quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

"Cão sem dono" por Gustavo Souza


"Cão sem dono" é um filme pra dentro, com um fio de história, extremamente simples, mas densa. Me agradam os filmes assim, daqueles em que muitos costumam dizer "que nada acontece". Da safra mais recente dos brasileiros, "O céu de Suely" e "Cinema, aspirinas e urubus" talvez sejam primos indiretos de "Cão sem dono", justamente por não intencionarem abraçar o mundo com suas histórias, mas, acima de tudo, fazer o trajeto inverso, ou seja, aquele que revela a condição humana em seu aspecto mais particular, íntimo, o quase imperceptível e acima de tudo "mostrável" em imagens. "Cão sem dono" é um daqueles filmes que recorrem ao particular para, talvez, chegar ao geral. E se não chegar, já vale pela intenção, pela leveza como a relação entre um tradutor em crise (Ciro) e uma modelo sonhadora (Marcela) se desenrola. Uma relação regada a bastante sexo, que, posteriormente, ganhará um contorno definido. Filme contido em seu roteiro, mas que aqui e ali mostra para o público que a delicadeza não aparece apenas na história que se conta, mas também no "elemento estético" utilizado para reforçar também a condição dos personagens. O fade in pontua a montagem para quem sabe mostrar que, assim como o romance de Ciro e Marcela, sempre prestes a malograr diante do vazio interior do personagem, o filme morre e renasce a todo instante, e esse renascer torna-se cada vez mais sólido e edificado. Os closes são inteligentes, usados no momento certo, bonitos, como o da cena em que, num momento de consolidação desse amor instável, os personagens brincam de recitar poemas. Despretensioso na história que se pretende contar, o filme de Brant destoa consideravelmente do que tem sido feito no cinema brasileiro dos últimos tempos ao recorrer às banalidades do cotidiano para pontuar o eixo central de narrativa de forma eficiente. Há momentos em que é quase documental: os diálogos, a câmera; vez por outra lembra o cinema direto, revelando a partir de uma simples conversa sobre sorvete de pêra o quanto impactante pode a passagem de certas pessoas em nossas vidas.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

"Dentro do poço" por André Antônio






Há filmes que chamam a atenção do espectador por causa de reviravoltas em suas tramas. Mas foi outra coisa que chamou minha atenção em “A menina santa” (La Niña Santa, 2004), escrito e dirigido pela argentina Lucrecia Martel. Na verdade, um conjunto delas. Os tons escuros com que se compõem as cenas (há uma predominância de marrons, há muito preto, às vezes um vinho escuro); a aparência das personagens (não há ninguém muito viçoso ou radiante, todos parecem meio cansados, como se aceitassem a idéia de viver sem ter outra escolha... as unhas das mulheres são pintadas de escuro... a protagonista é pálida, nunca sorri, tem cabelos pretos sempre úmidos); o fato de o hotel onde se passa grande parte da película ser estranhamente escuro (a certa altura uma personagem diz a outra: “este quarto está tão frio, parece um túmulo”), onde a piscina não é límpida ou cristalina – é escura e mal conseguimos ver seu piso – além de as paredes ao redor terem lodo e estarem descascando. Foi de fato quando, passados vários minutos de filme, eu comecei a atentar para esses elementos – que dão ao filme uma sombria coerência – que fiquei empolgado, mergulhando em cena após cena, intuindo que, por trás daquela trama aparentemente banal havia algo maior.

Essa coerência – uma espécie de estética de filme de espírito (já ouvi em algum lugar “poética da estagnação”) – passa ao espectador, na verdade, tanta ou mais informação que qualquer trama ou diálogo. Mas é importante ressaltar que Lucrecia Martel esconde esses elementos atrás do realismo e os oferece sutilmente ao espectador. De fato, feliz é o artista que consegue equilibrar uma espécie de mimese documental com a abstração que é a concepção e esquematização de idéias. A diretora, delicadamente, edita, exclui e esconde de sua película qualquer imagem ou situação alegre, festiva, clara. Essa atmosfera pesada, que faz os personagens parecerem mortos-vivos se arrastando dentro de um poço fundo, úmido, com as paredes cheias de ervas esquálidas, também é realçada por pequenas cenas sem nenhuma função narrativa. Exemplos: um rápido diálogo sobre a empregada ter deixado a pia cheia de cabelos; ou quando um rapaz cai de uma janela, se levanta desnorteado e uma personagem diz: “está morto. As ações dele são reflexos motores”. Por tudo isso, se pode concluir que Martel faz parte daquele grupo de artistas cuja relação com o mundo não é positiva (podemos filia-la àquele Romantismo do século XIX, ou, voltando mais no tempo, àqueles artistas medievais que tiravam poesia das feridas e do sofrimento de Cristo ou, voltando ainda mais, aos bardos gregos que preferiam falar sobre a morte da Medusa a discorrer sobre a harmonia do reino de Zeus).

De modo que o campo de forças no qual se desenvolve a trama é basicamente negativo. E o que o filme tematiza é essencialmente o seguinte: a falta de amor e de afeto. Em torno de uma linha narrativa principal (Amalia – María Alche –, jovem estudante de colégio religioso, se apaixona por Dr. Jano – Carlos Belloso –, um médico casado que vem a um congresso realizado no hotel que sua mãe, Helena – Mercedes Morán –, administra e onde com ela mora) há outras: Helena, advinda de um casamento fracassado e ressentido, também se apaixona por Jano; uma senhora que ajuda na gerencia do hotel é amarga e negativa com todos, principalmente com a filha; Josefina, a melhor amiga de Amalia, transa escondida com um garoto; o irmão de Helena, que estudou com Dr. Jano, vê que também poderia ter sido um médico de sucesso, além de querer falar com os filhos que moram fora e não lembram dele. Martel, contudo, não aborda essas linhas preocupada com causas, conseqüências ou em mostrar diálogos e situações de clímax. Ao invés de mostrar uma relação sexual altamente relevante para o entendimento das ações de certos personagens, ela mostra uma masturbação – ato solitário e desesperado. O filme não quer “desenvolver” os personagens – quer mostrar a condição deles.

Li em várias resenhas sobre o filme a tentativa de esquadrinhar a importância narrativa do tema “religião”. Mas não achei que aborda-lo dessa forma fosse relevante. Amalia, ao se apaixonar por Jano, acredita que recebeu uma missão divina (era esse um assunto que vinha sendo discutido nas aulas que freqüentava) – salva-lo. Na verdade, não é possível dizer se Amalia de fato acredita, como uma devota, que recebeuum chamado dos céus. Há uma cena em que Josefina diz à classe que Amalia recebeu tal missão, mas esta tapa a boca da amiga e as duas dão risinhos como se a cena se passasse num colégio laico e ela estivesse com vergonha de dizer que estava querendo um novo namorado. Mesmo assim, acredito que receber a missão de salvar alguém é uma bela metáfora para se estar apaixonado. E, se a função do tema “religião” não acaba aí, é porque contribui, com sua insistência em histórias de chagas e de fantasmas, com a atmosfera geral do filme.

O anseio de não “desenvolver” os personagens, mencionado antes, faz de “A menina santa” quase uma sucessão de cenas mais ou menos fragmentadas. Algumas vezes a câmera focaliza as situações muito de perto, sem preocupação com um enquadramento inteligível, como se estivesse bêbada, e as imagens se tornam um tanto evanescentes, distantes (uma cena belíssima, que dura apenas alguns segundos, é quando, no elevador do hotel, Helena convida Jano para jantar). Mas isso não tira a coerência do filme, conseguida sobretudo, repito, por causa dos efeitos de sua “estética da estagnação”. E aquela intuição inicial, de que algo maior se escondia por trás de uma trama comum, se confirmou quando eu percebi que tal trama, nadando lentamente dentro da poética de espectros sensorial de Martel, queria mostrar uma visão de mundo da diretora.

E tal visão pode ser desse modo sintetizada: o mundo é um lugar onde as pessoas são zumbis e os impulsos para amar são sempre impossibilitados. A cena-chave nesse sentido é quando Amalia e algumas amigas saem de ônibus (a câmera está como descrevi há pouco). Elas – na flor da juventude – correm livres por uma floresta e por uma estrada. Mas a floresta é escura, na estrada passa uma carreta preta que quase as atropela, Amalia, apesar de rindo, quase cai num pequeno fosso, tiros são ouvidos. O ambiente é perigoso, cruel – e ele abafa as risadas e a vontade tímida de viver das jovens. O fato de uma argentina mostrar assim o mundo – o fato de ela fugir do discurso de certos bens culturais que buscam uma espécie de “identidade nacional” já formada, ou um “discurso do exótico” – é algo importantíssimo a ser ressaltado. Porque nos faz refletir sobre o motivo de algo dessa natureza (a vida de zumbi e a não concretização do amor) acontecer em mais lugares e com mais freqüência do que se imagina – independente de nesses lugares haver o costume de se dançar tango, samba ou ciranda.

"Amor à flor da pele" por Philipe de Castro






Redescoberta em 1860 por um naturalista francês que pesquisava borboletas, a cidade de Angkor, no Camboja foi recentemente indicada como umas das 7 maravilhas do mundo moderno. Segundo historiadores, o centro de Angkor foi erguido em homenagem à Vishnu que representa o centro do universo pela tradição hinduísta. Angkor também foi usado como cenário para umas das cenas mais marcantes de Amor a Flor da Pele (In the mood of love), 2000, do diretor chinês Wong Kar-Wai.
Sentindo-se solitário pelas freqüentes viagens de sua esposa, o aspirante a escritor, Chow (Tony Leung Chiu-Wai) envolve-se amigavelmente com sua vizinha Chan (Maggie Cheung Man-Yuk) que também sofre pelo constante afastamento do marido a trabalho.
O ambiente inicial marcado pelo confidencialismo de duas pessoas desconhecidas, com problemas semelhantes, logo ganha uma carga emotiva forte em que intimidade e afeto se alimentam reciprocamente. Daí naturalmente surgirá o desejo, brequado pela alianças que ambos levam nos dedos. Todavia, é essa mesma miscelânea de sentimentos que irá revelar a Chow e Chan, curiosamente que seus respectivos companheiros são, na verdade, amantes.
Se antes, a relação se baseava num tom solitário - saudosista, agora, ambos vão ter que dividir, literalmente, a dor da traição. O que a priori poderia ser uma espécie de álibi para a efetivação plena do relacionamento entre os dois termina por criar um ponto intransponível.

Pouco a pouco a separação já pode ser pressentida. E fica ainda mais próxima quando o marido de Chan e a esposa de Chow estão perto de voltar. Aí é que Chow atormentado ( repetindo) numa das cenas mais marcantes de Amor a Flor da Pele viaja até o centro de Angkor - o filme até então passava-se todo em Hong Kong dos anos 60 - e lá, seguindo a tradição pela qual um segredo contado a uma fenda dos muros de Angkor e tampado com lama do local de lá nunca sairá, Chow sente ( pelo mesmos momentaneamente) sua alma liberta.

