quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

"Mudanças nos usos cinematográficos do medo" por André Antonio



Filmes assustadores (ou que se preocupassem com monstros e fatos horríveis) sempre existiram, desde a infância do cinema. Mas foi do solo fértil dos anos 80, chamada por muitos de “década perdida”, que brotou um “gênero” bem específico (hoje esgotado) de filmes cujo intuito era dar medo. Acredito, aliás, que a noção do gênero “terror” se formou – ou, pelo menos, se fortaleceu grandemente – nessa época. Vamos à descrição dos pontos principais desse gênero particular oitentista: um serial killer aterroriza um grupo de adolescentes amigos que gostam de rock (este, aliás, acaba dividindo a trilha sonora com as músicas instrumentais “de suspense”) e usam, eventualmente, drogas. Ele mata esses jovens um por um ao longo do filme (o espectador corre o risco de levar um susto a cada morte – muitas vezes insolitamente criativa), ao fim do qual a única sobrevivente é a “personagem principal” – a adolescente CDF, “certinha” e virgem do grupo (a peituda loira e gostosa sempre – sempre – morre primeiro). Esse serial killer não é um homem comum – está envolvido com algo aterrorizantemente satânico ou sobrenatural (nada de realismo aqui, o fantástico é um elemento indispensável), o que faz com que, no último segundo dos finais aparentemente calmos e idílicos, uma pista inquietante seja revelada de modo que o espectador perceba que o serial killer mais uma vez não pôde ser morto – ele voltará na continuação, no próximo longa da “série”.

Quatro dessas séries (Halloween, Sexta-feira 13, A hora do pesadelo e Brinquedo assassino) foram a avenida principal de onde saíram outras ruazinhas (O massacre da serra elétrica, as infelizes continuações – houve três – do Psicose original, as seqüências de O exorcista, Os tomates assassinos, As piranhas assassinas, etc, etc, etc, etc, etc...). Vale a pena percorrê-la rapidamente: O assassino de Halloween é Michael Myers. Quando criança, ele matou, no dia das bruxas, a irmã mais velha. 17 anos depois – justamente no Halloween – ele foge do manicômio onde havia permanecido desde então e, com uma máscara branca inexpressiva, vai atrás de sua outra irmã (Jamie Lee Curtis) e de suas amiguinhas do colegial. A série teve dez filme. Quem aterroriza Sexta-feira 13 é Jason, com sua máscara de rockey. Ele era uma criança retardada que “morreu” afogada no Lago Cristal (num acampamento para jovens norte-americanos no meio do mato) por causa do desleixo dos monitores. Mas, devido a algum pacto demoníaco nunca esclarecido feito pela mãe de Jason, ele não morreu. Nunca morre – volta sempre para matar os novos monitores do acampamento que insiste em ser reaberto, mesmo com esses massacres constantes. 11 filmes no total. A hora do pesadelo é sobre Freddy Krueger, um assassino de crianças que foi queimado por pais furiosos muito tempo atrás. Mas, como vingança, o espírito dele voltou nos sonhos dos novos filhos daqueles pais assassinos. Oito filmes foram feitos. Em Brinquedo assassino, um matador, Chucky, na hora da morte, transfere sua alma para um boneco (ele tinha aprendido uns truques de vodu). Ele aterroriza a vida do jovem Andy, pois, só com a morte deste, pode voltar a ser humano. Cinco filmes. Esses quatro assassinos tornaram-se ícones da cultura pop. Os sucessos estrondosos de bilheteria permitiram a quantidade absurda de “continuações”. A relação dos espectadores com tais filmes estava permeada por uma sensibilidade (“uma das coisas mais difíceis de falar sobre”, segundo Susan Sontag[1]...) que tentarei descrever parcialmente a seguir.

Em primeiro lugar o público majoritário era juvenil (não é à toa a predominância de jovens nas tramas e a trilha sonora de rock). Dentre esse público havia os jovens que eram os fãs do “gênero” (geralmente meninos), outros que eram indiferentes a esses filmes e outros, ainda, que não gostavam, por terem medo ou acharem nojento (geralmente as meninas). Enquanto o primeiro tipo colecionava as fitas dessas séries (a cultura do videocassete ficava cada vez mais forte na época), material relativo a elas e podia assisti-las repetidas vezes, mesmo solitariamente, os outros tipos tinham contato com os longas na maioria das vezes em grupo. A experiência de ver o filme de terror em grupo era especial – tanto no cinema quanto, principalmente, numa “farra” na casa de um amigo. Uns jovens ficavam pregando sustos nos que tinham medo, ficavam comentando o filme, lembrando dos anteriores e conjecturando sobre os futuros, solucionando o mistério da trama, contando histórias “verídicas” que davam medo... esse tipo de experiência, de diversão, pode perdurar (mesmo que de forma um tanto diferente) hoje em dia, mas a gênese dela foi certamente na década de produção desses filmes. E, afinal, o que mais fascinava nestes, o que suscitava a sensibilidade por eles requerida? Citarei alguns elementos específicos: em primeiro lugar o próprio mistério sobrenatural das tramas (nunca de todo revelado; o roteirista não tinha essa liberdade porque a empresa produtora sempre queria apostar numa continuação); a permanência de personagens de longas anteriores da série (quando era o mesmo ator, melhor ainda[2]), principalmente com uma mudança “psicológica” (com a experiência traumática do filme anterior, o personagem está mais “maduro” e “cauteloso”...); sua intertextualidade: imagens (e outras referências) dos filmes anteriores da série sempre apareciam nos longas novos, como piscadelas para quem a acompanhava.

Pode parecer estranho eu citar Aristóteles num texto sobre filmes de terror oitentistas, mas é que o filósofo, na famosa Poética, diz que, na arte, ao contrário da vida real, podemos olhar para cadáveres ou para coisas horrendas em geral de uma maneira segura (ou seja: podia-se, no caso em discussão, ter o mesmo medo que alguém sendo assassinado por Jason, só que sem correr o risco de levar facadas). O medo é o sentimento principal que permeava esse gênero específico de que estou falando. E ele (e o modo como a arte o manipula) pode ser a chave para se investigar dimensões cruciais da vida social, ideológica e inconsciente (no sentido psicanalítico) de certas épocas. Daí meu desejo de um livro aprofundado sobre uma época em que o terror – o medo, o sangue, o susto, o horrível – começou a fazer um sucesso midiático nunca visto antes. O que esse gênero, com essa configuração específica tão bem sucedida, revelava? E, ainda: o que significa a decadência desse gênero (além de, é claro, o esgotamento e o desgaste de seus clichês), de modo que esse tipo de filme desperta, hoje, gargalhadas e outra coisa é que suscita medo em nossa sociedade e no público contemporâneo? Claro que não pretendo responder a essas perguntas num texto como esse, mas as respostas podem passar por análises (à la Fredric Jameson) do “medo do outro” em certas épocas sociais e o modo terapêutico ou neurótico com que a mídia de massa trabalha com ele. Claro, esse gênero, vez ou outra, retorna nos dias de hoje, mas apenas em chave nostálgica e/ou paródica[3] (vide, por exemplo, a trilogia Pânico, que trabalha conscientemente – e ao mesmo tempo com reverência e saudade – os clichês do gênero. A trilogia foi feita na década de 90, quando a crise de tal gênero fez com que o cinema de terror entrasse em momentânea estagnação; Halloween H20 e O filho de Chucky, aquele mais nostálgico, este mais irônico; Freddy VS. Jason, uma “homenagem” a esses dois vilões, etc, etc...).

