quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

"O veludo do cineasta azul" por Amanda Tavares de Melo Diniz


http://www.youtube.com/watch?v=bJtGCvKpEWM

Não é preciso ver mais do que cinco minutos de Veludo Azul para perceber que estamos entrando no universo de David Lynch. Abrir bem os olhos e ouvidos e apertar a tecla “pause” para o mundo lá fora não basta. É preciso estar disposto, paciente e atento a todos os detalhes. Tudo. O detalhe nunca é mera coincidência em Lynch; ele tem razão de ser, nada é por acaso. É por isso que ver um filme do diretor exige não ter medo. Porque Lynch não conhece esse sentimento. Em seus filmes, tudo aquilo que mais aterroriza o homem é mostrado sem maquiagem (ou com uma maquiagem exagerada), sem cortes, exatamente como se passa lá pela mente dos indivíduos. Em entrevista recente ao canal GNT, o cineasta contou que faz filmes para traduzir em imagens o que se passa em nossos inconscientes, os sonhos e desejos mais secretos. Disse, ainda, que não se preocupa em ser entendido e, sim, em retratar com fidedignidade a desordem e as possibilidades da imaginação. E o faz com maestria e mão firme, sem perder o olhar criativo e cuidadoso para a estreita relação entre o real e o imaginário, a qual se faz ainda mais tênue ao longo de toda sua obra. É que Lynch não limita nem delimita seus filmes. Tudo é exatamente como no sonho: sem fronteira, sem borracha, sem tempo nem enredo definidos, tudo isso traduzido num universo de criaturas bizarras e cores berrantes, vivas. Veludo Azul foi lançado em meados da década de 80, conhecida como a década do exagero, das produções over e de uma certa atmosfera de fragmentação, de quebra de padrões, e essas influências se fazem claras em vários momentos da película, especialmente nos momentos em que Isabella Rosselini entra em cena com seu vestido de veludo azul e seu batom ultra vermelho. Logo após a abertura em que os créditos aparecem sobre uma espécie de tecido azul escuro ao som de Blue Velvet, a música perfeita para estabelecer a atmosfera própria que irá reger o filme até seus momentos finais, o espectador se depara com um jardim de cores fortíssimas, que contribuem bastante para explicitar o contraste que marcará todo o filme de David Lynch. Dizem alguns cinéfilos que a abertura pode definir um filme inteiro. Parece que o cineasta concorda com essa afirmação, uma vez que as aberturas de seus filmes são um espetáculo a parte, sempre carregadas de estilo e mostrando os primeiros traços da história a ser relatada, como uma forma de prender logo de cara a atenção do espectador. Lynch é um dos poucos cineastas que conseguem manter essa atenção dos primeiros minutos até o fim do longa, oscilando entre picos de emoção e os chamados “momentos de respiração”, sem deixar o espectador se afastar ou se perder dentro da densa selva que é Veludo Azul. Porque uma simples estrada errada pode significar nunca mais voltar ao caminho inicial. Um aspecto que contribui para isso é a imprevisibilidade do diretor, o que significa que o público tem de prestar atenção redobrada a todos os detalhes, uma vez que cada segundo pode trazer algo de revolucionário, capaz de mudar completamente o rumo da história. Por mais que se assista Lynch, não há como conhecê-lo inteiramente, o seu terreno é sempre o do desconhecido. E talvez seja justamente essa característica que faz dele um gênio do cinema : esse poder que ele tem nas mãos de surpreender até os que já acreditam terem visto de tudo em matéria de experiência cinematográfica. Os seus filmes não podem ser contados ou definidos em sinopses; é preciso entrar em contato com a experiência visual David Lynch para, a partir daí, enveredar pela compreensão do enredo. Lynch desafia o espectador a enxergar a anormalidade secreta da normalidade, as formigas que estão debaixo da terra, o espetáculo assistido pelas roupas e os cabides de dentro do guarda-roupa, o terreno baldio que só é notado quando nele é encontrada uma orelha, e a enxergá-la como a própria realidade, vista com as lentes de aumento do diretor. O cineasta nos mostra que, dentro desse mundo que testemunhamos todos os dias, existe a violência extrema, a dor, o medo e a obsessão, freqüentemente encobertos pelas paredes ou pela iluminação fraca das ruas e que, se observarmos com um pouco mais de atenção, veremos uma nova realidade se descortinar diante dos nossos olhos. Mais do que isso, Lynch consegue perturbar o espectador, deixando-o angustiado e com uma sensação de estar praticando voyeurismo, observando o outro em profundidade. Veludo Azul é um clássico que alia o talento indiscutível de David Lynch à atmosfera de exagero dos anos 80, o que não poderia resultar nada menos que um maravilhoso estudo sobre o lado mais obscuro e animalesco da natureza humana sem meias palavras e com uma riqueza de detalhes poucas vezes vistas.

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