Wong Kar-Wai consegue como pouquíssimos unir o melhor do cinema oriental e ocidental de forma a produzir não apenas um filme, mas uma obra de arte inesquecível, em que o amor está a flor da pele, não reconhece pessoas, ele permanece e se transforma ao devir dos tempos.

Quizás, quizás, quizás.

"Crepúsculo dos deuses" por Breno Lemos Pires




No boulevard do pôr-do-sol, deuses chegam ao seu crepúsculo. Grandes estrelas perdem o brilho e não se admitem como (de)cadentes. Mas vá dizer isso a uma das mais expressivas delas...



Em Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, Paramount Pictures, 1950, 110 minutos), filme dirigido e co-escrito por Billy Wilder, o roteirista-defunto Joe Gillis — no estilo machadiano de Brás Cubas — narra sua infame e malsucedida trajetória em Hollywood, junto com a triste relutância da antiga estrela do cinema mudo Norma Desmond em aceitar a decadência na era do cinema falado. O mais significativo, no entanto, quem revela é o brilhante diretor: as agruras da indústria hollywoodiana.

A diva do cinema mudo Norma Desmond (a quem Gloria Swanson dá vida) teve o ápice da carreira até o fim dos anos 20. Bem, isso é o que os críticos dizem. Pois, no final dos anos 1940, anos dourados de Hollywood, quando a MGM tinha "mais estrelas que os céus", Norma ainda se considera plena e — como deixa bem claro com sua grandiloqüente desenvoltura excêntrica — decide não uma volta, mas um retorno ao cinema. Para isso contou com Joe Gillis (William Holden), roterista que aspirava — sem sucesso — a ascender em Hollywood e cujos serviços à madame não eram meramente cinematográficos.

Postura, entonação, vestimentas, carro, residência e até a cama... Tudo em Norma Desmond é extravagantemente grandioso. Tudo é tão seu quanto seus braços e suas pernas. São como uma extensão de si. O mesmo vale para o roteiro que escreveu para o filme Salomé, que marcaria o seu retorno à glória. Glória que nunca deixou de viver, só que trancafiada em sua mansão a sós com seu mordomo faz-tudo Max, que lhe sustentava a egolatria ao escrever-lhe cartas e mais cartas como fossem de fãs apaixonados, eternamente apaixonados por ela, que se encontrava em permanente idílio.

Nos arredores daqule mesmo boulevard, em que o sol se põe, um mito aparentemente inabalável é vulnerabilizado, trazido ao patamar da humanidade e perde o encanto, a ponto de parecere desumano. Esse trabalho hercúleo foi executado com maestria por Billy Wilder — diretor de obra vasta e plena, que circulou por vários gêneros e estilos de filme e encontrou em Sunset Boulevard uma obra-prima. O que ele desmitifica? O Olimpo do cinema mundial: Hollywood.

"Como esse jovem ousa morder a mão que o alimenta?". É assim que teria reagido Louis B. Mayer, homem-forte da MGM, ao assistir a Crepúsculo dos Deuses. Wilder — que já não era tão jovem assim —, de fato, ousou no filme. Apostou alto e ganhou mais do que um Oscar de melhor roteiro: o melhor filme já feito sobre os amargos bastidores de Hollywood, onde ou se dá muito bem, ou se dá muito mal — sem meio-termo. É o caso de Gillis, cujos roteiros foram aproveitados apenas num par de filmes de segunda linha. Essa falta de sucesso de Gillis era familiar a Wilder, no início de sua carreira de roteirista. Talvez por ter vivido isso, ele seja capaz de tantas alfinetadas ora cômicas, ora de humor negro, ora apenas ácidas e sempre pertinentes.

O filme tem excelente direção de arte, premiada com o Oscar. A fotografia, em P&B, é construída principalmente em torno do escuro, mesmo na ensolarada Los Angeles. Wilder, com a fundamental colaboração do cinematografista John F. Seitz — com quem trabalhou em Pacto de Sangue (Double Indemnity, 1944) —, conseguiu incutir no filme a estética do filmes noir em seu patamar mais notável, embora Crepúsculo não seja exatamente um film noir.

Para os cinéfilos, um detalhe interessante: esse foi o último filme produzido por um grande estúdio de Hollywood a ser realizado com negativos de emulsão de nitrato, o que criava tons de cinza próximos aos da era muda, de cinema antigo. Naquela época, já se utilizava acetato nas películas. Logicamente, no entanto, essa escolha foi deliberada pela direção artística — e muito acertada, por sinal, até por entrar em consonância com a superexpressiva expansividade dos gestos da estrela do cinema mudo.

Crepúsculo dos Deuses trata dos bastidores do cinema, sobre jovens aspirando a ascender, sobre veteranos relutando a decadência. Um retrato da crueza desse ambiente que muitas vezes parece inacessível. Apesar de tudo, é uma película para os amantes do cinema. Um filme coeso, bem produzido, bem filmado, com conteúdo, com a fulgurante atuação de Gloria Swanson e um final antológico, em que Glória, Norma e Salomé, três mulheres em um só corpo, desce autistamente triunfante as escadas de seu palácio. Memorável.

"300" por Bernardo Cortizo de Aguiar

http://www.youtube.com/watch?v=wDiUG52ZyHQ


Um relato da batalha das Termópilas, ou um relato de um relato? Neste filme de 2007, dirigido por Zack Snyder, vemos uma interessante construção narrativa: baseado numa graphic novel de mesmo nome (escrita e desenhada por Frank Miller, que também fez Sin City) onde o autor admite não ter muito compromisso com uma visão realisticamente histórica, a estória dos 300 espartanos contra o exército persa de Xerxes (Rodrigo Santoro) ganha ares ainda maiores de mito quando percebemos estar sendo contada por Dilios (David Wenham), único sobrevivente dos 300 guerreiros de elite do rei Leônidas (Gerard Butler).

A já famosa história de Leônidas e seus 300 começa quando mensageiros persas, enviados por Xerxes, exigem de Esparta um presente de terra e água como mostra de subserviência ao império Persa. Frutos daquela que deve ser a mais belicosa das sociedades já existentes, e ensinados a nunca se renderem e nunca fugirem, os espartanos respondem à sua maneira, matando os mensageiros. Leônidas, tendo escutado notícias das movimentações do enorme exército persa, decide pela guerra, mas como dita a lei espartana (e nem mesmo um rei pode ir de encontro à lei), ele deve consultar os éforos antes de ter permissão para mandar suas tropas para a guerra. Velhos e decadentes, os éforos são facilmente subornados pelo corrupto Theron, influente político da cidade-estado, juntamente com os persas.

Proibido pelos éforos de juntar seus exércitos em defesa de sua amada cidade, e motivado por Gorgos (Lena Headey), ele decide então “sair para caminhar”, com 300 de seus melhores guerreiros como guarda pessoal. O resto do filme se alterna entre as batalhas do rei e seus 300 e as batalhas políticas de Gorgos, tentando convencer o resto de Esparta a ir ao auxílio de seu rei.

Filmado em cromakey, com fundos inseridos posteriormente, o próprio tratamento visual dado ressalta o filtro fantasioso dado pelo filme: as cores fortes, numa escala construída em torno do bronze dos escudos e dos espartanos, que vão à guerra portando apenas suas espadas, lanças e escudos, dão o tom heróico do filme. Sendo um relato de um homem da época (Dilios), a realidade é exagerada e fantasiada: o exército persa aparece encarregando monstros disformes, bestas exóticas e armas cruéis que, se não possuem nenhum tipo de verdade histórica, elevam Leônidas e seus 300 a um status quase mitológico.

Os atores convencem em seus papéis: desde Butler, como o rei que ama sua cidade-estado mais do que tudo, até Santoro, como o mimado e afetado Xerxes. Os 300, embora na sua maioria não nomeados, passam bem a idéia de soldados loucos por batalhas, para quem a maior glória é morrer lutando. Stelios (Michael Fassbender), embora num papel diminuído em relação à Graphic Novel, ainda rouba a cena com a famosa réplica de “melhor, lutaremos à sombra”, quando ameaçados pelos persas de serem alvos de tantas flechas que o próprio Sol seria bloqueado por elas.

Embora historicamente não tão acurado, a representação do espírito espartano é ótima: treinados desde cedo para serem guerreiros, eram ensinados a atacar os adversários por todos os meios. As respostas sarcásticas e o deboche espartano faziam parte de uma estratégia que visava desestabilizar moralmente o inimigo.

A trilha sonora, com músicas fortes e percussão bastante marcada, auxilia na construção da atmosfera militar/heróica. Os efeitos especiais são bem utilizados e as coreografias de lutas, soberbas. O que talvez estrague um pouco o filme é a ideologia que passa: estado bélico é a última salvação do ocidente (enquanto representante da razão e da democracia) contra as forças do Oriente Médio. Não sei vocês, mas pra mim basta desse conflito fajuto de EUA contra Iraque. Mas, como disse Slavoj Žižek, talvez esse entendimento seja falho e, na verdade, o filme seja a história de um pequeno e pobre país (Grécia) sendo invadido pela superpotência da época (Pérsia), de modo que o jeito como são representados os dois países não seja muito diferente do modo como qualquer país pequeno vê as tropas invasoras.

"O estranho caso de um amor platônico correspondido" por Helena Alencar







Na Hong-Kong de 1962, em meio à crise econômica, dois jovens casais alugam quartos vizinhos em uma mesma casa. Uma semelhança em suas vidas conjugais chama a atenção do cavalheiro de um dos pares para a dama do outro: seus cônjugues viajavam com freqüência, argumentando razões profissionais. A Sra. Chan (Maggie Cheung) e o Sr. Chow Mo-wan (Tony Leung) são apresentados pela solidão e se mantém unidos na infidelidade dos seus consortes. Vivem, assim, uma delicada história de um amor sugerido, tão correspondido quanto platônico, tão encenado quanto real.


Platônico porque não se crêem merecedores de tal história de amor, um com o outro. “Não seremos iguais a ele”, diz a Sra. Chan. O Sr. Chow mantém um distanciamento respeitoso para com ela. Em meio a uma sociedade ainda moralista, muda-se de apartamento ao menor sinal de comentários sobre seu universo pessoal. O amor deles torna-se, então, um segredo guardado a sete chaves, ou no tronco de uma árvore como sugere uma antiga lenda chinesa. Não sabem, eles mesmos, da profundidade de um sentimento tão calado, e surgido em um momento de tamanha adversidade. Estão unidos por sugestões de presença e necessidade um do outro. Mesmo a traição é mera sugestão da similaridade entre as bolsas da Sra. Chan e da esposa do Sr. Chow, ou das gravatas do Sr. Chow e do marido da Sra. Chan – uma analogia ao procedimento do chefe infiel da esposa traída, o qual ela ajudava, comprando presentes iguais para a esposa e a amante. Descobrem-se na vida um do outro de modo trágico, mas encaram com decência e controle. Após certo tempo, é sua própria tendência a infidelidade, fruto de um amor inesperado entre os dois, que os incomoda ainda mais que a infidelidade alheia.


