sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

"Sobre a culpa e o perdão" por Helena Alencar


Estudar religião é se perder em um labirinto de abstrações e metáforas que se tenta, de modo recorrente, pôr em prática. O que significa vocação, ou receber uma missão, um chamado de Deus? As meninas se perguntam. A professora insiste, mas é desacreditada por suas paixões (“Eu a vi dando um beijo de língua naquele cara das mãos peludas...”). Amélia e sua amiga Josefina tentam encontrar respostas, em meio a uma realidade de apelos. Esta se vê buscando alternativas para manter-se dentro dos limites da sua fé, ainda que imersa nas curiosidades e desejos do namoro. Aquela vê na atitude covarde de um médico de meia-idade que a bolina sutilmente, a sua missão.



Abordar o enredo de A menina santa não é algo tão simples quanto parece. Não se trata do assédio, ou das dúvidas das garotas em relação à religião, ou da crise da mãe de Amélia, Helena, que solitária após o divórcio, busca despertar o interesse do mesmo médico que molestou sua filha. Lucrecia Martel oferece ao espectador diferentes pontos de vista da mesma situação. Hora a sensação é de estranheza, hora, é de piedade. Vidas tão simples, problemas tão pequenos se fazem tão grandes... Um congresso de médicos, escândalos envolvendo participantes, nenhuma resolução – a isso se resumiria a trama.


Lucrecia, contudo, não parece muito preocupada com a narrativa. Gosta de trabalhar sentimentos, e comunicar os seus. Volta-se, fundamentalmente, para a estética do filme e deixa seu apuro transparecer em cada cena. Os olhares que lança sobre Amália nos confundem. É tão menina, mas tão moça. Possui traços tão delicados, e distorções tão evidentes. É tão pura, e tão ansiosa. E Helena, sua mãe? Parece que poderia, a qualquer momento, explodir em lágrimas amargas, mas mantém o sorriso e os decotes nas costas durante todo o espetáculo na tela. Josefina, maliciosa, às vezes egoístas, mas demonstrando sempre um amor fraternal por Amália, à qual se oferece como irmã. A dubiedade impera.



Outros personagens figuram no filme, mas são pouco aprofundados. A história é mesmo um recorte, um momento, um instante da vida daquelas pessoas naquele hotel. Sequer tem um final. Poderiam ficar ali para sempre, escondendo e mostrando suas verdades. As carapuças cabem em uns e outros; os que se reconhecem culpados permanentemente se acreditam descobertos, e então se revelam. Quem é o médico envolvido no escândalo, o doutor Visálio ou o doutor Jano? Por quem Jano nutriu interesse, por Amália ou por sua mãe? Houve, de fato, perversão nesse interesse, ou ele é, como crê Amália, um homem bom, o portador do seu chamado? Lucrecia não responde. Deixa-nos as perguntas para pensarmos, nós mesmos, nas carapuças que nos servem.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

"Não muito além das relações de classe" por Clarice Monteiro


Uma narrativa voltada para o inconsciente dos personagens, solidão, alcoolismo, sentimentos ambíguos, insinuações de incesto, homossexualismo e finalmente loucura, tudo isso você encontra em “O criado”. Baseado numa novela de sucesso de autoria de Robin Maugham, roteirizado pelo famoso dramaturgo Harold Pinter, e dirigido por Joseph Losey, esse filme que, à primeira vista, parece ser apenas a história de um novo rico que contrata um empregado para cuidar de sua mansão, na verdade configura-se num ácido drama psicológico que tem a inversão de papéis na sociedade inglesa pós-guerra o seu real tema.

Estreado em 1963, O criado tem uma narrativa de grande força sugestiva sobre a atração entre dois personagens: o patrão e o mordomo. Dirk Bogarde interpreta Barrett, um empregado sedutor e traiçoeiro contratado pelo aristocrata Tony (James Fox) para administrar a sua casa recém-estabelecida. Porém, a exagerada eficiência de Barrett faz com que Tonny crie uma dependência doentia e, num instante, se confundam os papéis de um e de outro. É, acima de tudo, uma história de tomada do poder, com uma bela fotografia em preto e branco e boas atuações, com destaque para Dirk Bogarde.

Bom, o que mais chama atenção no filme é o modo como ele é construído, como o conflito é narrado. O Criado pode ser perfeitamente dividido em duas partes. Na primeira, Losey cria toda a ambientação, mostrando ao espectador o desenrolar da relação dos protagonistas. Tudo vai indo bem até que entra em cena um terceiro elemento, a suposta irmã do criado, a partir daí a história começa a mudar. As relações vão ficando cada vez mais tensas. Isso fica evidente na segunda metade do filme, quando a verdade sobre o mordomo é revelada. A partir desse momento O Criado torna-se um filme mais sombrio e o que vemos é a inversão de papéis dentro da casa. Essas duas partes são tão distintas entre si que às vezes tem-se a impressão que se trata de dois filmes diferentes.

Mas a quebra da narrativa tem um significado importante. Na verdade, Losey acentua o caráter evolutivo da relação entre Tony e Barrett exatamente através dessas mudanças na aparência, ritmo, a estrutura do filme. In particular he works subtle alterations on the physical space of the house itself. Em particular, ele também trabalha com sutis alterações no espaço físico da própria casa, que assume diferentes personalidades no decorrer do longa. Outro ponto forte são as cenas que são vistas através da distorção das grandes e redondos espelhos, seria o Criado um filme artisticamente ambicioso? Creio que sim.

Além disso, outro mérito é a forma como é trabalhada a permanente tensão dos personagens. A câmera em constante movimento segue os atores em uma casa tão sufocante quanto enigmática, e a música-tema, que no começo parece ser uma canção de amor, no fim, já transmite o estado de desolação do protagonista. Esses elementos reforçam climas e situações que vão desde a aparente segurança da situação no início do filme até o final de caos total. É sem dúvida uma obra de suspense. A atmosfera sensual e ao mesmo tempo extremamente incômoda criada por Losey instaura em todo o filme um clima de crise aguda, como se a qualquer momento aquela ordem que conhecemos pudesse ser destruída.

Arrisco-me ainda a dizer que Losey consegue criar uma atmosfera de terror que lembra muito o estilo de Alfred Hitchcock, (o bom e velho terror psicológico). Hitchcock makes you nervous, but you always know the cause of the trouble, and you're ultimately brought safely home. A principal diferença é que Hitchcock cria um clima de suspense, mas o telespectador sempre sabe a causa do problema, já em “o Criado”, o telespectador não consegue localizar de maneira clara a sua fonte de medo.

Esse filme marcou a primeira de três colaborações entre o diretor Joseph Losey e o roteirista Harold Pinter. Com atuações magníficas e um clima sombrio perturbador, o filme foi indicado em oito categorias do British Academy Awards, incluindo Melhor Ator, Atriz, Filme, Fotografia e Melhor Roteiro. Foi com o a estréia de "O Criado" também, que Joseph Losey se fez conhecido internacionalmente e foi também a primeira de suas realizações britânicas que conseguiu alcançar popularidade nos Estados Unidos.

"A profissão repórter des(d)enhada com maestria" por Hugo Carneiro Coutinho


Passageiro. Profissão: Reporter (EUA, 1975) conta a história de David Locke, jornalista de ética duvidosa que está cobrindo guerras na África para alguma TV americana. Como o próprio Antonioni atesta, o filme é sua obra estilisticamente mais madura e todos o lembram por sua cena final, um plano seqüência de 7 minutos, que apresenta uma situação de ação clara de modo super sutil, apresentando apenas pistas do que está acontecendo. Jack Nicholson faz o personagem principal e está deprimido com sua vida, se sentindo solitário, entediado em sua condição de estrangeiro. Ao contrapor o ofício do personagem principal, noticiar uma determinada região de forma coesa, com a total bagunça que é sua vida, o filme consegue seu trunfo: agregar e transcender a discussão moral do tema (a ética jornalística) ao partir para o plano pessoal, muito mais interessante do ponto de vista cinematográfico.

Pela natureza da profissão, que é lidar com a representação realidade, inúmeros filmes já tiveram o jornalismo como ponto de partida. Todos os homens do presidente (1976), de Alan J. Pakula, coloca-o em condição de herói, tendo como base uma história verídica, que é o caso Watergate; Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, tornou-se um filme revolucionário contando a saga de um jornalista que domina boa parte dos meios de comunicação dos EUA; Meu Adorável Vagabundo, de Frank Capra, contrapõe a ética jornalística e a sua função social; e em Paixões que Alucinam (1962), de Samuel Fuller, um jornalista se traveste de louco e vai para um hospício tentar solucionar um caso de assassinato.

Todas essas obras citadas mostram o repórter como uma figura determinada, quase sempre obsessiva em busca da notícia (ou do sucesso), e se utilizam dele para discutir a sociedade contemporânea. O filme de Antonioni não é diferente, por não estar alheio a questões políticas (na verdade, é uma crítica ferrenha ao universo televisivo e suas redundâncias), mas o personagem principal tem características diversas do padrão. Locke é vacilante, está à deriva. Descontente com sua vida, começa a envolver-se em coisas que não dizem respeito a sua profissão e, imbuído em objetividade pontual, não consegue ver as coisas de fora, contextualizadas. Algumas das entrevistas por ele realizadas são inseridas na trama em flashback. Em uma delas, um líder guerrilheiro com arma em punho inverte a posição da câmera, colocando Locke em evidência: “Suas perguntas revelam mais sobre você do que sobre mim”.

Uma torre de Gaudi é utilizada para ilustrar um encontro de Locke e seu affair, uma estudante de arquitetura interpretada por Maria Schneider (O Último tango em Paris). Uma construção cheia de labirintos, lacunas que dizem do próprio filme, para um relacionamento que teria de ser resolvido de uma maneira difícil. A África é enquadrada vazia, desértica. E no fundo, se mostra um pano de fundo perfeito, que não representa quase nada para o personagem principal, passageiro em uma terra em conflito que nada lhes diz respeito, apesar de sua função social de jornalista. É a representação do próprio continente para o mundo, lembrado por seus conflitos e esquecida por seus colonizadores.

A opção pelo silêncio verbal e imagético faz contraposição à obsessão jornalística pela notícia, que quase inexiste na película. Antonioni, com seu cinema moderno, relativiza, com o aparato da linguagem, diversas questões polêmicas que existem no universo jornalístico (se utilizando inclusive da estética do telejornalismo para faze-lo). A narrativa se conclui, existe uma história que se fecha, mas ela não é mostrada explicitamente. O que existe é um fado inevitável vivido por um ser humano incompreendido, desenhado por vazios gritantes e resolvido arquitetonicamente.

