sábado, 4 de janeiro de 2014

"Otto e Mezzo", de Federico Fellini, por Carlos de Lima Ribeiro Junior


Em 1992 a revista Sight and Sound promoveu sua enquete com renomados diretores de cinema (incluindo Martin Scorsese e Francis Ford Coppola) e profissionais da área, perguntando-os quais eram os maiores nomes do cinema mundial de todos os tempos. Federico Fellini apareceu em primeiro lugar. Este mesmo grupo também indicou Otto e Mezzo como um dos dez melhores filmes feitos no último século. Por que razão será que este diretor de cinema e este filme alcançaram tal status? Não é possível responder essa pergunta em poucos parágrafos. Porém, acredito que muito se deve a uma característica marcante e presente em quase toda a obra de Fellini: o universo onírico de sonhos, lembranças e devaneios que ele conseguiu criar de maneira tão brilhante e inovadora em seus filmes. A sequência inicial de Otto e Mezzo, por exemplo, já anuncia a importância que o elemento onírico terá na narrativa do filme.

O enredo traz a história de Guido, um aclamado diretor de cinema italiano que se encontra no meio da produção de seu novo trabalho, um filme de ficção científica. No entanto, Guido passa por um grande bloqueio criativo, não sabendo ao certo o que pretende filmar. Ao mesmo tempo, sua vida pessoal parece estar bem conturbada, e todos ao seu redor não cessam em cobrar dele respostas e atitudes. Essa linha narrativa é interrompida ao longo do filme, tendo sua linearidade quebrada por sonhos, lembranças de infância e devaneios decorrentes do personagem principal.

Percebe-se que para alcançar essa estética tão peculiar que proporciona ao espectador uma sensação onírica nas sequencias dos sonhos, lembranças e devaneios, Fellini utiliza recursos técnicos que fogem do óbvio. Não se tem uso de filtros ou flashes, nem mudança de cor, por exemplo. Em vez disso, nota-se certa sutileza na anunciação da mudança de tempo/espaço, que muitas vezes é feita através da sonoplastia. Uma das características sonoras mais recorrentes nas sequências de sonhos, lembranças e devaneios nos filmes de Fellini é um barulho que soa como o vento. Em Otto e Mezzo é possível identificar mais de uma cena/sequência em que tal ruído está presente.

Em outras passagens, a trilha sonora se encarrega de transportar o espectador para outro universo, como é o caso do início da lembrança que Guido tem de sua infância, sendo banhado e posto para dormir. Ao sair do tempo linear e entrar na lembrança, ouve-se uma música que transmite nostalgia e remete à inocência e à doçura da infância. Essa trilha muda de acordo com a intenção do diretor. Ao final de outra cena de lembrança da infância, aquela em que Guido vai visitar a Saraghina sozinho, ouve-se a rumba, tocada anteriormente em ritmo alegre, sendo executada de maneira tão lenta que chega a ser agridoce, deixando sensação de tristeza e despedida.

Não se pode deixar de citar a forma com que Fellini apresenta a figura feminina não só em Otto e Mezzo, mas acredito que no seu conjunto de obras em geral. Quando não tratada de maneira profana, a mulher é representada com ar maternal. Neste filme especificamente a Saraghina, a sua amante Carla, e quase todas as outras mulheres são carregadas de libido e sexualidade, enquanto que a sua esposa, sua mãe, tia, avó e irmã trazem uma carga de pureza materna. Ainda sobre as mulheres, vale lembrar das sobrancelhas altas que as personagens erotizadas geralmente possuem.

Como de costume, o grotesco e o bizarro que caracterizam o estilo do diretor também estão presentes em Otto e Mezzo, vide a personagem Saraghina, de seios fartos, sobrancelhas expressivas, cabelos desarrumados e de penteado extravagante, isto sem citar a sequência do harém, em que além do grotesco percebem-se claramente as influências da psicanálise na obra de Fellini.


Dentre outras características importantes desta película, o fato dela tratar sobre o cinema por meio do próprio cinema sem dúvidas precisa ser destacado. Juntamente com o caráter autobiográfico, Fellini imprime em sua obra o metacinema de maneira brilhante, de forma que ao fim tem-se uma ideia de infinito, como se a obra realmente fosse um ciclo. A genialidade deste filme transcende cinema, e como falei inicialmente, responder às perguntas levantadas no primeiro parágrafo não é algo fácil de fazer em poucas palavras. Para não me estender, paro por aqui, mas consciente das inúmeras possibilidades de se analisar um filme como Otto e Mezzo.

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