Contudo, o processo de aceitação da traição dos seus companheiros não se dá facilmente. Como teria sido iniciado esse relacionamento extraconjugal? Teatralizam o primeiro encontro, ensaiam falas, prevêem reações, encenam a própria discussão que se daria ao retorno dos amantes. A Sra. Chan chora em uma dessas tentativas de compreensão. “É só um ensaio”, repete Chow. Mas não é. É a própria sublimação de um sentimento, misto de fracasso, ódio, rancor e mágoa inerente aos amores traídos. Se não falam diretamente no assunto, torna-se a própria atuação um diálogo difícil, um lampejo de extrapolação no meio de uma imensidão escura de dores contidas.


Todo um enredo universal, transbordante de sentimentos profundos, paixões sinceras, amores reservados no cenário particular do oriente – prova de que cinema é muito menos uma questão de nacionalidade, e muito mais de subjetividade e sensibilidade. Elementos do Ocidente dialogam com o ambiente oriental do filme: boleros (haveria melhor estilo musical para o lamento suave que perpassa a película?), estampas e tecidos coloridos do pós-guerra em vestidos de modelo oriental estilizado, cabelos na moda da época, cigarros, gravatas estreitas, sapatos de salto fino. Kar-wai narra em meio à atmosfera de uma cidade que poderia ser em qualquer parte do mundo uma história de amor silencioso que poderia ter acontecido a qualquer um. A imprevisibilidade dos rumos dessa história parece ser o fator que substancia a crença em sua possível veracidade. Impossível não sentir a imensa ternura que transborda da obra.

"O déspota é esclarecido?" por Luís Fernando Moura


http://www.youtube.com/watch?v=_DlYCvxvPZY


Inland Empire, aponta a projeção em 16:9 do cinema. A imagem é de um toca-discos, num close invasivo de onde saem sons para compor a cinematografia. Ali está o aparelho analógico, de um ar retrô controvertido pela técnica que David Lynch usou para construir o filme. Não chamem de película o que vocês não conhecem. O autor inaugura a tecnologia de gravação digital em sua obra. Quando menos se espera, é a dimensão tosca dos pixels de sua câmera semi-profissional que possibilita a imersão onírica no fantástico mundo criado pelo diretor em seu longa mais experimental. Enfim, sós, Lynch e o sonho. Talvez por isso, o nome pouco criativo no português brasileiro, Império dos Sonhos, de onde parte a premissa entregue ao espectador para facilitar sua jornada, e talvez empobrecê-la. Aqui, o que vale é a experiência das sensações.






Laura Dern está impecável na interpretação de uma personagem tipicamente lynchiana: não há histórico que se conheça com consistência ou traço de realismo em sua condução psicológica. O que se vê a todo tempo é o uso alegórico dos personagens em função de um universo sensorial que passeia pelo surrealismo, mas tende até ao abstracionismo. O abuso dos homens é para criar figuras fantásticas que permeiam seu clássico imaginário de horror, suspense, dramalhão e humor negro, produzindo figuras extrema e paradoxalmente irônicas. Como não há adequação a beabás matemáticos que tornem personagens ou situações minimamente previsíveis, aqueles se tornam superfícies aparentemente rasas, mas que se complexificam em dimensões nada poligonais: o ambiente tridimensional é obtuso e obscuro, e qualquer passo se desenrola ao longo de um horizonte inalcançável de possibilidades. Ainda que iniciados no filme a partir de referências narrativas razoavelmente plausíveis, os personagens desandam da factualidade confortável para que se faça possível um percurso estético capaz de extrapolar as noções convencionais de narrativa, para ir além. Neste trajeto, Dern é o centro de toda a multissignificação dos seres e, da sobriedade, forja a loucura, a desordem, a perdição, a entrega, o drama rasgado. Não à toa, a atriz co-produziu Inland Empire. A obra mostra ser, no fim das contas, uma espécie de projeto pessoal também seu. As atuações de Justin Theroux, William H. Macy, Jeremy Irons, Naomi Watts, Laura Elena Harring, ademais, são sinal cabal de que o projeto surge como o trunfo marginal de amigos que dão um pulo fora do mainstream em busca de algo maior que si mesmos. O cinema de Lynch não se mede pelos seus personagens.






Inland Empire termina, logo, sendo um filme extremamente autoral, provavelmente um dos mais honestos da carreira do diretor. O que se vê é a retomada de elementos presentes em curtas-metragens da década de 1960, que iniciavam a carreira do até então artista plástico. A morbidez dos quadros orgânicos de Lynch, quando o artista misturava tinta e restos mortais de ratos e insetos, extrapolados pela imersão no que chamava quadro em movimento, a partir de Six Figures Getting Sick Six Times, parece ter sido reavida em seqüências que vão além do absurdo e confundem o espectador a todo o tempo, e sempre ironicamente. A construção formal da narrativa iniciada em Eraserhead, ainda que num exemplo não convencional do que se conhece por uma “lógica do enredo”, levada a um dos seus exemplos mais extremos em A História Real e a uma das suas subversões mais radicais em Estrada Perdida, parece ter sido deixada de lado quase que absolutamente. Se a protagonista Nikki é apresentada ao espectador sob uma aura factível, o universo que a permeia é fecundo de mistério e dá à luz rapidamente para que se lance a escuridão. A partir daí, um misto de noir e de videoarte dá margem à já comum estereotipação tosca dos estilos, a que Lynch recorre várias vezes, e a um hibridismo incômodo. Do espaço estranho, obscuro, o imperador por trás das câmeras estrutura telenovelas, cenas de suspense, de drama, de horror. Faz emergir um videoclipe entre prostitutas aparentemente californianas numa Polônia que parece mais um não-lugar. “Do the locomotion with me”, ri Lynch do espectador, e o ama um pouco também.






Se a cinematografia dilui as rédeas de um roteiro enxuto (ou de qualquer roteiro; Inland Empire foi escrito nas noites anteriores aos dias de filmagem), o cinema está cada vez mais presente no enredo. Seguindo a temática desenvolvida em Cidade dos Sonhos, Lynch se entrega a uma obsessão pelo sonho de Hollywood e mergulha em sua desintegração a partir da tragédia. A Hollywood-desejo tranfigura-se num vilão sobrehumano que constrói universos em 7 dias ou em qualquer tempo para absorver as criaturas. A metaforização de tudo talvez não tenha, como foco, o engajamento político de um diretor marginalizado pela indústria americana. Talvez, assim, Inland Empire fosse até lugar-comum. Mas, para além de Cidade dos Sonhos, a obra se aproveita do espaço geográfico e temporal de uma Califórnia do novo século para aprisionar a personagem num universo sensorial que se aproveita do sonho – e do pesadelo – como principal alegoria da sensação.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

“Ria... e o mundo rirá com você. Chore... e chorará sozinho.” por Roberta Dornelas


Não são muitos os filmes asiáticos que conseguem chamar a atenção do público ocidental. O máximo a que chegam, geralmente, é a despertar o interesse de produtores hollywoodianos, que irão então fazer uma refilmagem da obra; e essa, sim, será um estouro nas bilheterias. Talvez seja o caso de Oldboy, do diretor coreano Park Chan-wook. Apesar de ganhador do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes, não se pode chamar o filme de um grande sucesso dos cinemas - o que, em minha opinião, é uma grande injustiça.

Oh Dae-su (Choi Min-sik) é um quarentão, casado e com uma filha de três anos. O filme começa após uma noite de bebedeira do sujeito, que acaba detido pela polícia e, depois de resolver tudo, sai da delegacia com seu amigo No Joo-Hwan (Dae-han Ji). Porém, enquanto este faz um telefonema, Dae-su desaparece sem deixar pistas. Por quinze anos. O homem é levado para o que parece um quarto de hotel, tendo como companhia apenas uma televisão. A comida lhe é passada por um pequeno buraco na porta. Para que troquem suas roupas e cortem seus cabelos, um gás é liberado e Dae-se é posto para dormir. São quinze anos sem nenhum contato humano e sem saber quando será liberado ou o motivo de seu aprisionamento. Certo dia, de repente, acorda fora do quarto. Recebe roupas, dinheiro, um telefone e um desafio: descobrir quem o prendeu e o porquê. Daí pra frente, o filme é angustiante. Estamos como Oh Dae-su, sem saber o motivo do que aconteceu, sem ter pistas, sem nada. É junto com ele que vamos descobrindo e juntando as peças para entender tudo e ficamos torcendo para que seja desvendado o mais rápido possível todo aquele mistério que tortura tanto a ele quanto a nós – esse seria o primeiro ponto de destaque no trabalho de Park Chan-wook, que soube liberar aos poucos as informações, de forma a não cansar e manter o espectador atento a tudo.

Há quem diga que o filme é muito violento. Mas se pode chamar de muito violento um filme onde nada é explícito? Tudo é sugerido, mas nada é mostrado. Por exemplo, na cena onde o protagonista tortura um dos envolvidos em sua prisão arrancando os dentes do homem com um martelo. Vemos apenas o início do processo e depois a conseqüência – os dentes já arrancados. Ou ainda quando Oh Dae-su corta a própria língua. Só podemos ver a mão dele fechando a tesoura enquanto grita de dor. Então, sim, há muita violência. Mas eu não o consideraria um filme extremamente violento. É apenas, como já falei antes, angustiante.

As cenas de luta são um ponto de destaque, uma delas em especial: aquela onde Dae-su vence cerca de vinte capangas num plano-sequência lateral. Parece cena de algum jogo de vídeo-game. Nenhuma luta é teatral ou com belas coreografias como as que vemos em outros filmes asiáticos – como O Clã das Adagas Voadoras – ou até em filmes americanos como Matrix. É tudo cru. Quando as pessoas apanham, não voam ou saem de cena para dar lugar a outros lutadores; elas ficam lá no chão se contorcendo de dor e atrapalhando o cenário da briga mesmo. Pode parecer meio cruel, mas, para mim, isso deu até um toque cômico à cena. E o melhor é ver a cara de vitória de Oh Dae-su no final de tudo.

Outro ponto interessante é a inexistência de mocinhos e bandidos. Apesar de torcermos para que a vida de Oh Dae-su se ajeite, não podemos considerá-lo realmente um herói. Ali, estão todos dispostos a matar e a morrer por seus objetivos. O protagonista acaba descobrindo que o motivo de sua prisão foi ter espalhado, quando ainda estava na escola, que certa moça estava grávida do irmão dela. Isso a teria levado ao suicídio. O irmão dela, ___, resolve, então, vingar-se de Oh Dae-su e o prende. Ou seja, Dae-su está se vingando porque ___ resolveu se vingar pela morte da irmã. Todos têm objetivos parecidos e querem matar aquele que arruinou sua vida. Não há julgamento de valores ou distinção de certo e errado em Oldboy. Park Chan-wook simplesmente nos mostra os fatos e cabe a nós julgá-los. Podemos tanto achar que Dae-su está certo quanto que __ é quem tem razão.

Além da direção brilhante, não imagino como seria o filme sem Choi Min-sik. O ator, que treinou por seis semanas e perdeu doze quilos para interpretar o Dae-su, encarnou perfeitamente o papel de inocente e assassino, vítima e psicopata ao mesmo tempo. Ainda teve que lutar e comer um polvo vivo. E realizou todas as cenas, sem nenhum dublê.