“Traídos pelo desejo: os jogos do charme" por Diogo Guedes






Em menos de duas horas, tantos assuntos. Neil Jordan, no seu thriller-drama político, interliga diversos temas em uma só narrativa. De início, parece ser a simples história de um seqüestro com pano de fundo político. Contudo, sem deixar na cara, o filme passa a se focar no começo da amizade incomum entre um seqüestrador, Fergus (Stephen Rea) e o seu seqüestrado, Jody (Forest Whitaker). Já com a morte de Jody, volta-se para o isolamento individual de Fergus e, novamente sem transparecer, o filme se torna uma busca pelo amigo falecido a partir da vivência com sua ex-namorada, Dil (Jaye Davidson). Caso o enredo pareça confuso ou antinatural, a falha é desse que vos escreve. “Traídos pelo desejo” é tão simples quando abrangente.

São atuações excepcionais, uma ótima direção que se disfarça em escuridões e boas tomadas, um Oscar e mais cinco indicações e uma sinopse nada fácil de realizar. Nessa linha de raciocínio, “Traídos pelo desejo” se transformaria em mais um desses quase clássicos do cinema, tipicamente com grandes atores provando que são grandes e uma história polêmica.
Pois eu prefiro seu nome original, “The Crying Game”. Porque só assim me parece que, antes de tratar de uma luta política e pessoal em busca da identidade, antes de pôr o tema da sexualidade num patamar ousadíssimo, antes de falar de um tipo de síndrome de Estocolmo - a tentativa de Jody de conquistar a simpatia e amizade de Fergus -, o filme é sobre o jogar - sim, jogar. Existe um jeito de se conversar e de se comportar característico na narrativa que é comparável ao que é o cinismo para a filmografia de Billy Wilder e a neurose e a paranóia para Woody Allen. É tão presente e pitoresco, que se torna um dos temas - e talvez o principal - da obra.
Por exemplo, Dil, cabeleireira e namorada do falecido Jody, é procurada por Fergus. A relação entre os dois, no entanto, não começa de uma conversa direta: é um jogo com as regras de Dil. Ela fala com o seu amigo e garçom Col (Jim Broadbent) se dirigindo na verdade ao irlandês sentado no balcão. Isso permite que a personagem, junto com o diretor da obra, se use constantemente da ironia e de um diálogo que conduz como e para onde quiser. A cabeleireira brinca com Fergus e escancara para qualquer um seu charme. Ela o deixa desconfortável, interroga-o, lhe dá ordens e, finalmente, o conquista. O ex-terrorista que havia ido cuidar de Dil, atendendo ao pedido de Jody, cai numa armadilha igual a que o soldado sofreu com Jude (Miranda Richardson) e o IRA. É quase como se Jody o tivesse mandando encontrá-la porque sabia que Fergus não resistiria ao charme de Dil. Ou meramente porque Fergus talvez fosse o único além do próprio soldado que a mereceria.

Claro que Dil conversa e conquista melhor alguém se tiver uma terceira pessoa presente, para suas indiretas. Mas não só ela, sim quase todos os personagens do filme. À exceção de Fergus, o carregado de culpa, “bom por natureza”, calado e taciturno irlandês, todos os personagens se usam desse tom de ironia e de charme da conversa a três. Mesmo quando só há duas pessoas, os personagens se referem a uma terceira: Jody, quando preso, fala de si como se falasse de um amigo distante – talvez porque já sentisse sua morte. E possivelmente todos os espectadores sabiam, desde seu seqüestro, que ele iria morrer. Assim como sabiam que Fergus não conseguiria matá-lo.

Em “The Crying Game”, vive-se Jody por todo o filme, mesmo depois de sua morte. Aquele Fergus que freqüenta o bar Metro, que protege Dil e também se apaixona, é um Fergus que homenageia o soldado. Ele não busca Dil: quer, na verdade, encontrar seu amigo Jody. E dá até pra imaginar que a reação do soldado ao saber que Dil não era de fato uma mulher deve ter sido a mesma que a de Fergus: um impulso imediato de nojo e raiva, somado a uma ternura posterior. Mas ambos a amam por ou apesar de sua singularidade - e, na verdade, não importa o motivo real.

O passado de Fergus, no entanto, o persegue assim como ele persegue o passado de Jody. Seus ex-companheiros o encontram e avisam que ele precisa fazer uma missão para que o casal não morra. Dil mata um dos que os perseguem, mas Fergus escolhe levar a culpa: mais uma vez mostra que está ali para protegê-la. O final quase feliz não poderia mostra mais o lado jogador da obra já que, numa visita de Dil ao companheiro na cadeia, ela persiste com suas pequenas e charmosas estratégias que usou para conquistar o ex-terrorista. O seu “querido” cuidou e vai sempre cuidar dela.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

"Bonequinha de luxo" por Bernardo Cortizo de Aguiar


Nesta película de 1961, Audrey Hepburn encarna o seu mais notável papel: Holly Golightly, uma jovem em constante fuga, seja de seu passado, seja da realidade em que vive. Vivendo em Nova Iorque como uma “call-girl”, Holly se envolve com seu vizinho e escritor aspirante, Paul Varjak (George Peppard), ele próprio numa relação incomum com uma mulher o pagando a cada visita em seu apartamento.

Dirigido por Blake Edwards num tom mais ameno do que o romance no qual foi baseado, o filme retrata o desenvolvimento da relação dos dois, junto com suas dificuldades por conta do estilo de vida e de ser de Holly, e sua tendência a buscar soluções escapistas (como querer se casar com um latifundiário brasileiro milionário).

Sendo passado em sua maioria no prédio onde Holly e Paul moram, o filme utiliza de cenas externas para demonstrar o lado mais casual deles: longe de seus apartamentos e de suas vidas, os dois podem ser autênticos e deixar suas preocupações de lado, para, enfim, aproveitarem a vida.

A censura em relação ao texto original (a personagem de Hepburn nunca é referida como prostituta, e toda vez que se fala sobre seu modo de vida, é dito que ela ganha 50 dólares para “ir ao banheiro”) e a alegria um tanto ingênua, junto com a presença do caricato vizinho japonês (interpretado por Mickey Rooney, que não tinha nada de japonês, como não poderia deixar de ser nessa época) deixam a história mais pitoresca e fantasiosa, meio como o modo como Holly Golightly vê o mundo, ao invés de ferir a suspensão de descrença do espectador, como alguns filmes da época fazem. As festas são cheia de tipos, regadas a álcool e bem iluminadas, com pessoas bem-vestidas que se mantém assim até o fim, ao contrário do descontrole esperado num acontecimento deste tipo.

A trilha sonora é um dos pontos altos, com Moon River (composta por Johnny Mercer e Henry Mancini) cantada por Audrey Hepburn tendo ganhado um Oscar por melhor canção original e outro por melhor trilha sonora. As músicas são ótimas representantes da época e a cena de Audrey cantando Moon River na janela de seu apartamento é marcante.

A fotografia é competente, com escolhas muito interessantes de ângulos em alguns momentos (como quando Paul atende o telefone na festa de Holly e se debruça no chão, com direito a um convidando usando-o como cadeira, ou ainda a já referida cena da música Moon River) e enquadramentos claros e efetivos, de acordo com o clima proposto no enredo.

A película é uma deliciosa e icônica representação do cinema hollywoodiano do século XX, com sua visão alegre de temas polêmicos, contrastes vibrantes, frases de efeito clichês e seu happy ending clássico, com a famosa cena na chuva. Aquilo em que mais se distancia da obra original é também o que mais o torna gostoso de ver: uma visão ingênua da vida de uma garota problemática e falha.

"Persona" por Nilton Vilanova de Albuquerque Neto



Quando Ingmar Bergman se propõe a intrigar o público é assim. Persona. Uma dissertação sobre a solidão que só o roteirista, produtor e diretor sueco poderia criar. A direção de arte por Bibi Lindström e a de fotografia por Sven Nykvyst complementam a riqueza do drama, gravado em 1966 com igualmente brilhantes atuações de Bibi Andersson e Liv Ullman, esta última, grande diva e estrela de diversas outras obras de Bergman.

Elisabet Vogler, interpretada por Ullman, é uma atriz notória, que perde a voz inexplicavelmente durante uma encenação teatral. Levada a uma clínica para reabilitar-se, recebe orientações de sua médica para isolar-se um pouco em sua casa de veraneio, acompanhada de uma enfermeira. Mesmo com medo do desafio, de Elisabet, e de tanta responsabilidade, Irma Alma, personagem de Bibi Andersson, aceita o desígnio de sua chefe e segue com a paciente para seu retiro.

Nos primeiros instantes de adaptação, a enfermeira lida com Elisabet de maneira bastante atenciosa, que responde, mesmo em seu silêncio, positivamente. Contudo, ao passar dos dias, entre seus relatos e confissões, Alma começa a sentir-se angustiada com a falta de um retorno, de uma interação verbal. As expressões corporais de Elisabet não satisfazem a necessidade da enfermeira de um veredicto sobre suas culpas interiores. A esta altura, os papéis de paciente e terapeuta se confundem. Alma e Elisabet encontram-se e identificam-se em seus dolos, o que estabelece um afeto circunstancial quase que imediato, mas que devido a falta de comunicação, se exterioriza e também se torna extremamente instável.

Com sérios problemas familiares estabelecidos em suas consciências, a atriz que nunca aceitou o filho e a enfermeira que abortou após uma orgia extraconjugal; e dificuldades com as realidades em que vivem, uma vez que Elisabet não suporta mais interpretar outras vidas em detrimento da sua, e que Alma começa a questionar o destino que deu a si mesma, as crises de identidade afloram e acabam por se chocar.

Agradar-se com Persona não é para qualquer um. Exige estômago. Sua esfera de introspecção, suas figuras semióticas, recheadas de analogias e sugestões, ganha com a trilha sonora de Lars Johan Werle, um tom cinza e melancólico, bastante adequado à solidão. O filme é quase um retrato antigo abandonado no fundo de uma caixa. Ullman e Andersson a cada cena despertam no espectador o desconforto intencionado por Bergman, uma sensação de vazio que dificilmente outra mente senão a do sueco saberia traduzir para a tela. O próprio fato de as personagens se entenderem mais nos momentos de silêncio do que nas tentativas de diálogo frustradas de Alma, já são o índice da genialidade do diretor, de sua capacidade de levar à reflexão os temas que aborda.

Para leigos, a linguagem de Bergman pode soar confusa e até mesmo sem sentido, mas ninguém sai ileso de uma obra deste mestre. Cada olhar, cada gesto, cada cena em Persona traz uma carga insaturável de significados. Até mesmo as seqüências de cenas ‘surreais’ são ancoradas numa harmonia que não pode ser descrita de outra maneira que não seja Arte. Rodado no fim da década de 1960, seu conteúdo, embalado na singularidade de Ingmar Bergman, é universal, atemporal, e, sobretudo, de uma franqueza irretocável. Uma obra-prima.

