisa da simulação de Baudrillard, distante do fechado, da simples assimilação, da simples reprodução. O mundo é então o mundo das relações afetivas e dentro deste não se pode utilizar simulacros, as histórias vão ocorrendo ao ritmo pulsante de uma dança: cada passo pode desencadear em outro e não se sabe onde tudo vai terminar. A contingência é a salvação do que se diz o simulacro humano.

"Memórias do Subdesenvolvimento (Tomás Gutiérrez Alea, 1968)" por Rafael Reines


A simples menção da palavra subdesenvolvimento tem tirado o sono de boa parte do povo latino-americano durante muito tempo, ela pode significar que seu país possui uma economia colonizada ou um baixo desenvolvimento industrial (IDH), ou simplesmente significar que o que vem de fora é melhor que o produto interno. Tomás Gutiérrez Alea lida com esse tópico de várias maneiras diferentes em seu filme Memórias do Subdesenvolvimento. O filme é focado na vida e nos pensamentos de Sergio, um intelectual burguês que ficou de fora da revolução - enquanto sua mulher e seus pais fugiram para os Estados Unidos - ele ficou para observar o que iria acontecer a Cuba durante a revolução. Típico homem de classe média alta, Sergio se achava superior aos demais cubanos, principalmente sobre as mulheres, que para ele eram todas fúteis e despolitizadas, ele se via como um intelectual europeu cercado de cubanos que pensavam de forma subdesenvolvida.


Usando cenas documentais da própria revolução cubana ocorrida no início da década de 60 misturadas com uma narrativa ficcional que bebeu diretamente nas águas do neo-realismo, Alea criou uma obra de caráter único que combinava perfeitamente documentário e ficção. Memórias do Subdesenvolvimento foi o 5º filme de Alea e provavelmente seu mais marcante (Morango e Chocolate, de 1994, também chegou a fazer algum sucesso, com uma indicação ao Oscar).
No filme, o termo subdesenvolvimento se refere tanto à estagnação política de Cuba quanto ao falso idealismo de Sergio. O jeito que Alea monta seu filme deve contar como seu próprio ato de resistência política: o material documental chama a atenção para uma dialética complexa do individual-grupal que é discutida por todo país.


Memórias do Subdesenvolvimento chocou os críticos dos Estados Unidos, quando teve seu lançamento pelos lados de lá em 1973, e os americanos descreveram-no várias vezes como "extremamente rico", "enorme e eficaz", "belo e subestimado" e "é um milagre". O filme não é nenhum "milagre" em si, mas simplesmente um dos exemplos mais finos do revolucionário cinema cubano, Memórias também teve uma recepção sem sal dos espectadores cubanos, apenas alguns cinéfilos retornam para vê-lo repetidas vezes. A estrutura complexa e a textura dialética presentes em Memórias do Subdesenvolvimento merecem que essas visões sejam refletidas, porque transforma os temas agora familiares da alienação e do "outsider" (aquele que assiste tudo de camarote) e os inserem num meio revolucionário. Nós nos identificamos e compreendemos Sergio, que é capaz de trazer-nos momentos do lucidez. Entretanto, nós compreendemos igualmente que sua perspectiva não é universal nem é atemporal, mais uma resposta específica a uma situação específica. Alea insiste que tais situações não são permanentes e que as coisas podem ser mudadas com o compromisso e o esforço. A história é um processo concreto e material que, ironicamente, é salvação de Sergio.

sábado, 6 de dezembro de 2008

"Lavando a própria roupa suja" por Anderson Paes Barretto




Minha adorável lavanderia (Reino Unido, 1985) é a prova de que o diretor Stephen Frears desde cedo destoava do cinema comum e comercial. Funcionando quase como um “painel” sobre os Estudos Culturais, o filme traz ainda uma política subjetiva, freqüentemente explícita nos diálogos. O longa traz situações inusitadas, especialmente ao mostrar um relacionamento amoroso entre dois homens de mundos completamente diferentes. Omar é paquistanês, membro de uma numerosa família tradicional, que mora na periferia de Londres. Johnny é um jovem inglês, sem família, que não respeita regras nem valores da própria sociedade, muito menos os costumes familiares. As diferenças culturais são extremamente evidentes e são obvias desde a caracterização dos personagens, figurino, sotaque...