Mas, passada a estagnação a que eu me referi, o cinema massivo de terror pareceu enveredar por novos territórios (claro, sem abandonar totalmente tudo o que ele aprendeu com aquele “gênero oitentista”). Agora parece que o contemporâneo requer filmes mais “limpos” e sutis, como mostram alguns excelentes longas de espírito recentes (O sexto sentido, Os outros, O chamado, A sétima vitima, etc...); ou, quando é muito sangue o que se quer, essa “limpeza” sai da trama e entra numa espécie de “realismo” (basta citar a série Jogos mortais, que já conta quatro filmes – e o quinto já tem estréia definida[4]). Mais uma vez: o que é possível descortinar com essas mudanças? Sem responder, passo a outro nível da discussão: como no pós-modernismo a prática do Grande Divisor (Huyssen) vem, cada vez mais, se extinguindo (não se sabe ao certo, por exemplo, se M. Night Shyamalan – um dos destaques do cinema de medo atual – é um “massivo” se utilizando da alta cultura ou vice-versa; mas talvez seja até hora de abandonarmos essas categorias...), é relevante darmos uma rápida olhada nos usos mais interessantes que o cinema vem fazendo do medo, recentemente, já que ele começou a ser visto, por artistas cuja preocupação primordial não é o mercado, como um material rico a ser investigado.

Aqui vai uma rápida enumeração: 1) Em vários de seus filmes, David Lynch parece se utilizar com sucesso do medo, em tramas – ou em “fiapos” delas – onde pessoas inicialmente bem centradas e “definidas” psicologicamente começam a entrar em contato com algo muito grande e misterioso, que pode ter a ver com o inconsciente (aqui sombrio e assustador), e cujos principais sinais são a desestruturação dos signos da cultura de massa que permeiam o contemporâneo e um clima onírico e surreal. 2) Alguns filmes de David Cronenberg (principalmente os menos novos) se utilizam com sucesso da gramática massiva dos filmes de terror, mas sem nunca deixar de respeitar certas obsessões do diretor – que parecem indicar imagens de um mundo decrepto, com corpos derretendo como insetos num universo onde a tecnologia parece criar uma forma nova de grotesco. 3) Segundo Slavoj Žižek, para entendermos o subtexto de um filme de terror, basta retirarmos o elemento fantástico da trama sem sairmos dela. Mas Lucrecia Martel já fez isso por nós (principalmente em A menina santa, um filme sobre desejo cuja direção de arte cria um clima que não deve nada aos melhores filmes de espírito atuais). A diretora, em, seu mais novo longa (A mulher sem cabeça), ainda inédito no Brasil, flerta mais “descaradamente” ainda com fantasmas. E seu novo projeto (El eternauta) é baseado em quadrinhos de ficção científica cuja história se passa num futuro escuro e desolador com a presença de extraterrestres. 4) Os créditos finais de Los muertos (Lisandro Alonso) são idênticos (fundo preto,letras vermelhas, música tensa heavy metal) àqueles dos filmes de terror dos anos 80. Eles só vêm a confirmar o sentimento que perpassa o filme todo: uma tensão assustadora criada por um trabalho de som primoroso cujo intuito parece ser mostrar ao espectador uma dimensão sócio-cultural diferente que, apesar de sempre reprimida, quer com força vir à tona.

Walter Benjamin[5] diz que é preciso escrever uma história da literatura esotérica, sob pena de revelações cruciais da história cultural e social serem descortinadas. Aqui faço um segundo apelo: a ciência dos usos que a mídia fez e faz do medo pode iluminar dimensões importantes das relações entre cultura e sociedade. Se isso é verdade, é preciso olhar atentamente, também, para o modo como vários cineastas contemporâneos (apenas quatro citados no parágrafo anterior) vêm moldando o terror. Eles parecem apontar para caminhos estéticos mais amplos...


NOTAS

[1] Em “Notes on camp”. Ver: http://interglacial.com/~sburke/pub/prose/Susan_Sontag_-_Notes_on_Camp.html
[2] Era freqüente um personagem X ser representado por outro ator na continuação de um desses filmes. Nesses casos, na maioria das vezes, pegava-se um novo ator parecido com o antigo e o personagem participava pouco da nova trama. Houve, porém, um caso bizarro em A hora do pesadelo 3. A personagem de Patrícia Arquette permaneceu no 4, mas foi interpretada por outra atriz, inacreditavelmente diferente (só a cor do cabelo era a mesma). Interessante também eram as “desculpas” inventadas porque um personagem saía da seqüência, já que determinado ator não pôde (ou não quis) fazê-la. “Onde está fulano? – Um tijolo caiu na cabeça dele...”.
[3] De fato, para Linda Hutcheon, o pós-modernismo é precisamente esse misto de nostalgia e ironia. Ver: http://www.library.utoronto.ca/utel/criticism/hutchinp.html
[4] Ver: http://www.entretendo.com/jogos-mortais-5-tem-data-de-estreia-definida/
[5] No ensaio “Surrealismo: o último instantâneo da inteligência européia”.

domingo, 7 de dezembro de 2008

"Um gosto de mel" por Lara Asfora


“Um gosto de mel” (Tony Richardson, 1962) aborda vários temas polêmicos, de uma maneira bem sutil, através da história da vida de Jo, uma adolescente do subúrbio de uma cidade inglesa na década de 60. Relata o drama uma garota que vive com a mãe, Helen, se mudando de um lado para outro da cidade por não ter como pagar a seus credores, devido à vida promíscua e desocupada de Helen. Elas mantêm uma relação frágil e praticamente inexistente, já que esta mãe vive em busca de seus próprios interesses, relacionamentos com homens mais jovens que possam suprir suas necessidades. O seu tempo se torna escasso demais para as indagações e carências afetivas da sua filha adolescente que se vê sempre sozinha. O tom rebelde e sarcástico da personalidade de Jo reflete todas as dificuldades da realidade que ela vive e chega a incomodar inclusive os pretendentes da mãe.


O autor consegue através de um cenário rotineiro de cais, fábricas, e moradias singelas imprimir um lirismo tocante, como, por exemplo, na cena em que Jo conhece o marinheiro negro Jimmy e a ele se apega rapidamente por encontrar nele uma pessoa atenciosa e delicada. Vive um amor fugaz, sendo o marinheiro praticamente a sua única companhia. Após um momento íntimo, Jimmy vai embora por causa do trabalho, e Jo se vê novamente sozinha já que a sua mãe resolve se casar com Peter, seu novo namorado que é um homem alcoólatra e grosseiro, deixando Jo ao Deus dará.

A personagem tem que se virar sozinha, logo acha um trabalho em uma sapataria e aluga um quartinho, realizando um pequeno sonho que era de ter o seu próprio espaço. Nessa sapataria ela conhece Geoffrey, um jovem estudante gay. Sem muitas opções, Geoffrey aceita o convite de morar com ela, passam a dividir o mesmo espaço. A partir daí começa a surgir cumplicidade, forma-se uma pequena família suprindo as necessidades afetivas de ambos. Geoffrey,vítima do preconceito homossexual da sociedade, é acolhido por Jo. Esta por sua vez, vítima de uma rejeição por parte da mãe e grávida do marinheiro negro que partiu, recebe cuidado, amor e proteção nunca imaginados de um rapaz desconhecido.

Contrastando com toda dificuldade vivida pelos jovens, surge o gosto mel, que são momentos únicos de beleza e alegria, vivenciados num bolo preparado com carinho, em risadas, brincadeiras, incentivo, proteção e afeto no “segurar das mãos” tão significativos, estreitando cada vez mais a relação deles.

Em algumas cenas do filme vemos os medos de Jo virem à tona, como o medo de ser mãe, o medo de crescer e virar mulher, o medo do bebê herdar a suposta loucura do seu pai, o medo do escuro que existe dentro dela, sem perspectivas de qualquer claridade. Nitidamente vemos estampado o egoísmo de Helen, que só regressa ao ser abandonada pelo marido e não ter pra onde ir. A mesma critica tudo ao seu redor e tenta romper a relação existente entre Geoffrey e Jo, expulsando-o e atropelando os sentimentos da filha, pois a jovem preferia a companhia agradável e sincera de Geoffrey do que da sua própria mãe. O jovem acompanha a situação desastrosa de longe sem conseguir se afastar, porém após notar que Helen vai realmente ficar por lá, se vê obrigado a seguir outro caminho, por mais doloroso que isso seja.