"Um certo filme francês" por Laura Buarque Cortizo


A vida do jovem Antoine Doinel, ao ser expulso do exército francês, passou sem sustos nem grandes surpresas. Sem conflitos relevantes ou perspectivas promissoras. Foi assim: simples. E a normalidade poderia passar despercebida, parecer chata, monótona. Mas o jeito do diretor francês François Truffaut contar histórias muda tudo. Beijos Proibidos (Baisers Volés, 1968), terceiro filme da série iniciada com Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, 1959), é leve, calmo e envolve o telespectador sensível. Filmado em um ano em que a França efervescia de acontecimentos políticos e culturais, o longa faz questão de olhar para o outro lado. Faz questão de exaltar o cotidiano, o comum, o simples embalado pela leve canção de Charles Trenet, Que reste t'il de nos amours? (O que restou dos nosso amor?).


Aparentemente apático diante do fim de sua carreira militar, Doinel, famoso alter-ego de Truffaut, retoma seu romance com a bela Christine Darbon (Claude Jade) e, depois da tentativa frustrada de trabalhar como recepcionista em um hotel, passa a investir na carreira de detetive particular. A nova profissão envolve o protagonista, embora o mesmo não demonstre ser talentoso para a atividade. Esforçado em suas investigações que, vale ressaltar, não são exatamente casos perigosos, complexos ou importantes, Doinel passa por situações no mínimo curiosas. Nesse aspecto a genialidade de Truffaut é quase palpável, pois as pessoas que cruzam o caminho de Antoine poderiam parecer ridículas, mas são o tempero da trama. É o caso do senhor Tabard, dono de uma sapataria que teima em estar sendo perseguido, pois ninguém o suporta, exceto sua mulher. Personagens um tanto caricatos e muito bem interpretados como senhor Tabard, conduzem um enredo leve e divertido, mesmo diante da falta de perspectiva e da melancolia percebida na vida do protagonista.


A propósito, um dos elementos que conduzem o longa de forma mais sutil e eficaz é a interpretação dos atores. A começar por Jean-Pierre Léaud, que vive os dramas, mentiras e alegrias do protagonista Antoine Doinel desde o primeiro filme da série, parece ter incorporado todos os gestos e traços da personalidade de Doinel. Léaud, dá vida a Antoine com humor, leveza e espontaneidade. O olhar e as expressões facial do ator são fundamentais para entender o sentimento de estar deslocado, característico do protagonista. O elenco todo segue essa linha. A namorada de Antoine, seu chefe, os clientes paranóicos e problemáticos do escritório de investigações, todos incorporam seus papéis da melhor forma, mesclando caricatura com naturalidade.


Criador da Nouvelle Vague e, portanto, defensor da produção autoral Truffaut deixa clara sua marca na obra. O humor, a melancolia, a nostalgia e o cotidiano dão vida e sustentam o longa e toda a sua poesia. A sutileza temática e formal, também. Detalhes como o fato de os autores fecharem portas na frente da câmera e da mesma “esperar” ao pé da escada enquanto os atores sobem dão idéia do cuidado estético que o diretor apresenta. Assistir a Beijos Proibidos é ser conduzido durante 90 minutos na vida de um personagem tão complexo quanto qualquer um de nós, mas simples o suficiente para ser uma boa companhia em um passeio pelas ruas de Paris. E essa sensação de leveza é prolongada por um fim de filme que na revela nada, mesmo porque o filme não acaba.

"O criado" por Bernardo Cortizo de Aguiar


Dirigido por Joseph Losey, americano radicado em Londres, fugido da perseguição da era McCarthy, “O Criado” retrata as vidas e relações entre empregado e empregador, entre aristocracia e plebe. Tony (James Fox) é um jovem nobre inglês em busca de um criado para auxilia-lo em sua nova residência. Hugo Barret (Dirk Bogarde) parece ser o homem perfeito para o serviço: discreto, eficaz e subserviente, ele é logo contratado e executa suas tarefas com maestria.

Entre os dois, apesar de claro a distinção entre patrão e servidor, desenvolve-se uma espécie de laço silencioso: Tony o trata com respeito e dignidade, em troca Barret preza pelo bem-estar do nobre e de sua casa. Infelizmente Susan (Wendy Craig), a noiva de Tony, é mais conservadora e arrogante quanto aos papéis sociais de cada um, alfinetando sempre que possível o mordomo e pedindo a Tony para não confiar nele, chegando até mesmo a ser cruel em seus comentários.

Barret aparenta não se incomodar com os comentários, mas aos poucos vê-se que ele não se conforma realmente a ocupar um papel social que lhe foi arbitrariamente atribuído: seja fumando e bebendo cerveja escondido na cozinha, seja convencendo Tony a deixar Vera (Sarah Miles), sua suposta irmã, a trabalhar como governanta na casa. Vera é na verdade noiva de Barret, mas é também interesseira ao extremo: quando os dois dizem a Tony que precisam visitar a mãe moribunda, para na verdade terem o dia só para eles, Vera fica para trás para seduzir o patrão numa das mais inocentes cenas de sedução da história (cortesia do falso moralismo e puritanismo da época).

Quando Susan e Tony pegam Vera e Barret na cama, tudo vem à tona e todos se separam. O nobre iglês se perde no alcoolismo até Barret, arrependido mas também mudado, implorar por seu emprego de volta, o que acaba tornando a relação entre os dois mais íntima e estranha: Tony está num estado tão deplorável que chega a ser infantil muitas vezes e Barret, mais do que nunca, se impõe frente ao patrão, numa relação de mútua necessidade.

Os ângulos das cenas seguem o padrão da época, nada que chame a atenção por sua inovação, mas a montagem da película tem seus momentos: em um deles, enquanto Tony e Susan vão almoçar num restaurante, Barret vai pegar Vera na estação para depois passearem pela cidade. Alternando entre os dois casais, cria-se certa tensão, dando a impressão de que, a qualquer momento, Barret e Vera entrarão no restaurante e o caminho dos dois casais se cruzará.

A trilha sonora não é especialmente marcante, embora seja interessante notar que, toda vez que procura seduzir uma mulher, Tony escolhe mesma canção para tocar. Quanto à atuação, o problema maior é o tabu levantado pelas cenas mais, digamos assim, picantes: impossibilitado de fazê-las, Losey acaba limitando a capacidade de interpretação de seus atores, ferindo o realismo intencionado num drama psicológico, deixando-o com uma cobertura menos madura que a desejada.

"A simplicidade requintada do viver" por Breno Lemos Pires




Como seria a experiência de um mordaz, indócil e implacável crítico de cinema ao trocar a pena pela câmera? Otimistas poderiam imaginar um abrandamento, uma moderação de tom; jamais poderiam conceber o que aconteceria com François Truffaut (1932–1984). Mais do que diluir a acidez que antes destilava, o cineasta francês — um dos expoentes da Nouvelle Vague, junto com Jean-Luc Godard — foi capaz de sublimar as agruras da existência, unindo-as à doçura da vida, ao longo de sua vasta e profícua obra. Em Beijos Poibidos (Baisers Volés – França, 1968, 90 min), Truffaut dá seqüência à história do seu personagem mais conhecido: Antoine Doinel, interpretado por Jean-Pierre Léaud. É o terceiro dos cinco filmes sobre Doinel — que é considerado, por semelhanças quanto à infância, o alter-ego do diretor.
Nove anos depois de, na pré-adolescência em Paris, “pintar o sete” (expressão idiomática equivalente à francesa les quatre cents coups, título original de Os Incompreendidos ), Antoine Doinel, já no início da fase adulta, procura se readaptar à vida normal após ser dispensado do exército. A primeira providência é procurar duas mulheres: uma prostituta e uma antiga namorada, Christine Darbon (Claude Jade) — nesta ordem. Ele tenta roubar-lhes um beijo, e ambas recusam. Este fato, em associação com um fragmento da canção que embala o filme (Que reste-t-il de nos amours, de Charles Trenet) explica o título do filme.
Doinel passa a trabalhar como recepcionista de hotel, é demitido; vira detetive particular e — antes de ser demitido — tem, ao menos, a oportunidade de conhecer Fabienne Tabard (Delphine Seyrig), esposa do lojista Georges Tabard (Michael Lonsdale), por quem é contratado para descobrir por que ninguém o ama. Doinel mostra romantismo ao descrever poeticamente a ‘excepcional’ Madame Tabard, com quem tem um encontro único entre quatro paredes, apesar de ele se não se achar digno dela. Percebe-se, em Beijos Proibidos, o destaque que Truffaut dá ao tópico mulheres, que perpassa a sua obra como um todo. Entretanto, há também amor, de diferentes tipos. O amor adolescente de Doinel e Christine, o amor de um homossexual que recorre aos detetives para encontrar seu amante desaparecido, o amor “definitivo” de um admirador secreto de Christine por ela, o amor de que o Senhor Tabard sente falta... Às vezes condição de liberdade, às vezes aprisionador — quase sempre confuso —, o amor nunca está ausente.
Truffaut retrata essas situações vividas por Doinel sem floreios, sem qualquer espetacularização: como realmente são. Dotado de uma sensibilidade extraordinária, faz com que as sutilezas se relevem por si só. É no dia-a-dia que Doinel se faz Doinel. É de pouco em pouco que ele — ora tímido, ora expansivo, e sempre atrapalhado — suavemente comove o espectador que se propõe a acompanhar a busca dele pelo prazer, que se encerra na simplicidade do existir. Doinel tem vida própria. Não faz parte de um enredo com começo, meio e fim; é o próprio fim e meio. Sua história não tem um ápice. Em certo momento, aliás, parece haver a intenção deliberada de gerar um anticlímax. É tudo tão despretensiosamente natural que parece um recorte, uma moldura de um período da vida desse personagem — que só pode ser de carne e osso.
Aos espectadores comuns desse início de século XXI, acostumados com os blockbusters contemporâneos, supertecnológicos e multimilionários, é provável que Beijos Proibidos não apeteça. Para eles, a ausência de ingredientes como clímax e antagonistas pode causar certo enjôo, e o fim do filme, por não consistir em um desfecho espetacular, talvez lhes seja indigesto. Contudo, se o final não tem o recheio da moda, é porque não precisa. Beijos Proibidos é para ser degustado pedaço por pedaço — um prato cheio para cinéfilos ávidos por humanidade e por uma simplicidade requintada, com que Truffaut, como poucos, temperava sua obra.

"A noite do iguana" por Maria Eugênia Bezerra Alves





Não é de hoje que textos teatrais são transformados em filmes, ou que alguns roteiros cinematográficos percorrem o caminho inverso. Em ambos os casos, a adaptação pode ser construída como uma obra independente da fonte de inspiração, ou como uma espécie de tradução do original para um novo suporte.


A Noite do Iguana (The Night of The Iguana, EUA, 1964), de John Huston, se encaixa melhor na segunda categoria. A adaptação que ele e o roteirista Ray Stark fizeram da peça de Tennessee Williams traz poucos acréscimos à história original e permanece preso a alguns elementos cênicos característicos de montagens teatrais.



Os primeiros aspectos remanescentes da estética original são revelados na preocupação do diretor em destacar a interpretação dos atores e a força dos diálogos. Há pouca ousadia nos movimentos de câmera e poucas cenas fora do contexto mais imediato, mas ainda assim é um filme interessante, vale a pena assistir.