Oldboy foi baseado em um mangá japonês de 1997 e é o segundo filme da chamada “trilogia da vingança” de Park Chan-wook. Foi precedido por Mr. Vingança (2002) e seguido por Lady Vingança (2005). É um filme para todos os gostos. Não é ultraviolento, mas também não é leve. Não é um filme vazio, mas não é só para intelectuais. É apenas uma prova de que devemos dar mais atenção ao cinema asiático e não ficar esperando um remake hollywoodiano - que duvido que tenha a emoção e a peculiaridade do original.

"“O Criado”: o conflito entre as ‘paredes brancas com toques azuis’ e o ‘fúcsia e vermelho mandarim’" por Diogo Fonseca


Digamos que cada relação de poder – e qualquer uma contêm poder – tem três fases. Primeiro, a harmonia: a idéia de que os elementos, como estão organizados, se completam. Segundo, a tensão: qualquer hierarquia é um tipo de dominação insustentável. E, enfim, duas conseqüências possíveis: ou se abafa, por meio da força, a insatisfação dos subordinados; ou se perece e o oprimido toma o lugar o derrotado.



“O Criado” (The Servant, 1963), de Joseph Losey, retrata essas fases perfeitamente. E não só uma, mas duas vezes e com finais diferentes. O forte tensionamento da relação entre o aristocrático Tony (James Fox) e o criado aparentemente perfeito Barrett (Dirk Borgade) é um tipo de representação da fria Inglaterra da época que, por não ter passado por uma revolução burguesa violenta, ainda carregava o peso do conflito. De um lado a “imutável” e sólida classe alta, com seu bom gosto e ar superior, do outro, as classes subalternas, os serventes explorados com sua vulgaridade e vontade de ascensão social a qualquer custo.



Esse clima de tensão social da Inglaterra é o clima de tensão do filme. Ainda que ficcional, a obra surpreende por descrever um processo histórico sem parecer entediante ou factual: mantém sua qualidade tanto no roteiro como na direção. E chega a ser engraçado como uma citação pensamento do Marx histórico se encaixa delicadamente na narrativa, dizendo:

“Hegel observa (...) que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.”

Barrett, primeiramente, se usa da confiança de Tony para manipulá-lo e dominá-lo. Quando é descoberto, acontece a ‘tragédia’: ele é demitido e Tony, sem encontrar um substituto, mergulha num tipo de decadência e melancolia.



Eles se encontram novamente, e Barrett suplica a Tony que o contate novamente. A comodidade e o conforto falam pelo aristocrata quando ele aceita o pedido crendo no arrependimento do criado. E história se repete: Barrett não agüenta ser totalmente explorado e entra em conflito com o patrão. Só que dessa vez ele “ganha” o embate, subordinando Tony. E assim vemos o retrato magistral de Losey sobre a essa “tomada do poder” por Barrett, que inverte os papéis ao invés de transgredi-los. A casa de Tony (e poderia ser a sociedade inglesa) é tomada por uma decadência material e, principalmente, de valores. A vulgaridade do criado, que é mostrada desde o começo do filme na sugestão de Barrett de cores fortes para as paredes da residência (‘fúcsia e vermelho mandarim’), se torna o tom do local, em detrimento do ‘bom gosto’ elitista de Tony. As festas orgiáticas mostram que a história se dá agora como ‘farsa’: não há mudança de fato na relação, apenas uma alternância dos poderes e uma decadência dos valores.



Em meio às delicadíssimas tomadas de Losey, em que a câmera vai para frente, anda para trás, pára e, só quando se acomoda, a cena se inicia, temos uma obra-prima. Cinema britânico da mais alta profundidade e fidedignidade feito por um diretor – e, se não tivesse lido essa informação, não acreditaria, pois Losey transparece ser um típico englishman – americano. “O Criado”, por fim, se oferece como representação do processo histórico sem ser chato ou simplista. E nem por um segundo poderia deixar de ser belo esteticamente e interessantíssimo como ficção, por mais pretensioso que fosse.

"No terreno dos desejos humanos" por José Bruno Marinho

http://www.youtube.com/watch?v=BY6M-Datddg

Da safra recente do cinema argentino, Lucrecia Martel aparenta ser, de fato, a mais autoral e a mais criativa dos cineastas. Dotada de uma sutileza singular, a diretora – que estreou nas telas em 2001 com o aclamado O Pântano (La Ciénaga) – não hesita nem se intimida em tratar de assuntos delicados, como religião, sexualidade e dissolução familiar. Além disso, outro aspecto que se faz presente no foco de preocupações da diretora argentina é a desnecessidade da separação moral entre o bem e o mal. Trabalhando com temas íntimos e particulares, Martel propõe-se a descortinar a absoluta inutilidade de tal dicotomia. E de outras dualidades também. Em seu último filme, A Menina Santa (La Niña Santa, 2004), ela nos apresenta uma trama onde desejos e repressão, bem e mal, sexualidade e religiosidade se confundem devido as suas linhas tênues e frágeis.


O filme, que participou do Festival de Cannes em 2004 e foi premiado na Mostra Internacional de São Paulo, traz a história de duas adolescentes – Amália (Maria Alche) e Josefina (Julieta Zylberberg) – que freqüentam um grupo de estudos católicos em que se discutem temas como vocação, sinais divinos e repressão às tentações. Porém, a garota do título é, na verdade, Amália, que mora no hotel em que sua mãe divorciada (interpretada por Mercedes Morán) é gerente. Como efeito da forte educação religiosa que lhe foi imposta, Amália tem como rotina decorar preces e esperar pelo momento em que receberá de Deus a sua missão. Certo dia, a garota é levemente molestada pelo discreto Dr. Jano (Carlos Belloso), um dos médicos presentes no hotel em que mora devido à realização de um congresso de medicina. Amália encara o ocorrido como sendo um sinal divino sobre a sua missão cristã no plano terrestre e obstina-se, então, a salvar o médico dos seus desejos escusos que lhe convidam ao pecado.


Inicia-se, então, um sufocante jogo psicológico: Amália entende o gesto do desconhecido como um pedido de ajuda e começa a persegui-lo, a fim de salvar a sua alma enquanto o Dr. Jano corrói-se de culpa e evita, sempre que possível, a presença da adolescente. Paralelamente, Helena – a mãe de Amália – começa a se sentir atraída, sem saber, pelo rapaz que assediou a sua filha. Lucrecia Martel constrói, dessa forma, uma situação explosiva que caminha naturalmente ao encontro de um desfecho tenso. No entanto, o final do filme pode chegar a irritar os espectadores mais ansiosos, uma vez que não contempla uma solução para o caso. Irritação esta totalmente incompreensível, afinal não é apenas no fim, mas em todo o filme, que Martel mais sugere do que mostra, mais privilegia a riqueza das sutilezas do que a crueza das explicitudes. Entre o mostrar e o esconder, a diretora convida quem lhe assiste a mergulhar no nublado espaço das entrelinhas, onde o não-dito tem mais a expressar do que aquilo que é óbvio e explícito.


Os personagens das histórias de Martel habitam o terreno das ambigüidades e são, portanto, difíceis de se decifrar. Embora queira salvar o médico que a molestou, Amália sente um desejo secreto e reprimido por ele. Outro exemplo: sua melhor amiga, Josefina, nega-se a perder a virgindade antes do casamento, o que não lhe impede, porém, de permitir-se à penetração anal quando na companhia do seu próprio primo. Percebe-se, então, que a diretora não alimenta falsos moralismos: todos, em sua história, têm a sexualidade e a libido como companheiras, ainda que, em alguns casos, tal sexualidade seja visivelmente inocente e ingênua, o que denuncia a repressão social e religiosa que busca privar o homem de um desejo naturalmente humano.


Ao enquadrar em sua câmera personagens que vivem o dilema entre a satisfação dos desejos e a adequação destes às convenções sociais que tentam distinguir o certo do errado e o bem do mal, a diretora argentina vai de encontro a qualquer solução única ou moralista. Martel não apenas critica toda essa repressão – ao mostrar, em muitas das cenas, uma onipresente faxineira do hotel que literalmente esteriliza e detetiza todos os cômodos e metaforicamente limpa aquele ambiente de desejos e tentações desenfreadas –, como também rejeita essas dicotomias que não se sustentam na realidade. Para afastar da tela a idéia de tais cisões, a cineasta optou, por exemplo, por uma fotografia sem efeitos de claro/escuro, a fim de não dividir a face dos personagens em luz e sombra, evitando, com isso, a assimilação e a perpetuação de clichês como “duas caras” ou “lado obscuro” das pessoas.


Co-produzido por Pedro Almodóvar, A Menina Santa serve, ainda, como um instrumento de comparação entre as obras, tão contidas, de Lucrecia Martel – que tem sido considerada pelos críticos espanhóis como “o Almodóvar de saias” – e os filmes do diretor espanhol, notavelmente exacerbados. Na verdade, o cinema de ambos se assemelha à medida que ganham a cumplicidade dos espectadores, os quais, influenciados pelos filmes daqueles, se permitem a uma mudança no seu próprio ponto de vista moral. Mas a cineasta argentina vai além: através de alegorias e metáforas e permitindo-se fazer um cinema íntimo, que foge dos padrões de mercado e valoriza as liberdades narrativas, ela inquieta o público, seja por focar o cotidiano de forma tão asséptica e atemporal seja por permitir a quem lhe assiste acentuada liberdade de pensamento diante de tantas sugestões que brotam das cenas. Tanto que, ao se referir aos filmes de Martel, é extremamente comum que nossa memória chegue a se confundir entre o que os nossos olhos viram e o que a nossa mente imaginou – ambos têm a mesma intensidade no cinema da diretora argentina.

"As escolhas de Sofia" por André Antônio


http://www.youtube.com/watch?v=1WjsqVwWyrI


O crítico pernambucano de cinema Kleber Mendonça Filho, em seu texto sobre o filme “Maria Antonieta” (“Marie Antoinette”, 2006), fala sobre as vaias que o terceiro longa de Sofia Coppola levou quando veio a público pela primeira vez no Festival de Cannes e diz que é quase impossível achar uma critica sobre o filme que não mencione esse fato. Este texto não é exceção. A menção aqui, contudo, é para lançar as hipóteses de que nem mesmo o público de um dos mais prestigiados festivais de cinema no mundo está preparado para certas surpresas e de que a crítica cinematográfica atual é mais “influenciável” do que imagina.

Com relação à crítica, cito dois jornalistas aqui de Pernambuco cujas opiniões são consideradas relevantes quando o assunto é cinema. O primeiro é o próprio Kleber. Ele fez dois textos sobre o filme: um, logo após tê-lo assistido presencialmente em Cannes, abominando-o[1]; outro, passado o “calor” do festival, como ele mesmo admite, mais ameno, admitindo as qualidades técnicas do filme, dizendo que ele de fato falava de algumas coisas importantes, mas que tinha “um sabor específico: veja se é o seu”[2]. O segundo jornalista é Rodrigo Carrero, cujo sucesso de seu site de críticas pode ser constatado pelos comentários entusiastas em seu blog. Carrero analisa a estética do filme, quase o elogiando, para no final, vir com o seguinte: “Em meio a tantos acertos narrativos e à beleza visual evidente, o que realmente sobressai é a narrativa ausente, distante, quase onírica, de um filme entorpecido de ópio. Sim, é a obra de um autor, mas que autor chato, hein?”[3]. Ele não diz, no texto, o porquê de tal chatura.