Apesar da situação caótica que Jo está vivendo, ao receber de um criança das vizinhanças um fogo de artifício, ela tem outro momento açucarado estampado em um sorriso, mesmo com um futuro incerto pela frente. O autor faz uma analogia entre o escuro e o brilho do fogo de artifício/ a vida difícil de Jo e o momento efêmero de alegria que ela tem.

"O mundo" por Leonardo Nóbrega da Silva




"O mundo", filme do diretor Zhang-ke, de início aparenta uma simples denúncia política contra o mundo da repetição, da simulação da vida dentro da vida. Algo que se poderia basear na teoria do simulacro de Baudrillard, se não fosse o pessimismo de vida deste autor. O Mundo é o nome de um parque de diversões em Beijing onde estão colocadas várias réplicas dos principais pontos turísticos. Dessa forma, pode se “ver o mundo sem sair de Beijing”. Pegando um trenzinho que roda o parque, pode-se dar a volta ao mundo em apenas quinze minutos. São os apelos da modernidade lançados ao extremo.

O enredo gira em torno de alguns funcionários que trabalham no parque. Tao detém o ponto de vista narrativo. Sua vida fica praticamente toda restrita ao parque: um dia ela pode fazer o papel de indiana e no outro será uma africana. Atrás de uma aparente vida de glamour, vive alguns poucos momentos de felicidade que são sempre quebrados pelas brigas com o namorado, Teisheng. A complexidade desse último personagem vai acompanhar as mudanças que trazem dinâmica ao filme e mostram a beleza e impossibilidade de se simular tudo por aparatos tecnológicos. Teisheng recebe alguns familiares na cidade e, depois de mostrar orgulhoso onde trabalha, os encaminha para as obras onde eles vão poder trabalhar.

Um dos poucos contatos que se tem realmente com o mundo externo é com o grupo de russas que chega para trabalhar no parque, alguns pessoas que ao morar fora, como o ex namorado de Tao e Qun e algumas fotos que mostram locais que o parque não consegue reproduzir.

O mundo, que se propõe simulado totalmente pela proposta do parque, começa a se mostrar extremamente complexo quando se aprofunda na alma de cada um daqueles funcionários. A dinâmica de suas interações faz quebrar as suas aparências de “fakes”, de criaturas fantasmagóricas que vivem naquela simulação que pretende abarcar o mundo todo. A utilização do celular dá um toque descontraído, joga cores e revela os sonhos de quem os utiliza. É pelo celular também que se chegam noticias ruins e que encaminham o filme para o final trágico.

A beleza em tudo é de se mostrar a impossibilidade de se viver esse mundo que muitas vezes nos parece proposto como um dado, um mundo que se vê através da tela do computador, do celular, da televisão. Beijing no filme é colocada como a esperança que já de cara é falsa, o futuro que desde que se chegou já não se faz mais presente. Os planos de câmera que correm o parque podem mostrar uma pirâmide egípcia a alguns metros da torre Eiffel. Toda essa simulação vai perdendo espaço para o enredo estritamente humano, a complexidade das relações, as formas de sobrevivência que cada pessoa arruma. As conversas entre Anna, bailarina russa que chegou com o grupo, e Tao, são reveladoras exatamente desse complexo mundo afetivo. Alguns olhares que elas trocam sugerem sensualidade, porém elas, mesmo não falando a mesma língua, começam a se entender e parecem nos fim das contas serem a únicas pessoas ali a manterem uma relação verdadeira de companheirismo.

“O Mundo” se revela então distante daquela coisa da simulação de Baudrillard, distante do fechado, da simples assimilação, da simples reprodução. O mundo é então o mundo das relações afetivas e dentro deste não se pode utilizar simulacros, as histórias vão ocorrendo ao ritmo pulsante de uma dança: cada passo pode desencadear em outro e não se sabe onde tudo vai terminar. A contingência é a salvação do que se diz o simulacro humano.

"Memórias do Subdesenvolvimento (Tomás Gutiérrez Alea, 1968)" por Rafael Reines


A simples menção da palavra subdesenvolvimento tem tirado o sono de boa parte do povo latino-americano durante muito tempo, ela pode significar que seu país possui uma economia colonizada ou um baixo desenvolvimento industrial (IDH), ou simplesmente significar que o que vem de fora é melhor que o produto interno. Tomás Gutiérrez Alea lida com esse tópico de várias maneiras diferentes em seu filme Memórias do Subdesenvolvimento. O filme é focado na vida e nos pensamentos de Sergio, um intelectual burguês que ficou de fora da revolução - enquanto sua mulher e seus pais fugiram para os Estados Unidos - ele ficou para observar o que iria acontecer a Cuba durante a revolução. Típico homem de classe média alta, Sergio se achava superior aos demais cubanos, principalmente sobre as mulheres, que para ele eram todas fúteis e despolitizadas, ele se via como um intelectual europeu cercado de cubanos que pensavam de forma subdesenvolvida.


Usando cenas documentais da própria revolução cubana ocorrida no início da década de 60 misturadas com uma narrativa ficcional que bebeu diretamente nas águas do neo-realismo, Alea criou uma obra de caráter único que combinava perfeitamente documentário e ficção. Memórias do Subdesenvolvimento foi o 5º filme de Alea e provavelmente seu mais marcante (Morango e Chocolate, de 1994, também chegou a fazer algum sucesso, com uma indicação ao Oscar).
No filme, o termo subdesenvolvimento se refere tanto à estagnação política de Cuba quanto ao falso idealismo de Sergio. O jeito que Alea monta seu filme deve contar como seu próprio ato de resistência política: o material documental chama a atenção para uma dialética complexa do individual-grupal que é discutida por todo país.


Memórias do Subdesenvolvimento chocou os críticos dos Estados Unidos, quando teve seu lançamento pelos lados de lá em 1973, e os americanos descreveram-no várias vezes como "extremamente rico", "enorme e eficaz", "belo e subestimado" e "é um milagre". O filme não é nenhum "milagre" em si, mas simplesmente um dos exemplos mais finos do revolucionário cinema cubano, Memórias também teve uma recepção sem sal dos espectadores cubanos, apenas alguns cinéfilos retornam para vê-lo repetidas vezes. A estrutura complexa e a textura dialética presentes em Memórias do Subdesenvolvimento merecem que essas visões sejam refletidas, porque transforma os temas agora familiares da alienação e do "outsider" (aquele que assiste tudo de camarote) e os inserem num meio revolucionário. Nós nos identificamos e compreendemos Sergio, que é capaz de trazer-nos momentos do lucidez. Entretanto, nós compreendemos igualmente que sua perspectiva não é universal nem é atemporal, mais uma resposta específica a uma situação específica. Alea insiste que tais situações não são permanentes e que as coisas podem ser mudadas com o compromisso e o esforço. A história é um processo concreto e material que, ironicamente, é salvação de Sergio.

sábado, 6 de dezembro de 2008

"Lavando a própria roupa suja" por Anderson Paes Barretto




Minha adorável lavanderia (Reino Unido, 1985) é a prova de que o diretor Stephen Frears desde cedo destoava do cinema comum e comercial. Funcionando quase como um “painel” sobre os Estudos Culturais, o filme traz ainda uma política subjetiva, freqüentemente explícita nos diálogos. O longa traz situações inusitadas, especialmente ao mostrar um relacionamento amoroso entre dois homens de mundos completamente diferentes. Omar é paquistanês, membro de uma numerosa família tradicional, que mora na periferia de Londres. Johnny é um jovem inglês, sem família, que não respeita regras nem valores da própria sociedade, muito menos os costumes familiares. As diferenças culturais são extremamente evidentes e são obvias desde a caracterização dos personagens, figurino, sotaque...