O palco para a maior parte da história é um hotel localizado em uma praia paradisíaca do México, isolado no alto de uma montanha e cercado pela vegetação tropical. O ambiente idílico aparece como uma espécie de Jardim do Éden, o local ideal para o descanso do corpo e retiro “espiritual” para qualquer um dos personagens que entram em cena, mas não sem antes impor uma longa e penosa travessia.

O filme narra a história do Reverendo T. Lawrence Shannon, um ex-pastor protestante e alcoólatra que trabalha como guia em excursões para senhoras em férias, interpretado por Richard Burton. Em uma das suas viagens, ele leva um grupo de professoras ao hotel, gerenciado Maxine Faulk, uma viúva que parece não saber como lidar com a sua libido, interpretada por Ava Gardner.

O grupo de turistas é liderado por Judith Fellowes (Grayson Hall), retratada como uma solteirona mal-humorada. Ela é especialmente responsável pela jovem Charlotte Goodall, vivida por Sue Lyon, a mesma que interpreta o papel principal no filme “Lolita”, inspirado na obra do escritor russo Vladimir Nabokov. Charlotte dedica seu tempo à tentativa de seduzir Shannon.
O ex-Reverendo resiste às tentativas da jovem, mas não sem causar desconfiança em Judith, que o ameaça de demissão. Preocupado com seu futuro, Shannon retira o cabo distribuidor do ônibus para impedir a volta das suas passageiras para Puerto Vallarta. A convivência forçada pelo isolamento obriga os personagens a enfrentarem uns aos outros e a si mesmos intensamente.

A história se torna mais complexa com a chegada de Hannah Jelkes. A personagem de Deborah Kerr é uma pintora em viagem com seu avô, um poeta de 97 anos interpretado pelo ator Cyril Delevanti Jonathan Coffin. Sem dinheiro, Hannah propõe pagar a estadia com o que receber dos hóspedes por suas pinturas e pelos recitais poéticos de seu avô, considerado o mais velho poeta vivo em atividade.

Pensando que está diante de uma dupla de vigaristas, Maxine reluta em aceitar a proposta, mas é praticamente forçada por Shannon. A partir daí, o enredo ficará centrado nas reviravoltas vivenciadas pelos três personagens principais: Shannon, Maxine e Hannah.

Cada um deles buscará o alívio para as suas frustrações em uma forma de prazer, esteja ele no sexo, na bebida ou na simples aceitação do fardo que é preciso carregar. Até a noite em que surge um iguana no terreno do hotel. A seqüência da libertação do iguana, principal ponto de inflexão da narrativa, é também uma alegoria para a libertação dos personagens humanos.
A construção desses personagens, aliás, é um dos aspectos que mais chamam a atenção do telespectador nesse filme. A atuação bastante “teatral” dos atores principais e os seus personagens que apelam para as reações mais drásticas parecem um tanto exagerados para os moldes cinematográficos.

Além disso, os papéis secundários também são bastante caricatos. O cozinheiro oriental é preguiçoso e insolente. Os latinos não falam, mas tocam maracas, bebem muito, usam pouca roupa e fazem sexo na praia.

Talvez se aceitarmos a exacerbação das características, em ambos os casos, simplesmente como uma forma de trabalhar arquétipos humanos, seja mais fácil aceitar alguns desses excessos. Nesse caso, o aspecto mais importante será que A Noite do Iguana é um drama sobre a questão da moral e suas implicações na vida dos indivíduos. O filme é também uma narrativa sobre dois elementos coexistentes na vida humana: coragem e medo.

"A transição entre dois mundos: Veludo azul, de David Lynch" por André Antônio





Cor-de-rosa claro

Há quem ache ridícula a seqüência inicial de Veludo Azul (Blue Velvet, 1986), de David Lynch. Embalados por um blues nostálgico da década de 60 – a música Blue Velvet que permeia todo o filme – os habitantes de uma cidadezinha norte-americana, Lumberton, são vistos praticando suas cotidianidades e logo se percebe que “realismo” é uma palavra que passa longe de tudo o que se relaciona à película. Sob um sol brilhante de comercial de margarina, crianças brancas e de roupas limpinhas atravessam uma pista na faixa de pedestres, protegidas por um guarda satisfeito, para irem harmoniosamente à escola. Uma carreta do corpo de bombeiros da cidade passa por um bairro, não para apagar um incêndio, mas para acenar – largos sorrisos, câmera lenta – aos vizinhos que não precisam pedir mais nada a Deus, porque podem acordar e, depois do café-da-manhã, pegar o jornal que um garoto – provavelmente também sorridente – jogou em seus jardins de grama verde e de flores tão bem cuidadas que até parecem artificiais.
O filme se desenvolve a partir do ponto de vista de um jovem que nasceu e se criou nessa cidade dos sonhos – Jeffrey Beaumnont (Kyle MacLachlan). De alguém cujas ações se estruturam pelos pressupostos que guiam a vida pacata de seus habitantes. E não de alguém que os ache ridículos. Eu, particularmente, acho ridículo o momento em que Jeffrey revê Sandy (Laura Dern), que conhecera na infância. Da escuridão, ela, loira, jovem, rosto imaculado e brando, vestida de cor-de-rosa claro, surge e um glorioso violino de contos de fadas é ouvido. Mas é assim que Jeffrey começa a apaixonar-se por ela. E é nesse momento que o espectador ou pára de ver o filme, ou se rende e aceita que aquelas categorias estéticas que legitimam a vida em Lumberton – clichês de filmes para a família estadunidense, iluminação de seriado de TV infantil ou de propagandas que vendem o american way of life, o sentido de uma vida tranqüila e harmoniosa, etc – serão usadas sem medo por David Lynch. Mais: serão o eixo do filme. Seu ponto de partida, quer as achemos ridículas ou não.

Vermelho perigoso

Mas David Lynch faz questão de, sempre que possível, colocar uma nota dissonante, por menor que seja, nessa melodia harmoniosa e puritana. Curtindo sua vida doméstica perfeita, a mãe de Jeffrey assiste à TV – mas é algum filme sombrio onde um homem atira em outro. No quintal, o pai dele rega o jardim, mas a ação é interrompida por um enfarte e ele cai na lama que a água da mangueira formara. Mais abaixo, escondidas pela grama brilhante, formigas são vistas assustadoramente de perto pela câmera – e o som perturbador de suas relações caóticas ressoa. O recado de Lynch é claro: o mundo não se restringe ao que os habitantes de Lumberton pensam. Algo para eles estranho, assustador – um outro bárbaro que vive nas fronteiras – existe e pode ser muito perigoso.
Jeffrey tinha ido viver longe de Lumberton, mas regressa porque seu pai é internado. A caminho de volta do hospital, acha, sem querer, uma orelha humana. Leva-a ao detetive da cidade – o pai de Sandy – e, depois disso, é tomado por uma curiosidade impulsiva para saber que história macabra está por trás daquela orelha decepada, que sombras misteriosas falam, numa voz abismal, através dela. Sandy dá as informações que conseguiu entreouvir de seu pai: sabe-se que uma mulher chamada Dorothy Vallens (Isabella Rossellini), cantora de um clube noturno, está envolvida. Os dois vão ao apartamento dela, para investigar.
Jeffrey e Sandy são duas crianças brincando de mãos dadas de detetive num playground de plástico colorido de tons claros – um rosa bebê, um azul-céu, um verde pastel – ele com seu carrinho novo e brilhante, ela com seus cachos loiros amarrados. Mas uma coleguinha triste, de cabelos pretos e batom vermelho vem perturbar a brincadeira: Dorothy. E ela tem amiguinhos que nem ela deseja. Amiguinhos que vêm quebrar o playground e levar todo mundo a outro – abandonado e enferrujado, rangendo sobre um chão de lama. “É um mundo estranho” – a frase é dita no filme três vezes, no sentido de: “há coisas desconhecidas no mundo”. Para David Lynch: há outros mundos. E o curioso Jeffrey quer conhece-los. A câmera tragada em direção à entrada da orelha decepada é Jeffrey sendo puxado pela ressaca das ondas desse mundo estranho. O apartamento de Dorothy é vermelho – um vermelho tendendo a vinho, sensual e inebriante – um vermelho que alerta: aqui é um local de transição: entre ou saia.

Azul escuro

O que Lynch queria desde o início era captar, flagrar o fascínio e o medo que causam em Jeffrey seu ingresso nesse outro mundo – violentamente contrastante daquele em que vive – mundo para ele horrível, deformado, bizarro, perigoso, emanador de morte. Lynch quer passar ao espectador uma visão psicológica específica desse mundo – a de Jefrrey, um habitante de Lumberton.
O ponto em torno do qual se constrói esse mundo é Frank Booth (Dennis Hopper): um marginal envolvido com drogas, cujas ações se guiam por impulsos de sexo pessoais primitivos, os quais afloram violentamente e são um prato cheio para quem gosta de psicanálise. O contraste com a “estética Lumberton” é patente: agora, os movimentos se dão num mundo escuro, onde há apenas velas que ameaçam ser apagadas por ventos fortes; as pessoas são feras que rugem; Frank é uma gárgula de catedral medieval; há bocas lascivas de sanguessuga, com batons vermelhos demais; há tapas de orgasmo; há a velocidade perigosa de um carro numa estrada noturna, as luzes das ruas passando muito rápido; a trilha sonora é sinistra e tem, às vezes, violinos assustadores e rápidos, como os cortes de cena. Tal é a visão de Jeffrey do mundo de Frank, onde a emoção está à flor da pele (uma música – A candy-colored clown – é o suficiente para fazer Frank gritar: “vou transar com qualquer coisa que se mexer!”); onde o sexo e a morte são fundamentais.
Frank, descobre Jeffrey, seqüestrou o marido e o filho de Dorothy e por isso a obriga a satisfazer suas neuroses sexuais. Ela, quando se relaciona com Jeffrey, se flagra em atitudes masoquistas. Ela é, como seu apartamento, uma mulher de transição. Tinha uma vida “normal” de que sente falta. Agora é obrigada a usar um robe de veludo azul escuro que é a principal tara de Frank. O masoquismo a faz concluir tragicamente: “ele passou sua doença para mim”. Ela diz a frase duas vezes ao longo do filme.
“Por que existem pessoas como Frank?” – é a voz chorosa e inocente de Jeffey perguntando. Lynch não responde, nem quer responder. Ele não se propõe a dar ou explicar causas para essa separação de mundos ou para a existência de um mundo escondido, submerso, cavernoso, estranho. Deixa isso para os sociólogos/ psicanalistas/ curiosos que analisam o filme. Ele quer é se debruçar sobre as sensações que a transição entre esses mundos causa. Ele quer é mostrar uma visão específica – a de Jeffrey – sobre o anormal e o bizarro. Às necessidades de Lynch, o exercício estético basta. E Veludo azul é precisamente isso: a pesquisa sensual de um dado debruçamento sobre o desconhecido, o misterioso e o horrível.