O que houve foi que tanto o público quanto a crítica acharam o filme superficial (Carrero o chama de “vazio como um balão de gás”). Sofia Coppola já estava se consolidando no início dos degraus que levam a ser uma “cineasta importante”. Seu primeiro filme, “As virgens suicidas” (“The virgin suicides”, 1999), era uma adaptação literária bem-sucedida sobre o tédio adolescente. O seguinte, “Encontros e desencontros” (“Lost in translation”, 2003), um estudo sobre o casamento e o amor na contemporaneidade. E de repente o que ela escolhe para exibir em seguida? Kirsten Dunst interpretando uma rainha francesa num filme pouco fiel à História contada pelos livros.

No filme, Sofia não mostra nem por um segundo os meandros que a Revolução Francesa estava tomando nem os pobres passando fome em Paris. Pelo contrário: vemos apenas uma jovem rica gastando rios de dinheiro em roupas e outros objetos de futilidade; indo a bailes; fazendo festas dispendiosas em Versalhes; traindo o marido; tudo isso embalado por músicas de rock dos anos 80 e atuais. Assim, quase automaticamente, saem da boca daquelas cultas pessoas que o filme era uma ode ao consumo e à futilidade; com ele não se aprendia história e ainda se batia palmas para o capitalismo (como elas bem o fazem sem se dar conta, mas isso é outra história).

Mais ou menos a partir do segundo terço de “Maria Antonieta”, de fato o que vemos é o que foi descrito no parágrafo anterior. Mas os que se precipitaram a uivar diante da enorme tela em Cannes estavam cegos ou distraídos demais para ver a primeira parte do filme. Em essência, ela mostra o peso da cotidianidade mecânica e castradora de Versalhes. Vê-se repetidas vezes a rotina da Antonieta recém-chegada ao palácio. Cerimônia da vestimenta ao acordar à Refeição com o marido à Igreja à Fofoca com algumas damas da corte. Essas coisas são vistas cansativamente quase que dos mesmos ângulos e com a mesma música (Vivaldi, um raro “clássico” na trilha sonora). Cerimônia da vestimenta ao acordar à Refeição com o marido à Igreja à Fofoca com algumas damas da corte. Cerimônia da vestimenta ao acordar à Refeição com o marido à Igreja à Fofoca com algumas damas da corte.

Mas a jovem Antonieta não se dá bem nesse mundo. Ela até que tenta, mas além de achar todas as suas responsabilidades e tarefas muito tediosas, nem um herdeiro – o que mais se espera dela – consegue dar à França. É aí que ela se “rebela”. Dá as costas ao protocolo de Versalhes em busca de outra coisa. Mas o que seria essa outra coisa? Gosto de chamá-la “liberdade”. A crítica do New York Times – a única lida por mim que parece ter tratado o filme de maneira profissional e com qualidade – chamou de “prazer”[4]. Acho igualmente válido. Talvez a crítica pernambucana tenha intuído isso, mas, a seus olhos, a busca por prazer é algo superficial, vazio e fútil. Ela sem dúvida não conhece um sujeito chamado Freud e um pensamento intitulado Pós-estruturalismo. Ambos provaram – isso já é ponto pacífico – o quão importante tal tema é.

Essa dicotomia “castração/prazer” pode ser considerada a maior preocupação da obra de Sofia. “As virgens suicidas” – também com Kirsten Dunst – é sobre algumas garotas sonhadoras que de repente se dão conta que cresceram e que o mundo exige delas algo totalmente diferente do que imaginavam. “Encontros e desencontros” é sobre uma jovem cujo casamento já está começando a esfriar no meio das convenções e que (re)descobre o amor ao conhecer um ator brincalhão com que vai beber e cantar karaokê nas noites de Tókio. “Maria Antonieta” não é um filme “histórico” porque Sofia Coppola o utiliza como mote para dar continuidade ao debruçamento dobre essa temática e não para substituir grossos manuais de bibliotecas. A coerência temática de sua obra faz dela uma expoente do que a crítica chama “cinema autoral”.

A busca por liberdade/prazer de Antonieta segue mais ou menos essa ordem: 1) imersão no consumo de “produtos de estética” (roupas, sapatos, perucas suntuosas, jóias); 2) festas dispendiosas (com desperdício imenso de comida, muito champanhe, jogos de mesa e gargalhadas); 3) isolamento numa mansão particular perto de Versalhes, onde ela espera se livrar dos “artifícios da civilização” – isso é ela lendo Rousseau – num contato maior com a natureza e 4) encontro de um amor verdadeiro, em oposição à frieza de seu marido contentado com um cotidiano regrado e sufocante.

Essa busca não é mostrada por Sofia Coppola como algo fútil, embora muita gente tenha visto dessa maneira. Antonieta busca alegria e felicidade nas atividades citadas, mas “Maria Antonieta” é um filme triste. Há um choro baixinho, latente, deprimido demais para vir à tona enquanto a liberdade é procurada. Essa é uma das funções da seleção depressiva “anos 80” nas cenas. Uma fotografia gélida e azul embala sua festa de aniversário (quando vê bêbada, com alguns amigos, o alvorecer no jardim de Versalhes e ao fundo toca “Ceremony”, de New Order: “This is why events unnerve me/ They find it all a diferent story...”) e sua volta do baile, onde se apaixonou por um soldado (ouve-se “Folls rush in”, da “new wave” Bow Wow Wow: “Fools rush in/ Where wise men never go/ But wise men never fall in love/ So how are they to know?”). Tudo tem a evanescência nostalgica de um eco: e nostalgias são sentidas quando a felicidade é passado. A liberdade de Antonieta, assim, já tem o estigma da decadência mesmo mal tendo começado.

Neste ponto, é importante se falar do terceiro terço do filme. Aqui Antonieta percebe que os meios pelos quais ela tentou ser livre fracassaram. Isso me lembra uma frase de Terry Eagleton sobre o pensamento contemporâneo: “todas essas coisas prometiam uma felicidade geral mais ampla. O único problema era que, na verdade, ela nunca chegou”[5].A crise que desembocará na Revolução Francesa não a deixa mais dar festas ou comprar roupas. Ela tem que ajudar o marido nessa crise e por isso deixa seu paraíso rousseauano e volta a Versalhes. Seu amante tem que ir à guerra (ajudar os americanos na Independência). A terceira parte do filme é a mais triste (ganha para o início quando a inocente princesa é arrancada de seu mundo em Viena e enviada à França onde terá novas responsabilidades - uma metáfora para a passagem da juventude para a vida adulta). A música clássica volta – dessa vez é uma ópera mais que melancólica.

Maria Antonieta não percebeu que os meios pelos quais ela tentou ser livre eram sustentados por aquilo que exatamente a mantinha presa: Versalhes. O dinheiro para as roupas, as festas, a mansão isolada e os lençóis limpos que embalavam seu adultério vinha de Versalhes. Nesse sentido, quanto mais ela queria se afastar do palácio, mais dele ela ficava presa. Não há aí um eco de “já ouvi essa história antes”? Se há, descobri – e isso parece bem plausível para mim – o porquê de “Maria Antonieta” ser como é. Isto é, o porquê de Sofia Coppola ter escolhido músicas contemporâneas, Kirsten Dunst, e não mostrar os meandros da Revolução.

A trilha sonora e Dunst (um rosto jovem norte americano) dão um tom de “atualidade” ao filme. A impressão que se tem é que o que está acontecendo com a Maria Antonieta da tela poderia estar se passando com qualquer jovem dos tempos atuais. A escolha pela atmosfera oitentista é bem significativa, porque Sofia Coppola tinha mais ou menos a idade de sua protagonista nessa década. Mas escolher um enredo ambientado no século XVIII – e especificamente a história dessa rainha mal vista nas salas de aula – trás mais vantagens do que se imagina. A dicotomia cotidiano regrado/liberdade é, nele, mais que aparente. E há Versalhes: o sistema que aprisiona e castra, mas ao mesmo tempo oferece possibilidades de prazer – mas possibilidades passageiras. Aqui sugiro uma metáfora: Versalhes é o Capitalismo.

Há de fato mais semelhanças entre os dois do que se pode imaginar: ambos são sistemas que governam. São geridos a custa da fome e exclusão de milhões. Precisam o tempo todo manter o controle – mesmo que para isso precise oferecer coisas que aparentemente são contrárias a sua natureza: certa liberdade, prazer frugal.

“Maria Antonieta” não é um filme “histórico” em parte pelo motivo que mencionei antes. E em parte porque não seria interessante mostrar de perto a Revolução Francesa: os desdobramentos dela são bem conhecidos. Li algo que a sintetiza brilhantemente: “Ao sustentar a soberania como princípio de Estado, os revolucionários perpetuavam o ‘príncipe’, quer dizer, o modelo estatal (...) Ao situar a Nação no primeiro plano da cena política, os revolucionários deslocaram o monarca. Mas nesta ampla transformação não se buscou senão uma coisa: ocupar o lugar do Rei”[6]. A “revolução” de fato é mostrada na película, mas do seguinte modo: uma turba anônima, sempre mencionada ao longo do filme de forma perturbadora, chega ao palácio de Versalhes para destruí-lo. A crítica do site “Contracampo”, apesar de confusa e difusa, conseguiu intuir a importância disso[7]. Maria Antonieta não conseguiu destruir o que lhe fazia mal. Mas o povo o fez.

Muita gente não gostou desse final: esperavam ver a cena da decapitação. Mas cenas finais são escolhas, como tudo dentro de um filme. E a de Sofia Coppola foi mostrar uma sala de Versalhes destruída ao amanhecer, depois da invasão noturna da multidão. O canto de um pássaro é ouvido. Isso sugere, assim como os raios de sol, o surgimento de uma nova era? Se fosse um filme histórico, saberíamos exatamente como seria essa era. Mas não é: nunca se sabe se o enredo se passa no século XVIII ou nos anos 80. Seguem os créditos e a sinistra “All cats are grey”, da banda inglesa The Cure.
[1] FILHO, Kleber Mendonça. Maria Antonieta. Disponível em: <http://www.cinemascopio.com.br/>. Acesso em 8 jan. 2008.
[2] FILHO, Kleber Mendonça. Animalzinho enjaulado. Disponível em: <http://www.cinemascopio.com.br/>. Acesso em 8 jan. 2008.
[3] CARRERO, Rodrigo. Maria Antonieta. Disponível em: <http://www.cinereporter.com.br/scripts/monta_noticia.asp?nid=1672>. Acesso em 8 jan. 2008.
[4] SCOTT, A. O. A Lonely Petit Four of a Queen. Disponível em: Acesso em: 8 jan. 2008.
[5] In: EAGLETON, Terry. Depois da teoria: um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 82.