A busca por uma identidade – bem como a sua legitimação – é uma constante em todo o filme através dos seus vários tipos humanos apresentados. O diretor estrategicamente aborda a “nacionalização” dos personagens, no sentido particular de “marcar território”, e assim encontrar elementos que traduzam o sentimento de “estar” no mundo, bem como “pertencer” a um país ou a alguém. Muito maior do que o desejo inicialmente contido do protagonista em sair da dependência do pai, é a sua vontade de ter o seu próprio lugar, mesmo que este seja uma lavanderia da família.



A obra se desenrola e se propõe a mostrar toda uma discussão sobre classes, etnia e gênero, sugerindo uma ampliação dos horizontes políticos e culturais. “Que chance um inglês daria a um paquistanês comunista, que chance daria a um comunista socialista?”. Com isso, o filme explora questões como a tolerância e a convivência entre indivíduos preconceituosos (e distintos em vários aspectos), ironicamente dividindo um mesmo espaço. Há, portanto, uma confluência cultural muito forte, onde muitas vezes nos deparamos com inversões, como por exemplo o fato do protagonista paquistanês não se reconhecer culturalmente em nenhum de seus próprios familiares; seu tio, da mesma forma, um empresário que se relaciona com uma “distinta” senhora inglesa, é chamado de “porco imperialista” por um de seus inquilinos ingleses. “Não há questões raciais na nova cultura empresarial”.



Há também no filme a constante tentativa de expandir ou redemarcar as fronteiras, nem que para isso seja necessário recorrer a apagamentos ou apropriações de espaços ou valores alheios. Entretanto, Stephen Frears tem a preocupação de mostrar uma solução para esses confrontos culturais, e assim, propõe uma hibridização entre as culturas (ampliadas no filme pelas divergências entre as duas nações, configuradas como primeiro e terceiro mundos).



Sendo assim, o diretor aproveita para também criticar politicamente o seu país, através dos discursos tanto dos paquistaneses quanto dos próprios ingleses, proporcionando assim uma opinião e uma “vivência comum” oriunda de olhares diferentes. Essas percepções são obtidas graças também à condição periférica dos personagens (migrantes ou marginais), situados à margem do centro produtor e disseminador de valores sociais, políticos e culturais.



Além disso, nem tudo em “minha adorável lavanderia” é justificado, ou seja, os fatos não apresentam necessariamente uma seqüência lógica, em outras palavras, as cenas não são muito coesas, mas nem por isso, interferem na coerência da obra. Isto é, os fatos são muitas vezes “jogados” na narrativa, mas tudo é rapidamente (e facilmente) compreendido. Outra característica do filme é fato de trazer situações não muito evidentes, a maioria das vezes, feitas “às escuras”, onde a penumbra ultrapassa os limites do discurso e chega à fotografia. Com isso, diversas cenas são filmadas em contraluz, além de inúmeras seqüências noturnas, com tomadas internas, fazendo com que o ar restrito e “escondido” dos acontecimentos seja referenciado também nas imagens.Assim, é perceptível o tom de ousadia do diretor, que ao lavar a “roupa suja” do próprio país, não demonstra receio em sugerir para o público uma realidade atual até os dias de hoje

"Simpatia por Godard" por José Roberto Guerra


Ao assistir Sympathy for the Devil (1968), deparei-me com mais um exercício de extrema ousadia estética e narrativa do Godard e, ao mesmo tempo, com uma profusão de referências políticas e da contracultura.
O documentário segue a linha de outros filmes do diretor. Os cortes secos e os planos longos nos remetem ao Godard de sempre. No entanto, a música dos Stones parece querer falar, ou tocar, mais alto do que o(s) discurso(s) político(s) do filme.


O estúdio


As cenas do processo de criação da música dos Stones parecem estar em descompasso com a melodia (contagiante) da obra... E os fãs da banda que vão a busca de um filme sobre os Rolling Stones ficam sem nenhuma satisfaction. Tais cenas, planos longos, são cortados a seco e a música nunca acelera como (parte) da platéia espera. Na verdade, os versos da letra que ficam se repetindo a cada erro dos músicos parecem falar mais do que o rock em si.
Nesse aspecto, o filme, a música, a banda e Godard fazem sentido como uma grande colagem de referências ao momento conturbado que todos eles estavam vivenciando. E são essas transformações sociais e políticas (principalmente) que soam mais alto no filme.