"O veludo do cineasta azul" por Amanda Tavares de Melo Diniz


http://www.youtube.com/watch?v=bJtGCvKpEWM

Não é preciso ver mais do que cinco minutos de Veludo Azul para perceber que estamos entrando no universo de David Lynch. Abrir bem os olhos e ouvidos e apertar a tecla “pause” para o mundo lá fora não basta. É preciso estar disposto, paciente e atento a todos os detalhes. Tudo. O detalhe nunca é mera coincidência em Lynch; ele tem razão de ser, nada é por acaso. É por isso que ver um filme do diretor exige não ter medo. Porque Lynch não conhece esse sentimento. Em seus filmes, tudo aquilo que mais aterroriza o homem é mostrado sem maquiagem (ou com uma maquiagem exagerada), sem cortes, exatamente como se passa lá pela mente dos indivíduos. Em entrevista recente ao canal GNT, o cineasta contou que faz filmes para traduzir em imagens o que se passa em nossos inconscientes, os sonhos e desejos mais secretos. Disse, ainda, que não se preocupa em ser entendido e, sim, em retratar com fidedignidade a desordem e as possibilidades da imaginação. E o faz com maestria e mão firme, sem perder o olhar criativo e cuidadoso para a estreita relação entre o real e o imaginário, a qual se faz ainda mais tênue ao longo de toda sua obra. É que Lynch não limita nem delimita seus filmes. Tudo é exatamente como no sonho: sem fronteira, sem borracha, sem tempo nem enredo definidos, tudo isso traduzido num universo de criaturas bizarras e cores berrantes, vivas. Veludo Azul foi lançado em meados da década de 80, conhecida como a década do exagero, das produções over e de uma certa atmosfera de fragmentação, de quebra de padrões, e essas influências se fazem claras em vários momentos da película, especialmente nos momentos em que Isabella Rosselini entra em cena com seu vestido de veludo azul e seu batom ultra vermelho. Logo após a abertura em que os créditos aparecem sobre uma espécie de tecido azul escuro ao som de Blue Velvet, a música perfeita para estabelecer a atmosfera própria que irá reger o filme até seus momentos finais, o espectador se depara com um jardim de cores fortíssimas, que contribuem bastante para explicitar o contraste que marcará todo o filme de David Lynch. Dizem alguns cinéfilos que a abertura pode definir um filme inteiro. Parece que o cineasta concorda com essa afirmação, uma vez que as aberturas de seus filmes são um espetáculo a parte, sempre carregadas de estilo e mostrando os primeiros traços da história a ser relatada, como uma forma de prender logo de cara a atenção do espectador. Lynch é um dos poucos cineastas que conseguem manter essa atenção dos primeiros minutos até o fim do longa, oscilando entre picos de emoção e os chamados “momentos de respiração”, sem deixar o espectador se afastar ou se perder dentro da densa selva que é Veludo Azul. Porque uma simples estrada errada pode significar nunca mais voltar ao caminho inicial. Um aspecto que contribui para isso é a imprevisibilidade do diretor, o que significa que o público tem de prestar atenção redobrada a todos os detalhes, uma vez que cada segundo pode trazer algo de revolucionário, capaz de mudar completamente o rumo da história. Por mais que se assista Lynch, não há como conhecê-lo inteiramente, o seu terreno é sempre o do desconhecido. E talvez seja justamente essa característica que faz dele um gênio do cinema : esse poder que ele tem nas mãos de surpreender até os que já acreditam terem visto de tudo em matéria de experiência cinematográfica. Os seus filmes não podem ser contados ou definidos em sinopses; é preciso entrar em contato com a experiência visual David Lynch para, a partir daí, enveredar pela compreensão do enredo. Lynch desafia o espectador a enxergar a anormalidade secreta da normalidade, as formigas que estão debaixo da terra, o espetáculo assistido pelas roupas e os cabides de dentro do guarda-roupa, o terreno baldio que só é notado quando nele é encontrada uma orelha, e a enxergá-la como a própria realidade, vista com as lentes de aumento do diretor. O cineasta nos mostra que, dentro desse mundo que testemunhamos todos os dias, existe a violência extrema, a dor, o medo e a obsessão, freqüentemente encobertos pelas paredes ou pela iluminação fraca das ruas e que, se observarmos com um pouco mais de atenção, veremos uma nova realidade se descortinar diante dos nossos olhos. Mais do que isso, Lynch consegue perturbar o espectador, deixando-o angustiado e com uma sensação de estar praticando voyeurismo, observando o outro em profundidade. Veludo Azul é um clássico que alia o talento indiscutível de David Lynch à atmosfera de exagero dos anos 80, o que não poderia resultar nada menos que um maravilhoso estudo sobre o lado mais obscuro e animalesco da natureza humana sem meias palavras e com uma riqueza de detalhes poucas vezes vistas.

"Cinema-barroco à moda do chefe" por Manoel Pires Medeiros Neto






São diversas as opções de filmes disponíveis nas prateleiras das locadoras. A dúvida entre a comédia romântica e o suspense é a deixa para o início de uma discussão entre um casal de namorados. Bate boca quase sempre sem razão de ser – com a pasteurização dos produtos culturais da contemporaneidade, a superficialidade das obras faz parecerem tão semelhantes quanto inúteis. Entretanto, há opções mais animadoras repousando sobre tais prateleiras. O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante, de Peter Greenway, lançado em 1989, é o típico filme difícil de ser esquecido. Ao assisti-lo, os olhos atentam para a efervescência de imagens e cores paradoxais que fazem emergir variadas reações perceptivas. Um passeio angustiante entre as facetas nuas e cruas, literalmente, da subjetividade humana.
A história se passa em Londres (mas poderia se enquadrar em qualquer outra cidade grande européia ou americana), especificamente em torno do restaurante “Le Hollandais”, conceituado na produção de alta culinária. O refinamento do recinto, no entanto, defronta-se com o irregular comportamento do seu proprietário, Albert Spica (Michael Gambon), que janta lá diariamente, acompanhado de sua mulher, Giorgina Spica (Helen Mirren), e de outros acompanhantes chefiados por ele.
Narrada dia a dia, a trama é desenrolada a partir do instante em que os olhares de Giorgina e de um cliente, o dono de uma livraria, Michael (Alan Howard), se entrecruzam. A paixão e as sucessivas relações sexuais dos dois, em diversas partes do restaurante, chegam ao conhecimento do totalitário Albert. Tensão e morte dominam a continuação da película que é finalizada com uma das seqüências mais marcantes da história do cinema – o cozimento dos restos mortais de Michael servidos ao tenebroso Spica. Ao citar o canibalismo, a obra atinge o seu ápice – um retrato irônico da machadiana reflexão: “aos vencedores, as batatas”.
A estética rebuscada e bem realizada é o grande trunfo do filme. Para Greenway, os muito preocupados com a narrativa deveriam ser escritores e não cineastas. O roteiro do filme, simples ao extremo, não compromete o resultado final e chega a provocar reflexões: política e capitalismo podem ser debatidos após uma sessão de O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante. Utilizando-se da linguagem do teatro, a fotografia, comandada por Sacha Vierny (O Ano passado em Marimbaud e Hiroshima meu amor), colaborou com a construção de cenas que remetem ao horror que a história necessita. Com figurinos do competentíssimo Jean-Paul Gautier, a produção ganha ares de requinte e luxo. Tudo para compor, com o auxílio da interessante iluminação (vermelha, branca, dourada e verde) uma atmosfera burguesa e cafona. Uma pintura poética que mistura sofisticação, luxo e crueza. O ponto alto da produção artística de Greenway.
Faz-se presente, no cenário principal (salão do restaurante), a tela do naturalista holandês Franz Hals, intitulada “O banquete dos Oficiais da Guarda Civil de São George”. A pintura, que é uma reflexão sobre o egoísmo, estaria funcionando como ataque direito às atitudes egocêntricas do governo inglês, sob o comando da mão-de-ferro, Margareth Thatcher. O povo inglês, prejudicado com o crescimento dos impostos (como, por exemplo, a poll tax), já não a suportavam. Além desse aspecto, é possível observar a forte influência de um pensamento barroco na construção estético-narrativa do filme. Ao contrapor cenas de sexo e de preparação de pratos requintados; luzes claras e escuras; a ignorância do Ladrão com o requinte intelectual do Amante, Greenway sublinha o contraditório jogo no qual o ser humano está em constante participação.
Com excelentes atuações do seu elenco, uma história simples e cenas chocantes, o filme dividiu críticos na época do seu lançamento. É uma obra difícil de ser esquecida. Ao focar o ser humano através dos elementos pré-escatológicos, Greenway posiciona-se do lado oposto dos triviais filmes aos quais os casais de namorados tanto se acostumaram a assistir. Beleza plástica, reflexão e canibalismo – marcas de uma inesquecível “história de amor”.