[6] MAIRET apud MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 4. ed. Rio de Janeiro, UFRJ, 2006, p. 135.
[7] “A leveza é só o atributo provisório – e dilatado na sua duração – de uma brutalidade extra-campo, que cobra seu lugar no fim de tudo”. In: OLIVEIRA, Luiz Carlos. Maria Antonieta. Disponível em: Acesso em: 8 jan 2008.

"(Des) mascarando o silêncio"´por Laura Cortizo



Chamava-se persona a máscara usada pelos atores do antigo teatro grego. O termo cai como uma luva ao intitular o filme do sueco Ingmar Bergman. Em Persona, gravado em 1966, o diretor, que teve problemas de relacionamento com os pais na infância, traz à tona os desafios, dificuldades e contradições que existem nas relações interpessoais. A realização do filme foi subseqüente a uma crise de identidade vivida pelo autor, que, imerso no mundo da ficção e dos personagens, usa a película para criticar as máscaras que são impostas às pessoas, talvez por suas próprias escolhas. O longa conta a história de Elizabet Vogler (Liv Ullmann), uma atriz que, cansada de tantos papéis na sua vida, resolveu parar de falar, fugir do mundo. Sem dizer uma só palavra durante três meses Elizabet passa a ser acompanhada por uma jovem enfermeira chamada Alma (Bibi Andersson) e junto com ela viaja para uma praia deserta onde as máscaras dos personagens começam a cair.



Ao tentar fazer com que Elizabet converse sobre sua vida, sinta-se confortável em falar novamente, Alma, que parecia ter uma vida simples e sem traumas nem aspirações, mostra-se uma mulher perseguida por erros do passado, ressentida com si mesma e que possui problemas de relacionamento. Com o desenrolar da trama a enfermeira acaba por descarregar seus medos e arrependimentos em sua paciente que, apesar de ouvir tudo com atenção não corresponde às necessidades de Alma e talvez não a leve tão a sério como esperava. Alma consegue despertar no espectador e na própria Elizabet sentimentos tão distintos quanto compaixão e cumplicidade, simpatia e medo. Persona é autêntico e autoral, mas não foge da linearidade necessária e da clareza suficiente para que se possa entender o choque de personalidades, de vidas que se apresenta na tela. Tal choque muitas vezes pode ser interpretado como convergência. Isso porque Bergman sutilmente aproxima os dois personagens quando, por exemplo, une a metade de uma face à metade da outra ou quando faz com que Alma vá para a cama com o marido de Elizabet, que a confunde com a própria esposa, ou mesmo quando a enfermeira conta o trauma da própria atriz sem que esta profira uma palavra.



É bem verdade que grande parte do êxito do filme no eu se refere à transmissão de sentimentos se deve às impecáveis interpretações das duas protagonistas. A dor de Alma e a melancolia de Elizabet são quase palpáveis. Outro aspecto crucial do longa é a fotografia, feita de maneira impressionante por Sven Nykvist. O impacto visual é especialmente guiado pelo fato de que os rostos das personagens são filmados de maneira a convidar os espectadores a invadirem as almas daquelas mulheres.



Para prender o espectador, Bergman se vale não só de uma temática perturbadora, mas de outros sutis elementos. O silêncio de Elizabet é inquietante e provoca uma ânsia em saber de sua vida através de suas próprias palavras. Outro aspecto que intriga é a sexualidade das personagens. Na emblemática cena em que Elizabet vai ao quarto de sua enfermeira e quando as duas se tocam a câmera deixa de filmá-las e a dúvida persiste nas cenas que se seguem. O início e o final da trama também dão a sua contribuição para o mistério da película, pois apresentam uma série de imagens que remetem a sentimentos como a dor e a alegria. O espectador curioso, tenta buscar um sentido naquilo, mas logo o filme começa/acaba deixando-o sem qualquer resposta objetiva.



Depois de embaralhar e revelar lembranças, sentimentos, culpas e medos, Bergman consegue criar um dos melhores de seus 62 longas e fazer com que cada um pense sobre as máscaras que usam em suas vidas.

"Violência e poesia" por Manoel Pires Medeiros Neto


Sem muito alarde por parte da mídia em geral, que quase desconhecia o realizador Chan Wook-Park ou Park Chanwook (numa tentativa mais americanizada de denominá-lo), Oldboy (2003) foi exibido no Festival de Cannes no ano posterior ao seu lançamento e levou o Grande Prêmio do Júri, liderado por Quentin Tarantino. Simpatizante do cinema oriental devido ao sopro de criatividade proveniente das terras de lá, Tarantino ‘arrepiou-se’ com o enredo e a estética do filme. Tratando de vingança, da crise da vida moderna, da hipnose e envolto por tabus sexuais, o filme marcou, para muitos, a revalorização cinema do horror.
Com uma passagem discreta pelos cinemas brasileiros, é um recorte bizarro e brutal da realidade humana, sem deixar de acrescentar a narrativa de personagens com dimensões sentimentais e humanas. Uma verdadeira jóia nos tempos dos filmes sem sal reverenciados pelo capitalista cinema hollywoodiano.
Baseado num mangá, tradicional histórica em quadrinhos japonesa, o roteiro do filme é intercalado por momentos de alta agitação e outros mais reflexivos (utilização constante de flashbacks). Apresentando a história aos poucos e sem perder seu estilo, Chanwook constrói paulatinamente o quebra-cabeça que dá sentido ao todo, provocando no espectador uma curiosidade gradativa e alucinante, fiel ao estilo de Hitchcock em produzir tensões.
Após ser fichado na polícia por estar bêbado nas ruas da cidade, Oh Dae-su (Min-sik Choi) é seqüestrado. O exílio forçado de quinze anos é acompanhado por intensa tortura física e mental – Dae-su só tem conhecimento do mundo através das TV, através de sua realidade distorcida. O gás soporífero adormece-o diariamente e, certo dia, ele acorda na rua, livre, com poucas roupas e uma obstinação – vingar-se. A partir daí diversos encontros marcarão sua história. Mi-do (Hye-jeong Kang), garçonete de um restaurante aonde Dae-su devora animalescamente um polvo vivo, numa cenas mais fortes da montagem, torna-se sua paixão e principal aliada. Woo-jin-lee (Ji-tae Yu), colega da época da escola, seu maior inimigo.
A violência carregada da obra tem caracteres poéticos – a beleza estética de algumas cenas de luta entrecruza-se com violentas passagens de automutilação, que assustam os espectadores pouco adeptos às flagelações. Entre os dilemas entre violência e poesia, pode-se, por absurdo que seja, dar vitória ao aspecto de beleza que o filme retrata. Beleza das insanidades humanas. Chanwook dá o tempo certo entre as tomadas no objetivo de atingir a recepção desejada – nem mais nem menos. Estudante de filosofia na faculdade, não é a toa que Oldboy (2003) pareça uma crônica competente da contemporaneidade. A frase final, “Embora eu não passe de um animal... não tenho o direito de viver?” reflete profundamente acerca dos dilemas existenciais humanos. Oldboy é mais que um filme de horror, como alguns insistem em classificá-lo. É um drama romântico-bizarro que resume magistralmente a claustrofobia do homem atual no que tange ao amor e ao tempo.

"De repente... Lynch" por Mariana Alves


Céu azul, flores coloridas, casas com cercadinhos brancos, crianças atravessando as ruas, bombeiros sorridentes passando... É um dia como outro qualquer em um típico subúrbio norte-americano, até que David Lynch aparece, faz um homem ter um ataque cardíaco enquanto rega a grama do quintal e abocanha várias indicações ao Oscar, ao Globo de Ouro e ao Independent Spirit Awards.


Veludo Azul (1986) é um filme esquisito. Mas, "o mundo é estranho", argumentam algumas vezes os protagonistas do suspense; e Lynch definitivamente o faz ser. Jeffrey Beaumont (Kyle MacLachlan) volta da universidade para sua cidade natal porque seu pai sofreu um enfarte. Ao andar pela rua, ele descobre uma orelha humana jogada na grama. O estudante a leva à polícia e inicia suas próprias investigações sobre a ocorrência, com a ajuda de Sandy (Laura Dern), filha do policial responsável pelo caso. Após uma série de acontecimentos, Jeffrey acaba envolvido com Dorothy Vallens (Isabella Rosselini), uma cantora de clubes noturnos que é a principal suspeita da polícia, e seu amante, o excêntrico e violento Frank Both (Dennis Hopper).


A história, considerada por muitos uma representante do gênero neo-noir, não traz nada de revolucionário: um jovem inserido em um mundo cínico, interessado em investigações policiais, envolvido com uma femme fatale e ameaçado pelo ciumento amante dela. A construção dos personagens de Lynch é que trouxe o tom bizarro ao filme. Ele tem prazer em revelar o lado obscuro do aparentemente pacato subúrbio. Jeffrey é um rapaz "descolado" - bonito, com a orelha furada e que dirige um conversível vermelho pela cidade -, mas confuso. Ele diz amar Sandy e demonstra um interesse especial por ela desde o início do filme, mas tem um prazer estranho em observar a vida alheia e acaba dormindo com Dorothy. Esta, por sua vez, trabalha em um clube cantando noite após noite as músicas de que Frank gosta - todas com a palavra blue inserida na letra. E Frank Both, em premiada interpretação de Dennis Hopper, é a principal atração do circo: ele é um criminoso sádico e mentalmente perturbado, que sofre estranhas regressões à infância quando está excitado, anda com um nebulizador preso ao seu cinto e poderia entrar para o Guiness como a pessoa a mais falar "fuck" na história. Para completar, ele seqüestrou o marido e o filho de Dorothy para que essa pudesse servi-lo como uma escrava sexual - e tão bizarro quanto é o fato de que ela parece gostar dos modos masoquistas de Frank, tanto que pede para Jeffrey espancá-la. É válido notar, entretanto, que apesar de toda a estranheza, o final da obra é o típico "happy ending" hollywoodiano.


Veludo Azul tem cenários interessantes e cenas bem feitas - algumas com toques cômicos, como a prostituta dançando no capô do carro enquanto Jeffrey é espancado; poucas cenas conseguem ser mais surreais que essa. Engraçado também é o fato de que nas cenas dramáticas a trilha sonora é alegre, e em cenas supostamente de passagem, como quando aparecem placas com nomes de ruas ou cenas da cidade, a música é de suspense. Há alguns momentos dignos de Hitchcock, como quando vemos, junto com Jeffrey, de dentro do armário, o que se passa na sala de Dorothy. Os atores são engajados e interpretam maravilhosamente bem seus personagens, mas a história não é bem desenvolvida e o filme acabou impressionantemente monótono. O melhor comentário que já vi sobre o filme foi o de David Nusair, crítico do Reel Films Review: "Lynch quer imergir o espectador num mundo completamente diferente do seu - é de se esperar, pelo menos -, para que, depois de assisti-lo, você reexamine sua vidinha plácida. Mas ele não consegue ser atraente. Esquisito por ser esquisito não é o bastante; tem que haver algo mais. E se ele fosse esquisito, mas interessante, estaria tudo bem. Mas Veludo azul é completamente chato a maior parte do tempo".