A busca por uma identidade – bem como a sua legitimação – é uma constante em todo o filme através dos seus vários tipos humanos apresentados. O diretor estrategicamente aborda a “nacionalização” dos personagens, no sentido particular de “marcar território”, e assim encontrar elementos que traduzam o sentimento de “estar” no mundo, bem como “pertencer” a um país ou a alguém. Muito maior do que o desejo inicialmente contido do protagonista em sair da dependência do pai, é a sua vontade de ter o seu próprio lugar, mesmo que este seja uma lavanderia da família.



A obra se desenrola e se propõe a mostrar toda uma discussão sobre classes, etnia e gênero, sugerindo uma ampliação dos horizontes políticos e culturais. “Que chance um inglês daria a um paquistanês comunista, que chance daria a um comunista socialista?”. Com isso, o filme explora questões como a tolerância e a convivência entre indivíduos preconceituosos (e distintos em vários aspectos), ironicamente dividindo um mesmo espaço. Há, portanto, uma confluência cultural muito forte, onde muitas vezes nos deparamos com inversões, como por exemplo o fato do protagonista paquistanês não se reconhecer culturalmente em nenhum de seus próprios familiares; seu tio, da mesma forma, um empresário que se relaciona com uma “distinta” senhora inglesa, é chamado de “porco imperialista” por um de seus inquilinos ingleses. “Não há questões raciais na nova cultura empresarial”.



Há também no filme a constante tentativa de expandir ou redemarcar as fronteiras, nem que para isso seja necessário recorrer a apagamentos ou apropriações de espaços ou valores alheios. Entretanto, Stephen Frears tem a preocupação de mostrar uma solução para esses confrontos culturais, e assim, propõe uma hibridização entre as culturas (ampliadas no filme pelas divergências entre as duas nações, configuradas como primeiro e terceiro mundos).



Sendo assim, o diretor aproveita para também criticar politicamente o seu país, através dos discursos tanto dos paquistaneses quanto dos próprios ingleses, proporcionando assim uma opinião e uma “vivência comum” oriunda de olhares diferentes. Essas percepções são obtidas graças também à condição periférica dos personagens (migrantes ou marginais), situados à margem do centro produtor e disseminador de valores sociais, políticos e culturais.



Além disso, nem tudo em “minha adorável lavanderia” é justificado, ou seja, os fatos não apresentam necessariamente uma seqüência lógica, em outras palavras, as cenas não são muito coesas, mas nem por isso, interferem na coerência da obra. Isto é, os fatos são muitas vezes “jogados” na narrativa, mas tudo é rapidamente (e facilmente) compreendido. Outra característica do filme é fato de trazer situações não muito evidentes, a maioria das vezes, feitas “às escuras”, onde a penumbra ultrapassa os limites do discurso e chega à fotografia. Com isso, diversas cenas são filmadas em contraluz, além de inúmeras seqüências noturnas, com tomadas internas, fazendo com que o ar restrito e “escondido” dos acontecimentos seja referenciado também nas imagens.Assim, é perceptível o tom de ousadia do diretor, que ao lavar a “roupa suja” do próprio país, não demonstra receio em sugerir para o público uma realidade atual até os dias de hoje

"Simpatia por Godard" por José Roberto Guerra


Ao assistir Sympathy for the Devil (1968), deparei-me com mais um exercício de extrema ousadia estética e narrativa do Godard e, ao mesmo tempo, com uma profusão de referências políticas e da contracultura.
O documentário segue a linha de outros filmes do diretor. Os cortes secos e os planos longos nos remetem ao Godard de sempre. No entanto, a música dos Stones parece querer falar, ou tocar, mais alto do que o(s) discurso(s) político(s) do filme.


O estúdio


As cenas do processo de criação da música dos Stones parecem estar em descompasso com a melodia (contagiante) da obra... E os fãs da banda que vão a busca de um filme sobre os Rolling Stones ficam sem nenhuma satisfaction. Tais cenas, planos longos, são cortados a seco e a música nunca acelera como (parte) da platéia espera. Na verdade, os versos da letra que ficam se repetindo a cada erro dos músicos parecem falar mais do que o rock em si.
Nesse aspecto, o filme, a música, a banda e Godard fazem sentido como uma grande colagem de referências ao momento conturbado que todos eles estavam vivenciando. E são essas transformações sociais e políticas (principalmente) que soam mais alto no filme.


O mundo lá fora

Os planos que intercalam a banda trazem personagens emblemáticos que de certa forma permeavam o imaginário daquele ano: os Panteras Negras, uma democracia apática (a personagem Eve Democracy) que só responde 'sim' ou 'não' e os trechos em off de textos que remetiam ao marxismo e a necessidade de uma revolução.Em relação à contracultura, as tomadas apresentam os revolucionários de maio de 68, feministas, uma pichadora (criadora de neologismos como "sovietcongs"), um livreiro que lê trechos do Mein Kampf, de Hitler, e vende também revistas masculinos e panfletos marxistas. Nessa confusão (1968) de ideologias, o rock'n'roll passa a ser um interlocutor entre as mudanças que estavam ocorrendo no mundo e a juventude que estava seduzida pelas guitarras

A música


A obra dos Stones funciona como uma costura simbólica dos eventos que são trazidos por Godard nos planos secos. Simbólica porque não fala exatamente sobre o que nós assistimos, mas sobre a inversão de ou o questionamento de valores que permearam aquele ano e que na figura do Diabo ficaram mais claros. O julgamento de Cristo, a revolução russa e o assassinato dos (Robert e John F.) Kennedy estão na música. Por sua vez, o Diabo pede simpatia e polidez e afirma que todo pecador um santo. Além disso, ele é capaz de incriminar nós todos pelos crimes que estavam sendo cometidos, a responsabilidade não era só dele, mas da nossa incapacidade de construirmos um mundo melhor (“I shouted out, "Who killed the Kennedys?", When after all, It was you and me”).


O filme


Em 1968, Godard fazia parte de um grupo de cinema profundamente dedicado ao cinema político, ele tentava descobrir como o cinema poderia ser útil à luta política direta. Nesse sentido, o filme pode ser entendido como um mosaico de época, um tempo em que ainda se acreditava que a revolução mudaria o mundo. Acreditava-se no homem e nas suas potencialidades. Um homem talvez mais humanista.

Em relação a essa vontade de lutar, o filme naturalmente me remeteu a algumas imagens glauberianas. O esforço de mudar o mundo, a função da arte libertadora (a música em Godard e a poesia em Glauber), as manifestações populares como formas de contestar o poder tirano... Por fim, o filme me surpreendeu mais por seus aspectos fílmicos do que pela música, que num primeiro momento parecia ser o mote da narrativa.

"Sem dogmas, nem compaixão: A culpa é do Fidel" por Márcia Larangeira Jácome



Paris, em 1970, era uma cidade para onde convergiam muitas pessoas de diferentes partes do mundo, numa rota de fuga dos regimes de exceção e/ou das misérias que as civilizações do hemisfério Sul herdaram de décadas de regime colonialistas (promovidas, inclusive, pela própria França) em busca de um lugar ao sol. É nessa Paris, mítica e politizada, que se ambienta o filme “A Culpa é do Fidel”, da cineasta Julie Gavras.

Logo na primeira cena Julie nos apresenta Anna em seu universo mais que particular: em um banquete de casamento em uma mansão no interior da França, ela ensina primos e primas a usarem talheres para comer frutas. Esta ‘pequena dama’ de nove anos de idade nos convidará a re-visitar um tempo de mudanças que, há cerca de 40 anos, marcaram o mundo de maneira inquestionável (!), alterando profundamente concepções e práticas sociais, políticas e culturais. Um mundo que neste filme – como na vida real – constrói o mundo interior desta e de muitas outras Annas, ao mesmo tempo em que é reconstruído por este.