"Um hino ao amor e à amizade" por José Bruno Marinho


http://www.youtube.com/watch?v=1JH3O4HSs7g

A bela canção Le tourbillon de la vie (“O turbilhão da vida”), que aparece sendo cantada em uma das cenas de Jules e Jim – Uma mulher para dois (Jules et Jim, 1962), sintetiza bem o enredo desse filme de François Truffaut. Embora apenas apareça lá pela metade do longa-metragem, a música auxilia na compreensão da história narrada e, como o próprio diretor foi enfático em afirmar, “marca o tom para o filme e é a sua chave”. Numa das estrofes, escuta-se: “Temos de nos conhecer uma vez e, depois, uma segunda vez / Perdemos contato uma vez e, depois, outra vez / Voltamos a nos encontrar e trouxemos calor um ao outro / Depois, nos separamos, cada um, sozinho, partindo de novo no turbilhão da vida”.
Uma das obras mais representativas da Nouvelle Vague – movimento artístico do cinema francês que defendia a transgressão às regras normalmente aceitas e praticadas no cinema mais comercial –, Jules e Jim traz a história da sólida amizade dos personagens-título do filme: o austríaco Jules (Oscar Werner) e o francês Jim (Henri Serre). Eles se conhecem casualmente na Paris do início do século XX e, uma vez partilhadas as afinidades quanto ao gosto pela arte e pela vida boêmia, tornam-se amigos inseparáveis. Nessa atmosfera de liberdade, carpe diem e afins, Jim e Jules conhecem Catherine (Jeanne Moreau), uma francesa também adepta a esse estilo de vida e pela qual ambos se apaixonam. Jim, à sua maneira mais discreta, reservada e aparentemente indiferente; e Jules, de forma mais incisiva, direta, quase que sedenta. Embora Catherine se case e tenha uma filha com Jules, o triângulo amoroso se faz onipresente ao longo do filme.
Por mais que trabalhe com diversos temas – a amizade, o amor, as lembranças da Belle Époque e do pós-guerra –, Jules e Jim é, antes de tudo, um filme de personagens. É evidente que se os personagens não fossem interessantes, o filme também não o seria. E do trio, certamente quem mais intriga e embriaga o espectador é a personagem magistralmente interpretada por Moreau. Catherine é uma jovem mulher que deseja viver com as mesmas liberdades de um homem, desejo este que se deve mais à particularidade da sua personalidade do que a uma atitude feminista ou reivindicativa de sua pessoa. Ela é a própria personificação da imprevisibilidade e do mistério: é inconstante, indecisa, possessiva; mas, por outro lado, revela-se independente e divertida, constituindo uma companhia extremamente viciante. Como todo ser de caráter temperamental, Catherine solicita sempre atenção, dedicação e devotamento. Ela quer ser o centro a todo custo e a todo momento, procurando deixar o foco permanentemente em sua direção. Ao contrário do que o título do filme sugere, Catherine é, sem dúvida, a personagem central da história narrada: ela é quem dita o rumo do seu relacionamento com Jules e com Jim, que – uma vez inebriados pela sua presença – satisfazem os caprichos da bela mulher e se rendem às decisões desta.
Baseado no romance homônimo escrito por Henri-Pierre Roché aos 66 anos, Jules e Jim vem ratificar a imagem de Truffaut como praticante ilustre de um cinema literal. A paixão desse cineasta pela literatura só era superada pela do cinema e, dessa dupla paixão, ele desenvolveu um estilo peculiar de fazer filmes. Em Jules e Jim, tido como uma de suas adaptações de maior qualidade, Truffaut resgata a narração em off, reintroduz a importância preponderante dos diálogos na compreensão da história, entre outras escolhas que o revelam como um indivíduo obcecado pela palavra. Além disso, outros aspectos formais do filme merecem destaque, como a fragmentada e espontânea montagem, os movimentos despojados da câmera, o congelamento de imagens, entre outros truques criativos que garantem fidelidade ao livro adaptado, mas igualmente permitem ao diretor recorrentes visitas a sua imaginação.
Apesar de tratar de um dos problemas cruciais no casamento – a infidelidade –, a temática central do filme aparenta ser a amizade. De cena em cena, de diálogo em diálogo, Truffaut descortina aos olhos do espectador uma cumplicidade cega entre Jules e Jim e enfatiza o companheirismo infinito que marca os dois amigos, os quais compartilham uma amizade que nem a Primeira Guerra Mundial, ao separá-los conforme a bandeira dos seus respectivos países, consegue extinguir. Além disso, o filme denota também uma mensagem de tolerância a uma forma de amar habitualmente reprovada pela moral. E se ele consegue ser simultaneamente subversivo e cativante é justamente por causa das excelentes atuações do trio protagonista e do inegável talento de Truffaut que, sem agredir ao público, envolve-o de forma a aceitar na tela certas situações que provavelmente condenaria na vida real. Como poucos outros filmes, Jules e Jim torna natural o que poderia parecer excepcional.

domingo, 2 de dezembro de 2007

"It’s a strange world!" por Fellipe Fernandes


David Lynch, ao construir seu próprio mundo, sustenta-o com uma linha de raciocínio peculiar: a aparente normalidade de todo ser humano esconde os mais curiosos fatos e sentimentos. Veludo azul, de 1986, é o filme que melhor resume a estética de seu diretor, não por levar ao extremo a falta de lógica de sua lógica – o que faz, de forma primorosa, Cidade dos sonhos – mas justamente pelo contrário: ao assumir um compromisso com a realidade – a realidade tipicamente americana da cinematografia noir – o bizarro, comum às suas obras, torna-se ainda mais estranho, pois ganha proporções grandiosas ao ser colocado lado a lado com o ordinário.Mas Lynch faz questão de nos apresentar o belo do ordinário: o canteiro de rosas vermelhas margeado por cercas brancas sob o céu azul, a organicidade dos subúrbios americanos, a clássica beleza caucasiana da mocinha, o heroísmo destemido da juventude e as palavras minuciosamente escolhidas dos diálogos.

O diretor e roteirista parece querer mostrar a superficialidade do olhar distante. Os outros são sempre normais, sempre felizes com suas gramas mais verdes. Contudo, quando se abre a porta da casa e, convidados ou não, entramos na vida do próximo percebemos a excentricidade das vicissitudes dos homens e de suas vidas mundanas. Somos convidados a apreciar um pacato subúrbio americano, aquele das cercas brancas e flores no jardim, mas a partir de um estranho acontecimento – uma orelha humana é achada por um rapaz no chão do bairro – ultrapassamos, pouco a pouco, a barreira do olhar estrangeiro até nos afundarmos na estranheza daquelas pessoas, daquele subúrbio, que funciona, para Lynch, como simulacro do mundo.
O diretor nos apresenta a uma obra tensa, passamos um tempo que não se conta sem conseguir respirar tranqüilamente, o suspense do noir é levado ao extremo: Veludo azul é sufocante. Ficamos presos à tela, fascinados pela estranheza das situações, pela beleza dos quadros e pela curiosidade provocada pela possibilidade do impossível, típica da filosofia do artista criador de realidades. Talvez seja essa a matéria-prima de Lynch: a realidade, suas camadas e as inquietações que ela provoca. Assim, o diretor nos oferece uma obra que penetra nessa realidade decifrando algumas de suas camadas. Vale lembrar, no entanto, que desvendamos uma realidade própria de Lynch, com elementos cinematográficos que fazem de Veludo azul um dos mais significativos filmes da década de oitenta.

Essa é a verdadeira mágica, afinal de contas os personagens de Veludo azul, assim como os personagens de historias noir, são estereótipos, prevalecendo sobre eles as ações da trama, mas os acontecimentos são absurdos, estão dentro do mundo lynchiano. Portanto, é realmente admirável que o filme seja capaz de nos envolver. A coerência do mundo criado por Lynch não põe em duvida a veracidade daqueles personagens e situações. Acreditamos, assim, na realidade lynchiana – ainda que ele faça questão de nos lembrar que tudo aquilo é cinema. No fim, todos têm a certeza de Jeffrey: it’s a strange world. E quem duvida?

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

"O ano passado em Marienbad" por Helena Alencar







O mote é, aparentemente, banal – o reencontro de um casal de amantes, um ano após se conhecerem, no mesmo hotel. O ponto de vista é tudo. Ao contar tal história lançando mão de todos os recursos possibilitados pelo vídeo, Resnais constrói o reencontro enquanto, simultaneamente, revela lembranças do fato ocorrido. Na contramão na linearidade temporal, expõe o presente e deixa dúvidas sobre o passado. Aquele encontro realmente aconteceu? O homem insiste em convencer a mulher, que nega freneticamente, permitindo-se, contudo, eventuais momentos de contemplação que nos fazem considerar veracidade na insistência do suposto amante. E as cenas passam diante dos olhos dos espectadores sem preocupações lógicas ou cronológicas.

Talvez o pensamento livre de cobranças pelo encontro de um significado seja o pressuposto essencial na contemplação e compreensão da obra. Os eventos se sucedem, à primeira vista, desconexos e nada coesos. As falas dos personagens se repetem – ele garantindo que já se encontraram, contando passagens dos momentos que viveram juntos, mostrando fotos, exigindo que ela recorde; ela negando, pedindo que a deixe em paz. O filme é a ótica dela. Sua confusão interior transparece na mistura de imagens – a mesma cena ocorre em locais diferentes, com figurinos distintos, às vezes, a mesma situação tem desfechos variados. O contraste se faz, então, essencial na revelação da quebra de linearidade proposta pelo diretor. Roupas pretas ou escuras aparecem em momentos que remetem ao presente, o branco é a cor predominante nas memórias do ano anterior. Mesmo esse fio de lógica, entretanto, se desvanece no desenrolar do filme. Ela não sabe mais o que foi ou o que é, não percebe o que houve ou o que ela imagina ter havido, não sabe se crê nele ou não, é, aos poucos, convecida. E o jogo de imagens traz ao espectador todas as suas dúvidas. O homem mente?

O marido é mero figurante. E os figurantes pouco falam, em verdade qualquer gesto seu é solicitado pelos protagonistas e entra como complemento a ação da cena. O filme é organizado aos moldes dos pensamentos, se é que há, neles, qualquer ordenação. Algo que nos remete, inevitavelmente, ao conceito de “fluxo de consciência” associado à obra de Clarice Lispector – mistura de memórias, idéias e uso de linguagem que percorre os caminhos cheios de idas e vindas, curvas e atalhos, do pensamento.

Abrem-se também, durante o filme, múltiplas possibilidades de explicações metafóricas ou figurativas. O jogo, que o amante sempre perde e o marido sempre ganha, a estátua – o homem protege a mulher de algo ou ela o alerta para qualquer coisa?-, as fotos, inúmeras, que aparecem na gaveta da mulher, como se, repentinamente, encontrasse as recordações produzidas pelo amante, outrora escondidas.

Em O ano passado em Marienbad, Alain Resnais abre mão do conteúdo em prol da forma – e ela é, sem dúvida, o que dá densidade ao filme. A fotografia clássica, a montagem e as técnicas inovadoras associadas a uma temática recorrente em sua obra – a memória – convergem em uma película que se tornou um marco da nouvelle vague. O segredo é se deixar levar.

"A história de um amor que se viveu sozinho" por Paulo C. S. de Azevedo


O filme todo parece um fluxo de consciência, talvez essa impressão fique tão marcante por causa da narração do personagem principal durante toda a história. Além do narrador, existem apenas mais dois personagens relevantes: a mulher, à qual o narrador faz referência constante; e o seu acompanhante no hotel no qual a história se passa.

Os cenários são sempre muito bonitos, grandes salões, jardins, sacadas, corredores. As pessoas também são elegantes, elegância apropriada à festa onde estão. No entanto, a festa que é vista no filme não parece acontecer. Os sons que uma festa normal teria, a música da banda, ou até mesmo as conversas das pessoas, tudo se passa em silêncio, sem nenhum som. Ou pelo menos sem nenhum som diretamente ligado à imagem, já que a música da banda às vezes aparece como parte da trilha sonora, por mais que ela não esteja presente.

A impressão que se tem é que as pessoas do filme, fora, obviamente, os três personagens principais, fazem parte apenas da composição da imagem, quase como se fossem elementos cenográficos. Seus diálogos, suas ações, nada parece ter relevância na história.
História essa que, do meu ponto de vista, é retratada exatamente como quando nós nos lembramos de um amor do passado. Nós provavelmente não lembramos das pessoas que estavam na festa, nem dos assuntos sobre os quais falavam, mas sabemos o que falamos com quem amávamos no momento. É isso que o filme retrata, e retrata do mesmo jeito que a lembrança, com diálogos confusos, repetidos e organizados de uma forma não-linear. Só são retratadas as cenas, os diálogos e os sons que foram importantes para o personagem principal.
Os diálogos fazem referência ao ano anterior ao qual se passa a história. O narrador insiste que encontrou-se com a mulher nesse determinado ano, e que ela lhe pediu para que esperasse por mais um outro. No entanto, a mulher não parece lembrar-se do narrador no princípio do filme, por mais que sua postura vá mudando ao longo da história.