O mundo lá fora

Os planos que intercalam a banda trazem personagens emblemáticos que de certa forma permeavam o imaginário daquele ano: os Panteras Negras, uma democracia apática (a personagem Eve Democracy) que só responde 'sim' ou 'não' e os trechos em off de textos que remetiam ao marxismo e a necessidade de uma revolução.Em relação à contracultura, as tomadas apresentam os revolucionários de maio de 68, feministas, uma pichadora (criadora de neologismos como "sovietcongs"), um livreiro que lê trechos do Mein Kampf, de Hitler, e vende também revistas masculinos e panfletos marxistas. Nessa confusão (1968) de ideologias, o rock'n'roll passa a ser um interlocutor entre as mudanças que estavam ocorrendo no mundo e a juventude que estava seduzida pelas guitarras

A música


A obra dos Stones funciona como uma costura simbólica dos eventos que são trazidos por Godard nos planos secos. Simbólica porque não fala exatamente sobre o que nós assistimos, mas sobre a inversão de ou o questionamento de valores que permearam aquele ano e que na figura do Diabo ficaram mais claros. O julgamento de Cristo, a revolução russa e o assassinato dos (Robert e John F.) Kennedy estão na música. Por sua vez, o Diabo pede simpatia e polidez e afirma que todo pecador um santo. Além disso, ele é capaz de incriminar nós todos pelos crimes que estavam sendo cometidos, a responsabilidade não era só dele, mas da nossa incapacidade de construirmos um mundo melhor (“I shouted out, "Who killed the Kennedys?", When after all, It was you and me”).


O filme


Em 1968, Godard fazia parte de um grupo de cinema profundamente dedicado ao cinema político, ele tentava descobrir como o cinema poderia ser útil à luta política direta. Nesse sentido, o filme pode ser entendido como um mosaico de época, um tempo em que ainda se acreditava que a revolução mudaria o mundo. Acreditava-se no homem e nas suas potencialidades. Um homem talvez mais humanista.

Em relação a essa vontade de lutar, o filme naturalmente me remeteu a algumas imagens glauberianas. O esforço de mudar o mundo, a função da arte libertadora (a música em Godard e a poesia em Glauber), as manifestações populares como formas de contestar o poder tirano... Por fim, o filme me surpreendeu mais por seus aspectos fílmicos do que pela música, que num primeiro momento parecia ser o mote da narrativa.

"Sem dogmas, nem compaixão: A culpa é do Fidel" por Márcia Larangeira Jácome



Paris, em 1970, era uma cidade para onde convergiam muitas pessoas de diferentes partes do mundo, numa rota de fuga dos regimes de exceção e/ou das misérias que as civilizações do hemisfério Sul herdaram de décadas de regime colonialistas (promovidas, inclusive, pela própria França) em busca de um lugar ao sol. É nessa Paris, mítica e politizada, que se ambienta o filme “A Culpa é do Fidel”, da cineasta Julie Gavras.

Logo na primeira cena Julie nos apresenta Anna em seu universo mais que particular: em um banquete de casamento em uma mansão no interior da França, ela ensina primos e primas a usarem talheres para comer frutas. Esta ‘pequena dama’ de nove anos de idade nos convidará a re-visitar um tempo de mudanças que, há cerca de 40 anos, marcaram o mundo de maneira inquestionável (!), alterando profundamente concepções e práticas sociais, políticas e culturais. Um mundo que neste filme – como na vida real – constrói o mundo interior desta e de muitas outras Annas, ao mesmo tempo em que é reconstruído por este.

O enredo é simples: Anna e seu pequeno irmão François são criados na tradição burguesa, com direito à educação em colégio de freiras e vivem com seus pais: a jornalista Anna e o advogado espanhol Fernando.Com eles/as também vive Filomena, empregada cubana auto-exilada em Paris. Tudo parece correr bem nesta família até a chegada da irmã de Fernando, Marga, e sua filha, Pilar. Depois que o marido de Marta, Quino, foi assassinado pela ditadura de Franco, ambas vêm passar uns tempos com a família até conseguirem um apartamento para se estabelecerem na cidade.