O enredo é simples: Anna e seu pequeno irmão François são criados na tradição burguesa, com direito à educação em colégio de freiras e vivem com seus pais: a jornalista Anna e o advogado espanhol Fernando.Com eles/as também vive Filomena, empregada cubana auto-exilada em Paris. Tudo parece correr bem nesta família até a chegada da irmã de Fernando, Marga, e sua filha, Pilar. Depois que o marido de Marta, Quino, foi assassinado pela ditadura de Franco, ambas vêm passar uns tempos com a família até conseguirem um apartamento para se estabelecerem na cidade.

Essa presença provoca uma reviravolta no interior da família de La Mesa, abalando certezas, convicções, valores, sentimentos de segurança. E transforma-se no mote para se recuperar memórias, revirar culpas não expiadas, a partir das quais seja possível assumir valores e causas ‘secretas’ e, com isso,‘fazer as mudanças que precisam acontecer’, como Fernando explicaria, mais tarde, a seus filhos. Mudanças que dizem respeito à responsabilidade de cada pessoa para com a construção de um mundo justo e solidário.

Assim, por insistência de Marie, o casal parte em viagem ao Chile, às vésperas da eleição à presidência de Salvador Allende. Ao retornarem para a França, se envolvem em um grupo militante de apoio à democracia aquele país. Ao mesmo tempo, Marie aproxima-se de um coletivo feminista, envolvendo-se na defesa do direito ao aborto legal e seguro. A partir dessas duas situações a situação da família muda para sempre e, por meio desses fatos, teremos a chance de acompanhar Anna nas tentativas de romper os limites seus e do contexto familiar e escolar para refletir e criar uma compreensão muito própria do que se passava à sua volta.

Este talvez seja o maior – embora não o único –trunfo do filme de Julie Gavras: a capacidade de recriar, em em uma narrativa enxuta, a dialética que existe entre os processos históricos de transformação social com experiências de vida tão singulares. Não por acaso, ela se arrisca a explorar a tênue fronteira entre o espaço público (lugar por excelência da política) e o espaço privado (lugar da intimidade). Dessa maneira, ela consegue dar uma dimensão cotidiana à História, ao mesmo tempo em que contextualiza fatos corriqueiros em um tempo histórico.

Assim, vemos que o envolvimento de Fernando e Marie na luta solidária à democracia na América Latina é movida, primeiramente, pela necessidade de superar um remorso de Fernando por ter abandonado seu país e família num momento extremamente difícil. Já Marie se envolve com as lutas feministas após tentar ajudar a cunhada Isabelle que, infeliz no casamento, vive solitariamente o dilema do que fazer frente a uma gravidez indesejada. Transcendendo seus pequenos dramas familiares, Marie e Fernando tomam nas mãos o desejo de construir outras formas do viver, reconhecendo-se como sujeitos da História.

Esta é a chave que abrirá portas para um novo e difícil recomeço. Talvez não por acaso, a diretora tenha decidido por tratar do tema a partir do olhar de uma menina que vive a pré-adolescência – período em que as pequenas certezas que temos e nas quais buscamos alguma segurança se transformam em imensas dúvidas e muitas, muitas perguntas.

Reside aí um segundo e importante trunfo: ao invés de optar pelo discurso panfletário para falar de temas contundentes e atuais, Julie opta por combinar lirismo e humor franco para costurar a narrativa de um filme que se propõe a ter densidade política. Nada escapa à sua verve: a cineasta questiona igualmente o conservadorismo da burguesia francesa, mas também as contradições e dogmatismos presentes na militância esquerdista. Reserva às intervenções argutas e inquietantes de Anna momentos impagáveis de riso aberto. Como a cena de um diálogo entre Anna e a empregada Filomena. Esta, depois que a família se muda para um pequeníssimo apartamento, explica a Anna porque elas ‘são iguais’: “Eu fui expulsa de casa por Fidel”, explica Filomena à Anna, “e você teve que sair de sua casa.” Ao que Anna prontamente responde: “Ah! Então, a culpa é do Fidel!”

A nova moradia está sempre envolvida em sombras e parece ser formada por um pequeno labirinto de corredores abarrotados de caixas de mudança. Nesse ambiente obscuro, Anna caminha sem conseguir distinguir exatamente o que se passa e porque sempre há tantas pessoas em reuniões madrugadas afora e entrevistas 'secretas'. Transformada em 'aparelho' político a moradia se torna, então, uma síntese da simbiose entre as dimensões pública e privada da vida. É quando, definitivamente, a política invade o espaço privado ou, por outro lado, seria o espaço privado abrindo suas portas para o fazer político.

Neste ambiente singular, o diálogo entre Anna é emblemático também dessa relação entre a política e a vida privada. Sendo este um filme que pretende romper essa dicotomia, Julie Gavras faz uma jogada de mestre: ela confere às empregadas domésticas um espaço secundário no filme, numa crítica à sua invisibilidade no mundo real, mas resgata a sua importância, por meio da relação que elas mantêm com as crianças. Depois que Filomena perde o emprego, outras empregadas, também exiladas, se farão presentes: a grega Panayota e a vietnamita Mai-Lahn. Cada uma, à sua maneira, introduzirá no universo de Anna, costumes e informações, que a auxiliarão na construção de uma outra percepção acerca do mundo, das pessoas e das instituições como a escola, por exemplo. É com Panayota, por exemplo, por meio dos mitos gregos, que Anna descobre que existem versões sobre a criação do mundo diferentes da bíblia. E é com Mai-Lahn, por meio de uma fábula chinesa, que descobrirá o sentido e o significado da solidariedade – valor que seu pai havia tentado, em vão, ensinar os filhos, levando-os a uma passeata contra a ditadura de Franco.

Aos poucos vamos nos dando conta dos esforços de Anna para compreender o que se passa e atuar segundo sua própria visão. Movida pelo sentimento de solidariedade à sua turma, soma-se a esse coletivo para responder a uma questão proposta pela professora. Entretanto, como a resposta estava errada, a solidariedade se transforma em frustração. Confusa, Anna conta o episódio aos pais e desabafa: “Agora não confio mais na solidariedade”. Fernando responde com outra perguta: “Será que você não confundiu solidariedade com estar junto à maioria?” Outra vez Anna: “Mas como ter certeza de não estar confundindo? Vcs sempre têm certeza de tudo?” Marie e Fernando trocam olhares cúmplices.

Para Anna, o contato com as diferentes concepções do mundo, por meio do apoio à democracia no Chile ou do debate sobre temas polêmicos e tabus como a sexualidade e o aborto, se dá em meio a um conjunto de mudanças que lhe afetam profundamente o cotidiano: na nova casa não há mais um espaço próprio, os padrões de consumo já não são os mesmos, a proibição às aulas de religião e, mais tarde, a mudança para uma escola pública e laica.

Ao perceber que seu mundo particular se desmorona aos poucos diante de tantas incertezas, Anna move-se de maneira também incerta. Ora recusa-se a aceitar aquilo que, inevitavelmente, irá ocupar esse espaço que se vai esvaziando: fica brava, foge de casa, nega-se a entregar-se a evidências de que a vida (e as pessoas) é cheia de contradições. Ora entrega-se, não sem um certo prazer movido pela curiosidade, de fazer perguntas perturbadoras, desafiando o que as pessoas adultas – de conduta conservadoras ou transgressora – tentam lhe ensinar.

Vencer as próprias resistências é sinal de amadurecimento. Aos poucos, dentro de um espaço de tempo muito próprio e do alto de seus nove anos, Anna vai superando as perdas e aprendendo que sobre incertezas se constrói boa parte de nossas decisões diárias. Assim, segue desafiando-se e desafiando as instituições: seja a família, sejam os grupos de resistência política, a escola, a igreja. O último movimento desse tour-de-force é convidar o pai para uma viagem à Espanha.

Diante da pergunta de Marie: “Será uma viagem difícil – você tem certeza de que quer ir?” Anna não vacila. Juntos, ela e o pai farão uma espécie de resgate de sua história, que se confunde com as memórias de cada um: para ele, aquilo que foi deixado pelo meio do caminho há muito tempo atrás; para ela, a possibilidade de estabelecer novas conexões com o que estava vivendo naquele momento. Sem dúvida, para ambos, a certeza de que essa é uma viagem só de ida em direção a um futuro incerto, mas que precisa estar em movimentação.