Não sou uma fã de David Lynch. Nem ao menos gostei de Veludo Azul, mas talvez escrever sobre ele depois de assistir a O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante (1989), de Peter Greenaway, tenha melhorado bastante meu conceito inicial sobre a obra. Se a intenção é ver esse tipo de filme um tanto obscuro, sádico - e cansativo -, definitivamente a escolha melhor escolha é Veludo Azul. A pessoa ao menos tem a possibilidade de sair com um leve sorriso no rosto. Em matéria do cinema dos anos 80, eu particularmente prefiro assistir a Curtindo a vida adoidado (1986), clássico da "Sessão da tarde" da Globo que tem um lugar especial em minha estante, ou à trilogia De volta pro futuro (1985, 1989, 1990), a qual eu espero que brevemente faça parte dela.

Bibliografia:

AMARAL, A., FIGUEIREDO, C., MONTEZINO, A. Dissidências - uma viagem pela marginalidade da música e do cinema. Acessado em: 06 de dezembro de 2006. Disponível em: http://www.ipv.pt/forumedia/f2_fe1.htm

COSTA, Paulo. Veludo Azul. Cine Pt. Acessado em: 06 de dezembro de 2006. Disponível em: http://cinept.blogspot.com/2005/09/veludo-azul-blue-velvet-1986.html

EBERT, Robert. Blue Velvet. Rogerebert.com. Acessado em: 06 de dezembro de 2006. Disponível em: http://rogerebert.suntimes.com/apps/pbcs.dll/article?AID=/19860919/REVIEWS/609190301/1023

NUSAIR, David. Blue Velvet. Reel Film Reviews. Acessado em: 06 de dezembro de 2006. Disponível em: http://www.reelfilm.com/mini7.htm#blue

VELUDO AZUL. 65 anos de cinema. Acessado em: 06 de dezembro de 2006. Disponível em: http://www.65anosdecinema.pro.br/Veludo_azul.htm

VELUDO AZUL. Cine Indie. Acessado em: 06 de dezembro de 2006. Disponível em: http://www.cinedie.com/bluevelvet.htm

VELUDO AZUL. Interfilmes.com. Acessado em: 06 de dezembro de 2006. Disponível em: http://www.interfilmes.com/filme_14714_Veludo.Azul-(Blue.Velvet).html

VELUDO AZUL. 2001 vídeo. Acessado em: 06 de dezembro de 2006. Disponível em: http://www.2001video.com.br/detalhes_produto_extra_dvd.asp?produto=4657

VELUDO AZUL. Adorocinema. Acessado em: 06 de dezembro de 2006. Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/veludo-azul/veludo-azul.asp

VELUDO AZUL. Istoé Online. Acessado em: 06 de dezembro de 2006. Disponível em: http://www.terra.com.br/istoe/1708/1708emcartaz.htm

"Vingança é um prato que se come frio?" por Philipe de Castro


Nem tanto para Georgie (Helen Mirren), que servirá ao marido o cadáver – cozinhado - do amante Michael (Alan Howard), com que viveu alguns dias de deleite e amor.

A história se passa em O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante (1989) do diretor britânico Peter Greenway. Como o próprio nome já explica o filme mostra um enredo em que Georgie, mal tratada e humilhada em público por Albert Spica (Michael Gambon), um mafioso que patrocina um rico restaurante, se envolve com um misterioso cliente que passa horas no mesmo 'Le Hollandais' que eles. Aí entra o renomado cozinheiro Alfred "Se o senhor gastasse seu dinheiro na comida, Senhor Spica, como gasta na decoração, com certeza melhoraria seu paladar" que acoberta o caso na sua própria cozinha e, ao término, acaba por cozinhar o cadáver de Michael a pedido de Georgie.

Greenway é conhecido por sua polêmica declaração logo a estréia de O Cozinheiro, O ladrão, sua mulher e o amante em que afirma que "A única arte que me ensinou algo foi a pintura, eu penso que ela é arte suprema. Se você quiser contar histórias, seja um escritor e não um cineasta" E é isso que vemos em seus filmes. O Cozinheiro ganha destaque dentro de sua produção justamente por acentuar essa característica em que o intenso trabalho com cores, iluminação e cenografia formam uma composição atraente, e até certo ponto onírica.

A narrativa é pontuada por uma forte musicalidade entre a passagem dos dias que somada a sincronização de todos os atores, ao cromatismo viril dos ambientes e aos passeios fantásticos entre eles - via planos seqüências retilíneos - criam um clima envolvente e uniforme com um certo tom voyerístico por parte do espectador.

Se o enredo de certa forma flerta com uma boa telenovela brasileira (Traição – Poder) o filme apresenta questões bem interessantes. Michael, o amante, é um leitor inveterado “Sei que só lê isso porque não tem ninguém para conversar" afirma Spica. O ladrão, por sua vez, tenta – inconscientemente - ou não, disfarçar sua estupidez através da ostentação glamourosa do salão e os pratos refinados de Alfred.

Mesmo sendo ambos duas representações crassas sem perder seus toques de verossimilhança. O amante se mostra como uma tentativa de quebrar um arquétipo que costuma separar o prazer e o trabalho intelectual dos prazeres mundanos. Do outro lado temos Spica que com sua obsessão anal, grita, bebe e come desenfreadamente.

Michael passa mais dos quarenta minutos iniciais sem dá uma única palavra. Ele se divide entre um bom prato de comida, um bom livro e, é claro, uma boa transa.

Essa contraposição fica muito clara a partir do momento em que romance é descoberto e os dois personagens ganham um contorno ainda maior. Alfred assume a insanidade total, enquanto Michael se refugia em seu depósito de livros com Georgie.

Michael demonstra como os diversos habitus estão necessariamente imbricados, de modo a formar uma unidade. No início do filme até comenta-se como comida e sexo são relacionados – porém, não ao modo Spica. O próprio Greenway cita em entrevista que para muitas civilizações a alma não reside no coração, mas no estômago.

Ironicamente, Michael morre sufocado pelas próprias páginas do livro sobre a Revolução Francesa, enfiadas guela a baixo pelos capangas de Spica. O ladrão não esperava que pouco tempo depois também teria uma morte tão simbólica como a de Michael. O filme toca justamente nesse ponto: como a comida vira bosta e como a bosta pode virar comida. O início e o fim. E a participação de cada um nisso tudo e de cada um consigo próprio. Como Alfred responde a Georgie quando perguntado como ele escolhe o preço de uma prato: "Cobro caro por tudo que for preto. Uvas, azeitonas, amoras. As pessoas gostam de ser lembradas da morte. Comer comida preta é consumir a morte. É como dissesse: “" Morte, estou comendo você"”.

"Bonequinha de luxo" por Isabely Barros


Truman Capote escreve em 1958, Breakfast at Tiffany’s idealizando um filme protagonizado por sua amiga, a sedutora Marilyn Monroe. Mas após o acerto com os estúdios da Paramount para as filmagens, a idéia do escritor precisou ser abandonada, pois, Marilyn tinha contrato com a Fox e, alugar a atriz seria demasiado caro. A eleita então, a contragosto de Capote, foi Audrey Hepburn.



Audrey, que até que momento só havia interpretado moças inocentes, não correspondia exatamente ao perfil da garota de programa Holly Golightly. O roteiro foi, inclusive, adaptado e atenuado, fato excluso foi a bissexualidade da protagonista, por exemplo. A escolha do diretor também gerou discórdia: inicialmente seria Frankenheimer, mas Hepburn alegou que não e conhecia e pediu a troca. A direção fica por conta de Blake Edwards, dando início à frutífera parceria com a atriz.



A cena de abertura de Bonequinha de Luxo (1961), mostra Holly Golightly em frente à tradicional Tiffany’s, com ares de sonhadora, o grande objetivo da personagem é casar-se com um homem rico e tornar-se uma das senhoras freqüentadoras da loja.



É claro o modo como a personagem se mantém e o que faz para ganhar a vida, visto os encontros periódicos com um gângster na prisão, Sally Tomato; e os habituais cinqüenta dólares que recebe de cada companhia quando ela vai ao banheiro. O que surpreende é a ingenuidade preservada de Holly, que ganha simpatia e torcida do público.


A personagem de Hepburn deixara o campo para ser uma mulher da alta sociedade de Manhatan. Suas lembranças nostálgicas estão relacionadas à figura do irmão Fred, embora ainda demonstre certo carinho ao recordar do ex-marido. Na sua busca incessante para encontrar um companheiro que lhe confira poder e status social oferece festas desprovidas de valores morais. As cenas são caricatas, típicas de comédias pastelão — Edwards seguirá com o gênero sendo mais notável “A Pantera cor-de-rosa”, em produção posterior.



A chegada do escritor Paul Varjak (George Peppard) irá mudar a rotina de Holly. Eles desenvolvem uma intensa relação de identificação com um afeto crescente. O vizinho, assim como Holly é sustentado em troca de favores sexuais. A princípio ela transfere para ele a imagem de seu irmão, chamando-o diversas vezes de Fred. Curioso é que ela só vê o escritor como homem quando o chama pelo nome real.



A comodidade prejudica uma relação amorosa entre eles, pois, Varjak não possui recursos para se manter sem o auxílio de sua amante e, sobretudo Holly, não tira da mente o objetivo de tornar-se uma dama rica. Juntos passam momentos de romantismo e doçura, mas passado as horas de encantamento ela segue com seus planos e ele assume uma postura passiva diante dos envolvimentos da garota de programa.



O trunfo de Blake Edwards foi a humanização dos personagens; Holly e Paul não são vistos como promíscuos apesar do círculo de luxúria no qual estão inseridos. “Bonequinha de Luxo” conta com a expressão terna de Hepburn para manter o olhar inocente da menina do campo. A grande alteração em relação à novela que inspirou o filme é a opção da protagonista pelo amor.


O roteiro de Capote perdeu em densidade com a adaptação para o cinema, mas as alterações no enredo junto à promissora parceria de Audrey Hepburn e do diretor fizeram da trama um clássico, com direito à canção “Moon River”, escrita exclusivamente para a voz da atriz — que nunca havia estudado canto. O resultado é um filme com ares de conto de fadas moderno; suave, conflitante, mas, sobretudo envolvente.

"Pacto de Sangue" por Vitor Ferrer Roma




Na década de 40, ocorreu um fenômeno curioso, em que os mais diferentes diretores e produtores criaram obras cinematográficas que compartilhavam de um estilo único, com personagens ambivalentes e um jogo de sombra e luz de alto contraste. Sendo que ninguém na época tinha combinado algo tipo de movimento artístico que apenas mais tarde ficou conhecido como Noir, um estilo que parece ter sido fruto do inconsciente coletivo da época.


Dentre os vários filmes Noir, um se destaca por ter sido dirigido por um dos maiores diretores de Hollywood, Billy Wilder. O longa, que aqui ganhou o nome de Pacto de Sangue, conta a estória de um vendedor de seguros chamado Neff (Fred MacMurray) que é convencido por uma femme fatale (Barbara Stanwyck) a bolar um plano para fazer o marido desta morrer de um jeito em que cláusula do seguro garanta uma dupla indenização (daí o título original do filme). O filme é narrado em flashback por Neff, o que deixa claro que o plano não terminou muito bem.