Esse é um outro indício do fluxo de consciência retratado no filme, onde o personagem principal tem problemas em relatar o que realmente aconteceu, já que, como na maioria das paixões antigas, é difícil de separar o que aconteceu dos desejos sobre o que deveria ter acontecido. Como quando, antes de deitar, ficamos nos perguntando o que poderíamos ter feito de diferente, ou o que poderia ter acontecido diferente.
Além das declarações do narrador, fica clara a paixão que ele sentia também através das imagens. O figurino e a maquiagem da mulher são sempre mais marcantes do que os das outras personagens. Sem contar que não são figurinos comuns, são sempre mais extravagantes e com cortes diferentes; a atenção dada, não só pelo narrador, mas por todos os personagens, em relação à mulher é diferente das outras mulheres da festa. Como se ela fosse a única que importasse.
No fim das contas, se trata, mesmo, de uma história de amor. A história em si não é muito
diferente dos amores hollyoodianos, nem o filme, visualmente falando. A real diferença entre O Ano Passado em Marienbad e os outros filmes de amor é a forma que a história é contada, sob a ótica exclusiva do personagem principal. Diferentemente de Hollywood, a história não é contada, e sim sugerida pelo que se passa pela cabeça do narrador. E por mais que exista uma narração, o personagem não conta a história, é como se ele apenas se lembrasse dela.

"Faces" por Hugo Carneiro Coutinho


O homem é o ponto de partida para Faces, de John Cassavetes (1968). Richard Frost, ou Dickie (John Marley) é um empresário de sucesso que vai tentar um investimento no ramo cinematográfico. É casado com uma bela mulher (Maria Forst, vivida por Lynn Carlin) e mantém relacionamento com uma prostituta de luxo, Jeannie (Gena Rowland). Faces é o primeiro filme do diretor que aborda o tema conflito de casamento, que seria repetido em vários de seus próximos filmes. Paralela e concomitantemente, trata da vida íntima de personagens da high society americana. No final das contas, discute amizade e solidão, da forma mais crua possível.

A introdução de Faces mostra Dickie recebendo um grupo de empresários lhes oferecendo um produto, que é um filme. Eles então começam a tergiversar sobre otal produto, para convence-lo a patrocinar a empreitada, uma clara ironia à produção independente a qual o filme está inserido. Um deles diz que é a “Doce Vida do cinema comercial”, e o outro nega, dizendo que todos já perderam muito tempo falando de números (referência às tramas fragmentadas de tantos diretores), e que agora procuravam algo mais sincero, mas também bem feito. Após todas as considerações, o filme começa.

Em Faces, cenas longas, poucos cortes e diálogos precisos tiram o fôlego do espectador. Cassavetes vem da tradição do teatro e ele mesmo atuava nos palcos antes de começar escrever e fazer filmes. Daí justifica-se a digníssima direção de atores, provavelmente muito ensaio e entendimento do texto incidental. Há cumplicidade, sendo ele muitas vezes amigo de quem representa seus personagens. O exemplo mais notável é a deslumbrante Gena Rowland, que trabalhou nada menos que dez vezes com o diretor.

A crueza do filme se traduz em sinceridade. Através dos diálogos é possível identificar-se com facetas de praticamente todos personagens, porque eles são tão reais. Não dá pra encontrar um supérfluo dentro da trama. Apenas eles estando em cena, lhes são revelados características íntimas. Isso é uma constante.

Dickie é um homem rico visto de perto, em sua vida fora do trabalho. Tem um senso de humor incrível, mas guarda consigo angústias que são só suas. Mantém um casamento aparentemente estável e sem filhos, com uma mulher bem mais jovem. Extravasa na bebida, mas sabe beber, e tem em Jeannie sua parceira e amiga. A bebida, inclusive, perpassa todo o filme, trazendo à tona as vontades e sentimentos mais latentes de cada figura.

Em um de seus extensos diálogos, Dickie fala que amigos nunca se levam a sério. Os personagens nunca são quem eles mostram ser à primeira vista e é fascinante descobrir quem é cada um a cada minuto do filme, e de perto. Cassavetes abusa usa closes. Como Bergman, seus filmes têm poucos personagens, e no caso de Faces, as filmagens são praticamente todas em ambientes internos, geralmente interior de casa, mas diferentemente do diretor sueco, seu cinema é o mais real cotidiano que surreal. Cassavetes tem o ímpeto de ser mais realista ao dizer que tudo é filme antes do filme começar, fazer uma avaliação de sua obra antes de mostra-la, e deixar avisado que tudo é real, verossímil e possivelmente causará angústia em um casal de meia idade qualquer.

"Viva a futilidade!" por Roberta Dornelas


Uma loira, bela , glamourosa e ingênua prostituta de luxo, vivida por Marilyn Monroe. Essa é a personagem principal do filme Bonequinha de Luxo que passava na mente de Truman Capote. Ao escrever o romance Ao Começo do Dia, em 1958, Capote tinha uma idéia precisa de como aquela novela poderia ser adaptada ao cinema. Alguns anos mais tarde, porém, a Paramount adquiriu os direitos para filmar a obra e a escolhida foi a jovem e menos famosa Audrey Hepburn.

Bonequinha de Luxo (1961) conta a história de Holly Golightly, moça que ganha a vida sendo acompanhante de homens ricos e vive com a esperança de que possa encontrar, entre eles, seu futuro marido milionário. Holly é uma jovem bem amalucada que possui um apartamento bagunçado, um gato sem nome e tem como hobby tomar café da manhã admirando as peças da joalheria Tiffany’s. Certo dia, um novo vizinho aparece em seu prédio. Era Paul Varjak, escritor que possui apenas uma obra e que tem como fonte de renda uma rica senhora casada, a quem “acompanha”. Holly e Paul começam como amigos, mas logo se apaixonam e ela tem que tomar uma difícil decisão: ficar com o pobre homem que ama ou continuar em busca de um marido rico.
A estranha escolha de Audrey Hepburn para o papel de Holly Golightly não podia ser mais acertada. Todos viam em Audrey apenas uma moça esguia de rosto angelical. Até a própria Audrey tinha suas dúvidas quanto ao papel. “Eu não tinha nada a ver com ela, mas eu sentia que podia interpreter Holly. Eu sabia que o papal seria um desafio, mas queria de qualquer forma. Sempre me pergunto se me arrisquei demais.” disse Audrey. O diretor Blake Edwards, no entanto, conseguiu extrair da atriz uma personagem inigualável. Ao final do filme, é preciso parar e pensar bem para lembrar que Holly é, na verdade, uma prostituta. O look cheio de glamour e, ao mesmo tempo, de inocência de Audrey transformou a personagem de Truman Capote numa verdadeira princesa.
Uma curiosidade desse filme é a parceria de Audrey Hepburn com o estilista Hubert de Givenchy, iniciada em 1954 durante as filmagens de Sabrina, do diretor Billy Wilder. O engraçado é que, para Givenchy, tudo começou com uma pequena decepção. Foi dito que a “Srta.Hepburn” viria vê-lo e ele esperava encontrar a famosa, ganhadora de vários Oscars, Katharine Hepburn. Após a decepção, porém, Givenchy encontrou em Audrey a musa perfeita, e a parceria entre os dois durou até o fim da vida da atriz. O trabalho do estilista em Bonequinha de Luxo ficou famoso. Mesmo que não se saiba que é de Givenchy, mesmo que nunca se tenha visto o filme, não há quem não conheça o pretinho básico e a elegância do visual de Holly Golightly.

Capote pode não ter achado que o filme fez jus ao seu romance. Bonequinha de Luxo é, porém, um filme adorado por milhares de pessoas. Talvez por ser desprovido de segundas intenções, cenas chocantes, conteúdo político ou dramas profundos. É uma verdadeira “ode à futilidade”, uma obra cheia de humor. Um humor que chega a ser bobo, como é o caso do personagem Sr.Yunioshi, um vizinho a quem Holly vive importunando para abrir a porta, pois ela sempre perde suas chaves. É, sim, um filme fútil e bobo. Ainda assim, um filme que diverte, que ditou modas que duram até hoje e que fez de Audrey Hepburn uma atriz inesquecível. Afinal, quem poderia, hoje, imaginar Marilyn Monroe interpretando nossa adorável bonequinha de luxo?

"Saudações a Antoine Doinel" por Fellipe Fernandes


Em fevereiro de 1968 – o ano em que tudo aconteceu – Truffaut filmou Beijos Proibidos, terceira aparição do incompreendido Antoine Doinel, personagem vivido por Jean-Pierre Léaud em Os incompreendidos (1958), Amor aos vinte anos (1962) e Domicílio Conjugal (1970). Nesse mesmo fevereiro Henri Lamglois foi destituído do seu cargo na Cinemateca Francesa. Daí em diante aconteceria em Paris a grande revolução da segunda metade do século XX: liderado por estudantes, o episódio de maio de 1968 é o símbolo maior dos jovens daquela geração. Esperava-se então que François Truffaut, membro do Conselho de Administração da Cinemateca Francesa, materializasse essa inquietude revolucionária no filme que estava gravando, tendo em vista que o protagonista fazia parte de tal geração, ao menos de acordo com sua faixa etária. Mas Truffaut estava em busca daquilo que vai além do contemporâneo.

Certa vez ele afirmou que Antoine Doinel era ele mesmo até o momento que o entregou a Jean-Pierre Léaud, com isso o personagem tomou vida própria. Em Beijos Proibidos vemos a saída de Doinel do serviço militar e sua carreira como detetive particular, condição que o faz viver acontecimentos únicos. O filme encontra sua graça na poética melancolia da vida de Antoine, que parece estar sempre a procura de seu lugar – aí também reside a tristeza da história, já que um espírito errante como o do jovem Antoine Doinel jamais será compreendido. Assistimos a um filme de personagens, pois esses prevalecem às situações, aos fatos e ao enredo: entendemos a história através de sensações.

Beijos Proibidos não é moderno, uma vez que o verdadeiro desejo de Truffaut é eternizar seu olhar sobre o mundo. Sendo assim ele faz uma obra embriagada de nostalgia, sobre uma juventude que sempre existirá mas que nunca será verdadeiramente nova. Uma nostalgia melancólica como aquela música inicial que pergunta numa melodia suave o que restará do nosso amor. Assim também faz Truffaut com Antoine Doinel, ele aprecia os olhos inquietos dos jovens de todas as eras e pergunta, num suave longa-metragem : o que restará da nossa juventude?

"Reflexões a partir do luxo da bonequinha" por Breno Lemos Pires



Bonequinha de Luxo (Breakfast at Tiffany’s, 1961) — adaptação cinematográfica do livro homônimo de Truman Capote — é uma mistura de drama, comédia e romance estrelada pela magnífica Audrey Hepburn e que faz enorme sucesso com o grande público. Imersa em um mundo de inocência, ambição, superficialidade e muita sofisticação, Holly Golightly (Audrey) — jovem que largou a família no interior para ganhar a vida em Nova York — torna tenros os corações mais duros. O filme, em que pese seu tom brando, dá ensejo a temas mais interessantes, e a reflexão a partir dele pode ser — ao contrário da protagonista — mais profunda. E mais proveitosa.