Ao experimentar essa espécie de ‘tudo-ao-mesmo-tempo-agora’, com tanta intensidade, Anna vai se dando conta de que estão ali momentos que marcarão a sua vida para sempre, assim como marcaram profundamente a História nestas últimas décadas.

De uma certa forma, “A Culpa é do Fidel” nos relembra que este ‘tudo-ao-mesmo-tempo-agora’ continua vivo. E se Maio de 68 foi um marco do período, certamente não é a sua mais completa tradução, pois esta é uma história sem fim. Para mim, contemporânea de Anna, deixar a sala de cinema após este filme nos traz ao menos uma certeza: “Sei que nada será como antes / amanhã”. Isso reacende a utopia de que é possível sacudir as estruturas. E se a culpa é do Fidel, este deve ser um desejo e um prazer de todos/as nós.

domingo, 30 de novembro de 2008

“Vamos lavar as nossas roupas juntos?” por Rafael Acioly




A cidade de Londres é, certamente, uma cidade cosmopolita e uma das principais representante do que se convencionou “centro do sistema”. Em Minha adorável lavanderia de Stephen Frears (My Beautiful Laundrette, Reino Unido, 1985) – segundo filme do diretor inglês - é um filme que mostra o porquê do desejo de estar no centro. Talvez esta seja uma afirmação escorregadia e categórica, porém útil para contextualizar o primeiro elemento que me chamou a atenção neste filme. Para bem de uma fidelidade com a película, o patriarca de uma tradicional família paquistanesa de migrantes afirma: “neste maldito país, que odiamos e amamos, você pode ter tudo que quiser. Está tudo à disposição. É por isto que eu acredito na Inglaterra. Você só tem que saber como espremer as tetas do sistema.” O homem em questão é o Tio empresário de Omar. Este último é o personagem principal.

A declaração do paquistanês pode ser personificada a partir da significativa daquelas pessoas que se movem em buscas de algo melhor, ou fazem de tudo em prol de conquistas financeiras. E com o tio de Omar, não fora diferente. Em outros filmes, com é o caso de Os Imorais (1990) Frears aborda a temática da ânsia por dinheiro onde não se impõe limites. Aqui, a questão também é abordada seja nos negócios legítimos do patriarca e as suas práticas ostensivas do “desembaraçamento” para os maus pagadores, mas também, nas negociações criminosas de uma dos amigos da família e compatriota, que inclui nos seus ganhos dinheiro oriundo do tráfico de drogas.

Na periferia de Londres, portanto, tudo isto acontece enquanto Omar aceita o desafio de fazer da velha lavanderia “Powders” (pó) um espaço limpo e de negócios rentáveis. “Há dinheiro na sujeira” como foi lhe dito, neste caso sujeira pode, também, ter o sentido irônico de se referia à situação periférica.

Em meio a todas estas questões Omar vive in-betweens entre as vontades idealistas do seu pai, que está sempre lembrado ao jovem o seu desejo “você tem que ir para a universidade”, pois para ele o Centro é o lugar de expansão cultural. Contradizendo, portanto, com os desejos mercantilistas do tio. Além disto, Omar sofre com o preconceito dos estigmas, pois são nos traços faciais os indicio das origens de sua família migrante.

Mas o grande conflito de Omar está em não saber realmente de onde ele é, já que, de um lado a família do Tio vive no nicho fechado culturalmente nas suas origens; por outro, ele sabe que nasceu em Londres e no seu espírito desbravador em nada combina com o conservadorismo que lhe é cobrado. Em meio à rivalidade entre os indesejáveis imigrantes e os punks desertores, Omar ainda vive as injúrias de ter “roubado” o líder daquele grupo, que agora vive um romance homossexual com Omar.

Ao propor todo o entrelaçamento destes temas Stephen Frears constrói a atmosfera da película com cenas preenchida por uma sonoplastia envolvente, muitas vezes ritualística, que complementa a câmera. De frente à tela, às vezes nos sentimos dentro de uma lavanderia, ou em uma grande piscina, para lavarmos juntos as nossas roupas sujas.

"O Bandido da luz vermelha" por Leonardo Nóbrega



O centro deste texto é o filme O Bandido da Luz Vermelha, dirigido em 1968 por Rogério Sganzerla. Não se encerra, porém, na análise do filme como algo findo em seus noventa minutos de projeção. Se fosse dessa forma, não faria sentido escrever sobre um filme que já foi tantas vezes pensado, repensado, medido, pesado e colocado no seu devido lugar, se é que lhe cabe um lugar. Pretendo fazer algumas reflexões sobre construções presentes no filme, seu diálogo com a realidade, e seu enquadramento histórico, relacionando a alguns outros fatores relevantes. Tudo baseado em algumas teorias que são importantes para se pensar as questões levantadas.

A loucura explosiva surge de todos os lados e toma forma na linguagem anárquica de Rogério Sganzerla, em O Bandido da Luz Vermelha. O filme foi rodado em 1968, um ano após a prisão de João Acácio Pereira da Costa, bandido que atordoou a polícia paulista por seis anos até ser preso em 67. Cometia sempre seus crimes com um pano amarrado no rosto e carregando uma lanterna de luz vermelha.

Rogério Sganzerla tinha 22 anos quando realizou esse filme, que acabou por se tornar o seu mais conhecido. Falar da revolução causada pelo filme já virou um lugar comum. Depois desse filme, vários outros passaram a utilizar a cultura de massa, os gibis, programas sensacionalista de rádio, todas as referencias presentes em O Bandido. Como afirma Ismail Xavier, “o bandido inspira o rótulo de “estética do lixo”, associado posteriormente a todo um cinema agressivo que fez um inventário do grotesco e da violência sem o mesmo humor de Sganzerla e apresentando uma visão infernal do país” (XAVIER, 2001: 67).
O contexto histórico trás um enquadramento que ajuda no entendimento do que acontece com o filme. O filme é gravado num momento histórico, pós golpe militar, em que o pensamento de esquerda estava perplexo pelos caminhos políticos tomados no país. A resposta no filme vem com a falta de ideais políticos, sem a presença da revolução como salvação social, está no vazio dos personagens, nos clichês melodramáticos dos locutores de rádio, na ineficiência do delegado Cabeção e principalmente na falta de expectativa em que vivem as pessoas. A qualidade de terceiro mundo do Brasil é sempre lembrada. A boca do lixo está sempre prestes a explodir. O “Quem sou eu?”, uma auto-interrogação constantemente feita pelo bandido (Paulo Villaça) revela a crise de identidade que passa, não só um projeto da esquerda de uma unidade de classe, mas uma recorrência a falta de lugar no mundo em que todos se encontram. Dessa forma, pode-se notar que:
“A denominação de Cinema Marginal, ou “Udigrudi”, foi cunhada, pela crítica, para aglutinar cineastas que vinham da Boca do Lixo, zona de prostituição que também congregava produtoras de pornochanchadas, em São Paulo, como foi o caso de Rogério Sganzerla, que se juntou à intelectualidade carioca, representada principalmente pelo cinema de Julio Bressane. Nascia, ali, um abismo estético e um contraponto entre estas duas escolas: uma absolutamente comprometida com os ideais políticos do CPC, e a outra voltada para os ideais libertários da vanguarda e para a tradição de deboche e ironia da arte brasileira, iniciada principalmente com Oswald de Andrade” (CANUTO, Roberta, 2006:15).

“Em política o chamado “grito do Ypiranga” inaugurou a deformação da realidade de que ainda não nos libertamos e nos faz viver num como sonho de que só nos acordará alguma catastrophe bemfeitor”. [i]Nota-se assim um caminho a ser traçado e que vai perdendo espaço para o militantismo de esquerda que quer dar um caminho para o “povo” seguir. Esse ideal, totalmente abalado pelo golpe militar, perde espaço para uma outra forma de resistência política: menos direta, menos engajada, porém muito mais agressiva e impactante.