Mas nem precisava ser em flashback para quem o assiste saber disso. Pois o filme tem toda uma aura de mal-estar, que é realmente incômoda e pertubadora. Por mais que o plano seja perfeito, fica claro a sensação de que “ a casa vai cair” a qualquer momento. Mesmo sem ter conhecimento que sua obra fazia parte de um estilo único, Billy Wilder parece ter plena compreensão que filmes Noir têm basicamente uma mesma estrutura básica, que não há muito o que inventar em cima, meio como uma canção de Blues que segue uma fórmula certa. O que faz um Noir ser melhor ou pior que outro são os pequenos detalhes, o timing de cada cena e diálogo, tem que ter o “feeling” pra mesclar o andamento com a atmosfera única do estilo. E nisso, Wilder sucede.


A ótima direção é sustentada por boas atuações. Destaque pra Fred MacMurray, que consegue passar uma mistura confusa da necessidade de viver perigosamente e culpa como Neff, que inconscientemente parece querer achar salvação em ser desmascarado. Barbara Stanwyck faz bem seu papel da mulher ardilosa que sabe se fazer de coitadinha, e que é reforçado por uma certa semelhança física com a “original” femme fatate Marlene Dietrich. Mas o destaque é mesmo Edward G. Robinson como Keyes, o investigador da agência de seguros e amigo de Neff, que é interpretado de uma maneira bem divertida porém determinada lembrando Jonnny Depp como Jack Sparrow cheio de maneirismos.


O filme é como um todo excelente, o único porém seria o ritmo demasiadamente lento, notado até mesmo pelos críticos da época, mas é um defeito que meio que se torna uma virtude, pois o espectador compartilha a angústia de Neff, e a sensação de alívio, que tanto custa para chegar, é realmente confortante.

"A casa de todos nós ou os nós de toda casa" por Luís Fernando Moura


O primeiro trabalho de Chico Teixeira com ficção vem contradizer. O processo e o produto são permeados de grandes e pequenas certezas e incertezas, maturidades e imaturidades de um cinema que se arrisca na formação crua de personagens e das circunstâncias que tendem a esmiuçar uma realidade eminentemente nacional. Em A Casa de Alice, o olhar curioso e descobridor do documentarista se evidencia, tentando revelar a destreza e a falácia de ser da classe média paulista. Mas o manejo da dramaticidade na obra desvela a inoperância dos excessos na condução dos conflitos que se iniciam naquele apartamento.



Pois é, talvez não haja contradições, somente a troca de termos, de lugares e a predicação várias vezes determinante quanto à existência dos sujeitos. Cremos nos personagens, sim, mas sentimos que eles estão no lugar errado, a despeito de toda a sua naturalidade. Assim, Alice, seu marido, sua mãe e seus três filhos adolescentes são, ora valorizados, ora subestimados.



O trabalho de fomentar um naturalismo na narrativa é bem articulado. Chico Teixeira explora o realismo de uma locação verossímil, na qual Mauro Pinheiro Junior faz bem o ofício de equilibrar as luzes e explorar sempre mecanismos estéticos livres de artificialismos. Fotografia, arte, construção espacial familiar, e se pode convidar os atores a entrar. Vem então a maior perspicácia de Teixeira na produção da obra e a medida determinante para que se valha a pena assistir a A Casa de Alice: a escolha do elenco, uma das etapas mais demoradas da produção, como já revelou circunstancialmente o cineasta. No projeto, o trabalho de casting foi a procura dos “próprios personagens”, nas palavras de Teixeira, e não de atores aptos a interpretar aquelas criaturas ficcionais. Recentemente, Karim Ainöuz sofisticou o entorno relacional dos personagens dando a eles o nome dos seus respectivos atores, em O Céu de Suely. O resultado possibilitou um arranjo naturalista e a imersão mais profunda dos intérpretes naqueles papéis, que se tornaram radicalmente familiares. Aqui, Teixeira faz uma escolha a dedo dos integrantes do seu elenco a partir do confronto das figuras ideais em seu filme e de possíveis atores, procurando, como documentarista, um personagem para sua representação do real. A passagem para a ficção naturalmente possibilita que sua abordagem do mundo se recrie fundamentada num universo pessoal do que se quer dizer enquanto autor. Mas as amarras soltas e, ao mesmo tempo, específicas, do ofício de documentar estão presentes em toda a construção da obra enquanto fruto do olhar estrangeiro que, curioso, intenta em registrar o que há de espontaneamente interessante, nos detalhes mais sutis. Assim, a obra é um filme de personagens, onde o que vale é explorá-los em suas banalidades e em seus corriqueirismos, para suscitar ou amadurecer seus conflitos. Dada essa força aos papéis, Carla Ribas já ganhou diversos prêmios por sua atuação como Alice.



O pecado do filme existe exatamente na medida em que se busca o destarte espontâneo das rupturas, das crises. Se, no filme de Ainöuz, o drama de Hermila flui com naturalidade, aqui certos conflitos são desenvolvidos de forma a fazer declinar o livre arbítrio dos personagens. Em alguns momentos, a liberdade latente dos personagens criados por Teixeira sofre uma queda brusca e eles passam a agir em função de remendas necessárias a um encaminhamento tal ou qual à narrativa. Nesse sentido, o roteiro de cada um deles enche-se de uma tragédia superficial em torno da qual girarão seus desfechos. Tudo bastante predicativo.



O carinho com os personagens somente prevalece por via de sua conclusão não forçada e das lacunas que o autor poupa em meio aos círculos matemáticos que sustentam alguns dramas. Novamente, talvez por circunstância do olhar documentarista, Teixeira pode segurar seus personagens, mas sabe a hora de soltar. Depois do filme, a vida continua. Ou não? Marca de uma possível tendência naturalista, o final é sempre sugestão de algo muito maior do que tudo que o filme pôde dizer objetivamente.



Para cuidar dos seus personagens, Teixeira caiu num esquema presunçoso de divindade, mas não pôde escapar a si mesmo: o teor crível de toda a obra é tão familiar que às vezes até suas maquetes podem passar por casas. O que importa é Alice, e as pessoas ao seu redor.

"Profissão: repórter" por Maria Eugênia Bezerra Alves




David Locke está na África, fazendo reportagens sobre os conflitos tribais que ainda marcam a atribulada história do continente. Ou pelo menos é isso que tenta o personagem interpretador pelo premiado Jack Nicholson no filme Profissão: Repórter (The Passenger, 1975), do diretor italiano Michelangelo Antonioni (Blow Up, A Aventura). Logo nas primeiras seqüências, percebemos que ele não parece muito confortável com a situação em que se encontra. O ambiente que o cerca é inóspito e ele não consegue se comunicar muito bem com os habitantes da região. Apesar do status profisional que desfruta e da importância da sua missão, o repórter não demonstra interesse pela atividade.
O jornalismo já serviu de inspiração para muitos filmes, alguns deles até figuram entre os clássicos do cinema mundial. Para citar alguns poucos exemplos, podemos lembrar de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles; Todos os homens do presidente (All the President´s Men, 1976), de A.J. Pakula; O Informante (The Insider, 1999), de Michael Mann, e o recente blockbuster brasileiro Cidade de Deus (2002), dirigido por Fernando Meirelles.
Mas se, ao menos na maioria deles, a presença do jornalista é marcadamente relacionada aos dilemas éticos e aventuras da profissão, no filme de Antonioni o que mais se destaca são os conflitos do ser humano que está por atrás do profissional. Em comum, todos eles tem a relevante qualidade de discutirem questões políticas e os costumes da sociedade contemporânea no Ocidente (ainda que o filme de Antonioni tenha optado por fazê-lo de maneira marcadamente metafórica).
Quando um viajante morre repentinamente no hotel em que os dois estão hospedados, o desiludido Locke resolve assumir a identidade do conhecido. Ele agora é David Robertson (Chuck MulveHill), um homem de negócios aparentemente bem sucedido. No entanto, em pouco tempo, Locke descobre que a aventura é mais complexa do que aparentava, Mr. Robertson é um fornecedor das armas que sustentavam a guerrilha africana. Com a nova identidade, Locke começa viaja por diversos países da Europa e aos poucos descobre elementos que o fazem mergulhar cada vez mais no personagem.
Mas não espere cenas de tiroteios e perseguições alucinantes com carros manobrando em alta velocidade, porque simplesmente não faria sentido dentro da proposta de Antonioni. A película segue um ritmo mais calmo, um convite à contemplação e reflexão. Em uma construção do arquiteto catalão Gaudí, Locke conhece uma jovem universitária interpretada por Maria Schneider (O Último Tango em Paris), com quem terá um relacionamento afetivo. O aspecto labirítinco do prédio, aliás, diz muito sobre os elementos da narrativa. Na época em que o filme foi realizado, a psicanálise exercia grande influência na sociedade e no cinema.
Locke é brilhantemente construído por Nicholson através dos mecanismos de projeção e identificação entre sujeitos, que são importante objeto de estudo para a psicologia. É interessante acompanhar como ele tenta fugir para libertar-se das amarras de um casamento falido e da rotina profissional, para experimentar coisas que antes não poderia fazer. Fugir de si para buscar a própria verdade. Aos poucos, uma seqüência inicial, na qual um dos entrevistados vira a câmera para Locke e diz "suas perguntas revelam mais sobre você do que sobre mim", adquire um significado mais amplo.
Robertson parece realmente livre aos olhos do jornalista, não deixa rastros, não segue as leis. Mas, nesse sentido, vale prestar atenção à personagem de Maria Schineider. Ela não diz seu nome, nem sabemos de onde veio. Simplesmente segue com Locke, sem muitas exigências ou promessas de futuro. Ela está ali, simplesmente por que isso lhe parece satisfatório naquele momento.
Já para o protagonista, as coisas não são tão simples assim. O seu passado começa a persegui-lo quando o produtor para quem ele trabalhava, Martin Knight (Ian Hendy), procura por Mr. Robertson, pois acredita que ele foi o último a falar com o supostamente falecido Locke. Logo em seguida, a esposa do jornalista também entra na busca e, desconfiada de que ele não está morto, aciona a polícia. Não há como deixar de ser si mesmo, por mais que se queira. O tédio e a pressão do passado que teima em voltar aos poucos suga a vitalidade do personagem.
A cena final é um plano seqüência encantador, na qual apenas sugestões são o bastante para que o espectador possa compreender a grandiosidade e a beleza singela do momento. Antonioni nos ensina, com maestria, como utilizar recursos de câmera e montagem com precisão para cativar os espectadores pela simplicidade, sem prescindir da emoção. O próprio diretor considera que este é o seu filme estilisticamente mais maduro. Profissão: Repórter, indicado para a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1975, é uma obra bem acabada de um dos maiores expoentes do cinema moderno, preocupado em exercitar a combinação entre estratégias narrativas, na relação entre técnica e linguagem.