A quase totalidade dos textos concernentes a Bonequinha de Luxo invariavelmente trata do glamour e da sofisticação de Audrey Hepburn. De fato, é quase impossível não tocar nesse assunto, dado o encanto etéreo que a atriz naturalmente exala, capaz de inebriar mesmo os espectadores mais sóbrios. Deve-se a isso, em grande parte, a existência de uma espécie de culto a Audrey Hepburn — que personifica a genuína elegância feminina — e, do mesmo modo, a Holly e a Bonequinha de Luxo. Esses alvos de adoração são como que instituições da sociedade ocidental contemporânea, a qual necessita de ídolos para fomentar o ideário capitalista e liberal. Nesse contexto, certamente é conveniente prestar tributo esses mitos.

Em certa medida, os ideais e os sonhos nada modestos de Holly Golightly extrapolaram as telas e penetraram no imaginário da sociedade ocidental contemporânea. Filmes como este — por sublimar assuntos polêmicos mesmo em uma época em que o conservadorismo puritano era mais repressor e, ainda assim, repercutir satisfatoriamente — tiveram papel relevante no processo de libertação sexual e psicológica das mulheres que estava em curso desde a metade do século XX. Além disso, contribuíram para consagrar o papel e a compreensão do luxo nessa sociedade.

O fato de a palavra luxo ter, como acepções atualmente predominantes, “magnificência” ou “aquilo que apresenta especial conforto” — e ser considerada algo benéfico, algo que envolve méritos, sinônimo de sucesso — revela, por si só, o quanto ele é desejado pelas pessoas. Luxo também quer dizer “coisa dispendiosa ou difícil de se obter, que agrada aos sentidos sem ser uma necessidade” ou “o que é supérfluo, que passa os limites do necessário”; ainda assim, é a outra definição — a que compreende essa palavra como algo benéfico — que prevalece no imaginário coletivo, para o qual Bonequinha de Luxo é como música para os ouvidos.

Foi o conceito de luxo que se transformou? Não por si só. O provável é que tenha sido transformado pela redefinição de um termo que lhe determina o sentido: necessidade. Séculos após as grandes navegações, muitas especiarias e iguarias de terras distantes, outrora artigos de luxo, tornaram-se parte do cotidiano urbano, graças à expansão do mercado global. Mais recentemente, com o universo do consumo e da moda — reforçado por filmes como Bonequinha de Luxo e O Diabo Veste Prada — incidindo implacavelmente sobre as mentes das pessoas, estas se encontram diante de novas necessidades, antes supérfluas.

Talvez seja justamente pelo fato de o simples, o mediano e o modesto não mais serem o bastante que palavras como medíocre e vulgar, embora polissêmicas, têm sido utilizadas predominantemente no sentido pejorativo, em detrimento dos outros significados divergentes que carregam em si. O termo medíocre, por exemplo, não necessariamente implica “pouco talento, pouco valor”, mas assim é usado no dia-a-dia; as acepções “médio”, “mediano” e “que está entre bom e mau” são parcamente utilizadas.

Outro ponto presente em Bonequinha de Luxo digno de reflexão é a questão do desapego às paixões como forma de resguardar a liberdade. O que é muito mais representativo da personalidade de Holly. Ela se considerava livre e selvagem e via o amor como uma jaula, por isso não dera nome ao gato que criava nem mobiliara a própria casa, ciente de que poderia, subitamente, ter de partir, deixando para trás o passado recente — o que, decididamente, faria, assim conseguisse conquistar um milionário que a levasse ao altar.

Não obstante o desapego ao universo ao redor, havia duas exceções: a Tiffany’s e seu irmão Fred Só uma visita à joalheria que admirava podia dissipar-lhe as névoas de um dia “red”, ou seja, em que “você tem medo e não sabe de quê”. A Tiffany’s era o único lugar onde seu espírito errante poderia repousar. Por sua vez, o apego ao irmão Fred, militar servindo o exército, era tão grande, que ela, mesmo em uma relação de quase-paixão com o escritor-gigolô Paul Varjak (George Peppard), apelidou-o de Fred.

Numa cultura que superestima o superficial e em que o excesso urge, Bonequinha de Luxo sempre gozará de grande prestígio. Contendo elementos latentes no ideário feminino que encantam também os homens, é ameno o suficiente para não despertar críticas mais ácidas. Com o imprescindível suporte de Moon River — uma das mais famosas canções da história do cinema mundial, composta pelo multipremiado músico Henry Mancini e por Johnny Mercer especialmente para Audrey —, o filme cativa o público, mimando crianças e acalentando sonhos da juventude esquecidos pelos mais crescidos, na correria do dia-a-dia. Enfim, embalando momentos de entretenimento agradável. Necessidades supérfluas? Quem se atreveria a dizê-lo?

“Jamais serei como você. Eu mudo o tempo todo” por Diogo Guedes Duarte da Fonseca


Persona, um filme de 1966, é muito mais do que qualquer voz individual poderia dizer. Não é sobre o homossexualismo, não é sobre o silêncio, não é sobre a culpa, nada disso e tudo isso. Nem mesmo o diretor de uma obra como essa tem o direito de esgotar seus significados: e olhe que ele não é nada menos do que Ingmar Bergman.

Antes de tudo, Bergman em Persona governa um ritmo. Os cortes frenéticos iniciais incrivelmente não destoam dos calmos e intensos diálogos ou das cenas silenciosas: são uma quebra antes mesmo do estabelecimento da “normalidade” do filme. Nada da obra é corrido ou lento demais, cada acontecimento e seu tempo estão medidos para obter o efeito desejado. O silêncio é um tipo de ritmo da obra, assim como também é uma estética, uma voz e o espaço de presença do espectador. Mas do silêncio há muito a falar.

Alma (Bibi Andersson) é uma enfermeira que foi designada para cuidar da ex-atriz Elizabeth Vogler (Liv Ullmann). Elizabeth decidiu não mais falar desde um incidente enquanto se apresentava em uma peça. Alma, ainda que fragilmente, transborda confiança e simpatia, enquanto a ex-atriz tem um semblante melancólico e perdido, ainda que na verdade não seja nada frágil. No filme, o silêncio de uma mulher se comporta como a antítese das constantes confissões da outra: Alma mesmo quando sozinha, continua falando.

O silêncio estrutura quase tudo. Os diálogos e a cumplicidade se estabelecem a partir da condição inicial de silêncio, e ele significa mais do que se calar: é uma rejeição ao mundo “encenado”. O convívio social típico, o marido, o filho, falar: tudo é um teatro que repetimos incessantemente, um constante parecer, não um ser. Alma interage justamente com esse isolamento de Elizabeth, vivendo uma verborragia. A relação das duas se desenvolve e beira em certos momentos o romance, de uma forma tão sutil que permite ao espectador imaginar parte da história. Felizmente, esse recurso é empregado diversas vezes no filme com maestria.

O filme diversas vezes remete a acontecimentos anteriores na vida das personagens, no entanto Bergman não organiza flashbacks convencionais. Excetuando a cena de Elizabeth no teatro – onde, ainda assim, a narração exerce a função de completar o sentido – todas as voltas ao passado são narradas, recurso considerado pobre para alguns diretores, que prefeririam sempre mostrar imagens que descrevê-las. Quando Alma vai contar sua experiência de uma “orgia”, a narração do acontecido não só preenche o vídeo como se fosse uma imagem, mas também acrescenta à lembrança a dor que Alma passa no momento que se recorda. A culpa e as lembranças, temas recorrentes do diretor em outras obras como “Morangos Silvestres”, são também uma marca forte do filme, que não pára para se dedicar aos sentimentos, mas os aborda profundamente sem que percebamos. Para todas essas construções do filme, como o silêncio, as sutilezas, as narrações e a culpa, contribui a excelente interpretação das duas atrizes: uma se compondo no silêncio, outra nas dramaticidades milimétricas.

Outra cena que mostra o encontro perfeito de um excelente roteiro, uma genial direção e grandes atuações é quando Alma narra para Elizabeth a história do ódio da ex-atriz por seu filho. O diálogo, que surpreendemente começa com Alma dizendo “Me conte, Elizabeth. Bem, então eu contarei”, tem duas perspectivas: a de quem conta e de quem ouve a própria história. Bergman, repudiando a possibilidade de sucessivos entrecortes mostrando a face de cada uma, passa a cena completa duas vezes: uma, com o rosto de Elizabeth testemunhando, outra com Alma contando-a. Além de um lirismo, há uma grande simbologia por trás dessa construção: Alma é parte de Elizabeth, já que narra com propriedade seu passado? Ou a ex-atriz fala por meio dela? E nós os espectadores somos Elizabeth, ouvindo alguém narrar uma história para tomarmos como nossa?

Essa confusão de quem é quem ou do que é cada coisa é talvez a maior concretitude do filme, o que mais perto chegaria de uma “definição” da obra. Em certo momento, parece-nos que Elizabeth simplesmente não fala porque tem a enfermeira para falar por si ou para falar através dela. Não são duas pessoas diferentes: são duas opções do mesmo eu: uma não que mais representar nessa vida, outra luta pela volta do eu para o mundo real. Numa ocasião, o marido cego de Elizabeth vem visitá-la e toma por engano Alma como sua mulher, que é encorajada pela ex-atriz a viver o fingimento. Um companheiro, mesmo cego, não conseguir identificar sua mulher certamente é um caso de uma semelhança enorme. Ou mais que isso: um caso de igualdade. Bergman posteriormente também junta uma metade da face das atrizes e as transforma em um único ser que incrivelmente parece harmonioso e comprova que, em sua ficção, elas são a mesma, numa cena belíssima.

Outra cena que se crava na imagem de qualquer um que veja Persona é a de Alma passando a mão em seu próprio cabelo ante o espelho. Como um fantasma da lembrança, aparece sobreposta a imagem de Elizabeth acariciando seu cabelo do mesmo modo. Não é só uma lembrança: é como uma represença, é o mais próximo da poesia que pode chegar uma imagem.
Por fim, essa obra-prima de Bergman ainda tem um certo toque metalingüístico nas cenas das películas rodando e em combustão, tanto no início como no fim do filme. Mas o que Bergman faz de melhor na obra é combinar simbologias amplíssimas e ao mesmo tempo sutis, um roteiro irretocável e grandes atuações com uma direção genial – com o perdão do exagero, pois não há como dizer menos. A fotografia, de Sven Nykvist, chegar a doer de beleza em certos momentos, juntando em uma mesma obra uma atmosfera sem muitos adornos, um ritmo indefinível e uma poesia imagética sublime. Persona é um clássico que todos e cada um devem ver porque nos faz buscar palavras para descrever o que sentimos ao ver o filme: a vontade de buscar certezas onde não as há, a pequena dor de ver o quanto representamos diariamente, as grandes culpas reprimidas, o silêncio constante que negamos, a beleza das imagens que não paramos pra ver e, finalmente, quem realmente somos nós e em quantos nos espalhamos e dividimos.