Essa noção identitária de um grupo homogêneo, que no marxismo vinha tomando forma de classe operária, que tomaria o poder da burguesia, já vinha sendo teoricamente questionado e considerado obsoleto. No pensamento estruturalista se via uma busca pelo pensamento universal, uma noção de totalidade, mesmo que já se estivesse abandonando uma idéia do sujeito como central. A publicação por Foucault de L'arquéologie du savoir apresenta grandes mudanças em relação ao anterior Les mots et les choses. Com essas mudanças pode-se perceber uma tentativa de romper com seu pensamento estruturalista anterior. Faz uma tentativa de união com a histórica, de forma a desconstruir a história de dentro para fora, à maneira de Nietzsche (projeto que vai iniciar o chamado pós-estruturalismo).
O grande passo de Lárquéologie du savoir é levar em consideração o nível da prática, do engajamento político, a partir da noção de prática discursiva. A ruptura que se estabelece com o estruturalismo é de se afirmar que as relações discursivas não são internas ao discurso. O que acontece com essa desconstrução da disciplina histórica é o abandono da busca pela continuidade e grandes sínteses, trazendo à tona a pluralização como local privilegiado. Dessa forma, o arqueólogo se coloca então como um relativista, não tendo a necessidade de fazer relações de causalidade, mas sim fazendo aflorar o que se esconde em baixo das várias camadas da sociedade. Dessa forma, a introdução desse conceito fundamental de Foucault, da pratica discursiva, tem grande importância para o que está sendo pensando aqui, pois possibilita um nível de análise em que o sujeito não tem importância enquanto indivíduo, mas tem extrema importância o local de onde o discurso está sendo proferido. A analise do discurso não se importa com a formação gramatical da frase mas sim com as condições sociais que possibilitaram a formação de tal frase, com as condições históricas que lhe deram base, com o local de onde a frase está sendo proferida. Nesse sentido, o sujeito não existe de forma exterior a frase mas é, sim, parte dessa frase, dessa modalidade enunciativa, é uma função desse mesmo anunciado.
Tomando como base essa reflexão, não importa de início quem foi Rogério Sganzerla, mas sim quais as condições que propiciaram o surgimento de seus filmes e da sua inovação na linguagem cinematográfica. Alguns apontamentos quanto as condições de surgimento já foram feitas: as influencias de Oswald de Andrade, de Mário de Andrade, de todo um pensamento antropofágico que acabou por sofrer um processo de desconstrução no momento em que foi necessário dar uma resposta (ou um grito qualquer) contra a política que vinha sendo feita no Brasil e os rumos que as coisas vinham tomando.

O filme inicia com um letreiro anunciando: “um gênio ou uma besta”. E logo vem a voz em off do bandido da luz vermelha: “quem sou eu?”. Isso já inicia o filme marcando sua estética com uma mistura pop, de cultura de massa, lembrando sempre o esdrúxulo, o grotesco, ao ironia, o riso, cenas de ação constante misturadas com reflexões existencialistas. Letreiro continua: “os personagens não pertencem a esse mundo mas ao terceiro mundo”. A constituição em si de uma unidade terceiro mundista já apresenta uma ironia. No decorrer do filme, essa frase vai se repetir, principalmente numa voz em off enquanto passa alguma cena bizarra. É uma idéia sempre de lembrar a característica periférica de onde se fala, de onde essas coisas podem acontecer. Como o locutor afirma “trata-se de um far-west do terceiro mundo”. A condição antropofágica fica clara. Num momento mais a frente, aparece outro personagem central, o delegado Cabeção. Essa personagem apresenta ao mesmo tempo o que há de grotesco na condição de periferia terceiro mundista como uma ironia aos filmes hollywoodianos em que os policiais são heróis que logo resolvem os casos mais difíceis. Em O bandido da luz vermelha, todos são anti-heróis, esperam qualquer oportunidade para colocar o outro para trás, e nesse caos imenso que é sintetizado na Boca do Lixo, um anão negro profecia: terceiro mundo vai explodir, quem tiver de sapato não sobra, não pode sobrar”. De imediato o delegado Cabeção dá a ordem: “prende esse anão boçal”.

A presença do riso, do cômico, grotesco, irônico, no filme de Sganzerla, entra em consonância com o estudo que Bakhtin fez do livro Gargantua e Pantagruel de Rabelais. Dessa forma, ele afirma que: “O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro da sua diversidade, essas formas e manifestações – as festas públicas canarvalescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias, a literatura paródica, vasta e multiforme, etc. – possuem uma unidade de estilo e constituem partes e parcelas da cultura cômica popular, principalmente da cultura carnavalesca, uma e indivisível” (BAKHTIN, 1977: 4). Essa cultura carnavalesca é referencia o tempo inteiro no filme, tanto na figura do anão, como o delegado como em tantas outras passagens.

Um ponto importante a se analisar é a construção que se dá entre realidade e ficção. O bandido do filme é uma livre inspiração no bandido que aterrorizou São Paulo até 1967, quando foi preso depois de seis anos cometendo crimes. As características de grotesco que o filme trás estão intimamente relacionadas com o João Acácio Pereira da Costa, o verdadeiro bandido. Coloco abaixo alguns trechos de uma reportagem feita logo após sua saída da prisão (ele foi solto depois de passar trinta anos preso). “Chamado de Bandido da Luz Vermelha, a tradução para o português do pseudônimo de Caryl Chessman, condenado na Califórnia em 1948 à câmara de gás, por crime sexual e seqüestro, e executado em 1960. O original se destacava pela inteligência, fez sua própria defesa no tribunal e se tornou conhecido como o símbolo contra a pena de morte, abolida na Califórnia doze anos depois de sua execução. Acácio aprovou a comparação e comprou uma lâmpada vermelha para sua lanterna. "Eles gostaram, me deram a idéia e eu repeti. Fiz outros assaltos assim. Os jornais mesmo é que me deram a idéia de ser o Luz Vermelha", disse em 1968, em uma entrevista para o jornal Última Hora”.
“Chamava a atenção de juízes e promotores um traço da personalidade de Luz Vermelha. Ele confessava os crimes como se estivesse contando vantagens. Apesar de condenado por quatro homicídios, disse ao juiz que havia matado "uns quinze". Dos 88 processos pelos quais foi condenado, nenhum esteve ligado a crime sexual, apesar da fama. Na semana passada, chegou a posar nu para um jornal de Santa Catarina, que acabou desistindo de publicar as fotos. O advogado de Luz Vermelha, José Luiz Pereira, tentou vender à imprensa a possibilidade de realizar um ensaio fotográfico do ex-presidiário sem roupa. "É o sonho dele", disse”. “Um promotor que acompanhava a rotina dos presos na cadeia relata que Luz Vermelha ignorou as centenas de cartas de mulheres com proposta de namoro. Casou-se com o cozinheiro Bernardino Marques, que cumpria pena por ter matado a sogra. Quando o cozinheiro deixou a prisão, Acácio não teve outros relacionamentos, mergulhando num ciclo de surtos psicóticos, e chegou a ser internado no manicômio judiciário”.[ii]

Dos relatos vistos na reportagem pode-se ter uma clara idéia da relação entre o grotesco como estética e construção dos personagens no filme e o próprio bandido que inspirou o enredo. Faz-se lembrar agora um trecho de Oscar Wilde em que ele firma que “a vida imita a arte”. Com essa tese que parece, a principio tão impossível, depois dos casos relatados fica mais fácil entende que relação existe entre realidade e arte. Ambos estão sempre se relacionando diretamente, porém, continua Wilde, “só a arte nos proporciona a beleza. (...) Em uma palavra, a vida é o melhor, ou antes, o único discípulo da arte” (WILDE: 54). Pode-se perceber que a o cotidiano num primeiro momento não imita a criação artística porém a partir da formalização da arte, o olhar sobre o mundo, a vida, a natureza, passa a ser moldado pela obra de arte. Num segundo momento pode-se ter então atos que são influencia direta da arte. O mito que virou o bandido da luz vermelha tem tudo a ver com essa relação. Nesse caso, não só o filme mas todo o discurso midiático em cima do seus crimes, fizeram dele um mito, e ele próprio passou a viver essa realidade mítica.