Essa presença provoca uma reviravolta no interior da família de La Mesa, abalando certezas, convicções, valores, sentimentos de segurança. E transforma-se no mote para se recuperar memórias, revirar culpas não expiadas, a partir das quais seja possível assumir valores e causas ‘secretas’ e, com isso,‘fazer as mudanças que precisam acontecer’, como Fernando explicaria, mais tarde, a seus filhos. Mudanças que dizem respeito à responsabilidade de cada pessoa para com a construção de um mundo justo e solidário.

Assim, por insistência de Marie, o casal parte em viagem ao Chile, às vésperas da eleição à presidência de Salvador Allende. Ao retornarem para a França, se envolvem em um grupo militante de apoio à democracia aquele país. Ao mesmo tempo, Marie aproxima-se de um coletivo feminista, envolvendo-se na defesa do direito ao aborto legal e seguro. A partir dessas duas situações a situação da família muda para sempre e, por meio desses fatos, teremos a chance de acompanhar Anna nas tentativas de romper os limites seus e do contexto familiar e escolar para refletir e criar uma compreensão muito própria do que se passava à sua volta.

Este talvez seja o maior – embora não o único –trunfo do filme de Julie Gavras: a capacidade de recriar, em em uma narrativa enxuta, a dialética que existe entre os processos históricos de transformação social com experiências de vida tão singulares. Não por acaso, ela se arrisca a explorar a tênue fronteira entre o espaço público (lugar por excelência da política) e o espaço privado (lugar da intimidade). Dessa maneira, ela consegue dar uma dimensão cotidiana à História, ao mesmo tempo em que contextualiza fatos corriqueiros em um tempo histórico.

Assim, vemos que o envolvimento de Fernando e Marie na luta solidária à democracia na América Latina é movida, primeiramente, pela necessidade de superar um remorso de Fernando por ter abandonado seu país e família num momento extremamente difícil. Já Marie se envolve com as lutas feministas após tentar ajudar a cunhada Isabelle que, infeliz no casamento, vive solitariamente o dilema do que fazer frente a uma gravidez indesejada. Transcendendo seus pequenos dramas familiares, Marie e Fernando tomam nas mãos o desejo de construir outras formas do viver, reconhecendo-se como sujeitos da História.

Esta é a chave que abrirá portas para um novo e difícil recomeço. Talvez não por acaso, a diretora tenha decidido por tratar do tema a partir do olhar de uma menina que vive a pré-adolescência – período em que as pequenas certezas que temos e nas quais buscamos alguma segurança se transformam em imensas dúvidas e muitas, muitas perguntas.

Reside aí um segundo e importante trunfo: ao invés de optar pelo discurso panfletário para falar de temas contundentes e atuais, Julie opta por combinar lirismo e humor franco para costurar a narrativa de um filme que se propõe a ter densidade política. Nada escapa à sua verve: a cineasta questiona igualmente o conservadorismo da burguesia francesa, mas também as contradições e dogmatismos presentes na militância esquerdista. Reserva às intervenções argutas e inquietantes de Anna momentos impagáveis de riso aberto. Como a cena de um diálogo entre Anna e a empregada Filomena. Esta, depois que a família se muda para um pequeníssimo apartamento, explica a Anna porque elas ‘são iguais’: “Eu fui expulsa de casa por Fidel”, explica Filomena à Anna, “e você teve que sair de sua casa.” Ao que Anna prontamente responde: “Ah! Então, a culpa é do Fidel!”

A nova moradia está sempre envolvida em sombras e parece ser formada por um pequeno labirinto de corredores abarrotados de caixas de mudança. Nesse ambiente obscuro, Anna caminha sem conseguir distinguir exatamente o que se passa e porque sempre há tantas pessoas em reuniões madrugadas afora e entrevistas 'secretas'. Transformada em 'aparelho' político a moradia se torna, então, uma síntese da simbiose entre as dimensões pública e privada da vida. É quando, definitivamente, a política invade o espaço privado ou, por outro lado, seria o espaço privado abrindo suas portas para o fazer político.

Neste ambiente singular, o diálogo entre Anna é emblemático também dessa relação entre a política e a vida privada. Sendo este um filme que pretende romper essa dicotomia, Julie Gavras faz uma jogada de mestre: ela confere às empregadas domésticas um espaço secundário no filme, numa crítica à sua invisibilidade no mundo real, mas resgata a sua importância, por meio da relação que elas mantêm com as crianças. Depois que Filomena perde o emprego, outras empregadas, também exiladas, se farão presentes: a grega Panayota e a vietnamita Mai-Lahn. Cada uma, à sua maneira, introduzirá no universo de Anna, costumes e informações, que a auxiliarão na construção de uma outra percepção acerca do mundo, das pessoas e das instituições como a escola, por exemplo. É com Panayota, por exemplo, por meio dos mitos gregos, que Anna descobre que existem versões sobre a criação do mundo diferentes da bíblia. E é com Mai-Lahn, por meio de uma fábula chinesa, que descobrirá o sentido e o significado da solidariedade – valor que seu pai havia tentado, em vão, ensinar os filhos, levando-os a uma passeata contra a ditadura de Franco.

Aos poucos vamos nos dando conta dos esforços de Anna para compreender o que se passa e atuar segundo sua própria visão. Movida pelo sentimento de solidariedade à sua turma, soma-se a esse coletivo para responder a uma questão proposta pela professora. Entretanto, como a resposta estava errada, a solidariedade se transforma em frustração. Confusa, Anna conta o episódio aos pais e desabafa: “Agora não confio mais na solidariedade”. Fernando responde com outra perguta: “Será que você não confundiu solidariedade com estar junto à maioria?” Outra vez Anna: “Mas como ter certeza de não estar confundindo? Vcs sempre têm certeza de tudo?” Marie e Fernando trocam olhares cúmplices.

Para Anna, o contato com as diferentes concepções do mundo, por meio do apoio à democracia no Chile ou do debate sobre temas polêmicos e tabus como a sexualidade e o aborto, se dá em meio a um conjunto de mudanças que lhe afetam profundamente o cotidiano: na nova casa não há mais um espaço próprio, os padrões de consumo já não são os mesmos, a proibição às aulas de religião e, mais tarde, a mudança para uma escola pública e laica.

Ao perceber que seu mundo particular se desmorona aos poucos diante de tantas incertezas, Anna move-se de maneira também incerta. Ora recusa-se a aceitar aquilo que, inevitavelmente, irá ocupar esse espaço que se vai esvaziando: fica brava, foge de casa, nega-se a entregar-se a evidências de que a vida (e as pessoas) é cheia de contradições. Ora entrega-se, não sem um certo prazer movido pela curiosidade, de fazer perguntas perturbadoras, desafiando o que as pessoas adultas – de conduta conservadoras ou transgressora – tentam lhe ensinar.

Vencer as próprias resistências é sinal de amadurecimento. Aos poucos, dentro de um espaço de tempo muito próprio e do alto de seus nove anos, Anna vai superando as perdas e aprendendo que sobre incertezas se constrói boa parte de nossas decisões diárias. Assim, segue desafiando-se e desafiando as instituições: seja a família, sejam os grupos de resistência política, a escola, a igreja. O último movimento desse tour-de-force é convidar o pai para uma viagem à Espanha.

Diante da pergunta de Marie: “Será uma viagem difícil – você tem certeza de que quer ir?” Anna não vacila. Juntos, ela e o pai farão uma espécie de resgate de sua história, que se confunde com as memórias de cada um: para ele, aquilo que foi deixado pelo meio do caminho há muito tempo atrás; para ela, a possibilidade de estabelecer novas conexões com o que estava vivendo naquele momento. Sem dúvida, para ambos, a certeza de que essa é uma viagem só de ida em direção a um futuro incerto, mas que precisa estar em movimentação.

Ao experimentar essa espécie de ‘tudo-ao-mesmo-tempo-agora’, com tanta intensidade, Anna vai se dando conta de que estão ali momentos que marcarão a sua vida para sempre, assim como marcaram profundamente a História nestas últimas décadas.

De uma certa forma, “A Culpa é do Fidel” nos relembra que este ‘tudo-ao-mesmo-tempo-agora’ continua vivo. E se Maio de 68 foi um marco do período, certamente não é a sua mais completa tradução, pois esta é uma história sem fim. Para mim, contemporânea de Anna, deixar a sala de cinema após este filme nos traz ao menos uma certeza: “Sei que nada será como antes / amanhã”. Isso reacende a utopia de que é possível sacudir as estruturas. E se a culpa é do Fidel, este deve ser um desejo e um prazer de todos/as nós.