“Depois de analisar o laudo psiquiátrico de Acácio feito quando ele foi preso e o outro, escrito pouco antes de sair, o psiquiatra Claudio Cohen, professor de medicina legal da USP, arriscou um diagnóstico do criminoso. Acácio seria um limítrofe, patologia catalogada no Código Internacional de Doenças. Não tem a personalidade formada e, por isso, age de acordo com a expectativa das pessoas (grifo meu). É instável emocionalmente e de sexualidade confusa. Aparenta ser esquizofrênico, mas demonstra inteligência ao criar métodos de assalto. Dentro desse quadro, agirá como um homem bom enquanto dele se esperar que seja bom”.[iii]

O filme segue de forma sempre tragicômica, com as referência já citadas e cultua pop, marginal, estética grotesca, sempre utilizando a presença do kitsch, em consonância o a atmosfera estético-intelectual proposta pelo filme. Aparecem ainda a prostituta Janette Jane, o candidato a presidente pela boca do lixo, J. B. da Silva, a máfia Mão Negra e vários outros elementos que devem esperar por um outro momento para serem refletidos.

O Bandido dá o deslize que termina na sua descoberta ao manter um caso com Janette Jane (Helena Inês), a prostituta por quem se apaixona e que acaba o entregando à polícia. Longe de um final comum, até pela tragicomédia montada no filme, em que o bandido ri o tempo inteiro da polícia e que o envolvimento da máfia na Boca do Lixo faz lançar a candidato um político corrupto, longe de um filme comum, o final surpreendente revela ainda mais a coexistência da comédia e da tragédia. O fim irônico, bandido e policial abraçados, deixa o “lixo” como mensagem e a certeza de que “viver no Brasil é encarar a violência, grossura e tolice onipresentes; um mundo onde a lucidez possível é o riso paródico” (XAVIER, 2001: 68)

Depois das tentas reflexões já feitas nesses quarenta anos do filme, não faria mais sentido escrever/refletir sobre ele se não fosse por sua constante atualidade. Serve ainda para lembrar aos mais céticos que as totalidades e mesmo as causalidades não fazem sentido algum. O grotesco está ai sempre para exagerar. Seja nas reflexões feitas por Bakhtin ou mesmo na presença da estética do exagero (lixo) de Sganzerla, o principal a se lembrar e que o riso está ai para salvar a todos, ou mesmo para enfiar todos de vez no buraco. Como lembra brilhantemente o bandido: “quando a gente não pode nada a gente avacalha e se esculhamba”!.

[i] Introdução escrita por Paulo Prado em 1924 ao livro Pau Brasil de Oswald de Andrade.
[ii] Revista Veja, 1997.
[iii] Idem


Bibliografia:
ANDRADE, Oswald de. Pau Brasil, 1925.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, 1977. Editora Hucitec.
CANUTO, Roberta. O Bandido da Luz Vermelha [manuscrito] : por um cinema sem limite. 2006. Orientadora : Profa. Dra. Vera Casa Nova. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Paris: Gallimard, 1971.
VEJA (revista), 1997. Acessado em 28 de novembro de 2008. Endereço eletrônico: http://64.233.169.132/search?q=cache:C21i1xRQMI0J:veja.abril.com.br/030997/p_030.html+entrevista+bandido+da+luz+vermelha&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=1&gl=br
XAVIER, Ismail. Do Golpe Militar à Abertura: a resposta do cinema de autor in Cinema Brasileiro Moderno, 2001. Paz e Terra. São Paulo.
WILDE, Oscar. Intenções. Tradução de Paulo Barreto (João do Rio). Aaaa. Livraria Império.

"Um Gosto de Mel (A Taste of Honey, Tony Richardson, 1961)" por Rafael Reines





O início da década de 60 foi bastante fértil para a “British New Wave”, que teve como principais diretores Tony Richardson, Karel Reisz, John Schlesinger e Lindsay Anderson. O primeiro chegou a ganhar um Oscar em 1963 com Tom Jones, mais suas maiores contribuições para o movimento foram “The Loneliness of the Long Distance Runner” e “Um Gosto de Mel (A Taste of Honey)”, que foi uma perfeita adaptação para as telas da peça de Shelagh Delaney, que também co-escreveu o roteiro junto a Richardson. Um Gosto de Mel foi um divisor de barreiras do cinema britânico, abordando temas inéditos até então, tendo como protagonista uma jovem de classe média baixa, relações inter-racias e um personagem homossexual. Richardson conseguiu organizar todos esses elementos com uma enorme sutileza e sensibilidade, criando uma obra única que marcou completamente não só o cinema britânico, mais que também entrou para a história do cinema.

A solitária Jo (Rita Tushingham), uma adolescente sem nenhuma perspectiva de futuro, vive com uma mãe negligente e alcoólatra, a promiscua Helen (Dora Bryan) que se muda constantemente para não pagar aluguel. Após um rápido romance com o marinheiro negro Jimmy (Paul Danquah), ela fica grávida, enquanto isso, sua mãe está muito ocupada cuidando do seu casamento com o boêmio Peter (Robert Stephens) para lhe dar alguma atenção. Jo decide viver por conta própria, com a ajuda de seu amigo gay Geoff (Murray Melvin) e tenta assim, formar a sua própria versão para uma família feliz.

Todo ambientado na Inglaterra do pós-guerra nos anos 50, a fotografia do filme impressiona pelo seu grau de realismo, o diretor de fotografia Walter Lassally conseguiu reproduzir com um naturalismo impressionante a Manchester do período pós-guerra. Tanto a iluminação natural de Lassally nas externas, como o bom posicionamento de câmera nas cenas internas, capturaram perfeitamente a atmosfera industrial e urbana da época .

Para todos interessados na história do cinema, Um Gosto de Mel de Tony Richardson é um ótimo exemplo da “British New Wave” dos anos 60. Grandes atuações, uma fotografia magnífica e o poder dos diálogos de Delaney, que escreveu toda a obra, todos esses fatores contribuíram para fazer desse filme uma das maiores referências desse cinema.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

"Estranhos no Paraíso (Stranger than Paradise, Jim Jamursch, 1984)" por Guilherme Carréra



Temos um casal em um quarto. A fotografia em preto-e-branco, os enquadramentos firmes, as camas mal feitas. Willie (John Lurie) tenta dormir, enquanto o telefone toca. Eva (Eszter Balint) acende cigarros e se movimenta pouco pelo cômodo. Ambos húngaros. Na cidade de Nova York, transformam-se em dois estrangeiros. A aparente adaptação de um e a languidez preguiçosa da outra são contrapontos que dão contorno à estratégia discursiva de Jim Jamursch. O diretor norte-americano elabora um olhar de estrangeiro para filmar seu próprio país em “Estranhos no paraíso” (Stranger than paradise, Estados Unidos, 1984), um exercício delicado sobre estradas, quartos de hotel e parcerias.

O longa-metragem dividido em três atos me parece imbuído de um profundo senso de deslocamento. Um permutar constante, que ora cessa em um local, ora se descortina e desembesta em busca de outros ares. Willie, o húngaro que reside na capital nova-iorquina há algum tempo, não quer mais ser húngaro. “Me chame de Willie”, diz, negando seu nome original, ao receber sua conterrânea no apartamento. Eva vem de longe, vem de Budapeste. A pedido de uma tia, Willie aceita abrigá-la por alguns dias. A co-habitação dos dois é o conteúdo de “O Novo Mundo”, título da primeira parte do filme.

Por mais que a territorialidade seja um dos focos aqui, a materialização da cidade (ou das cidades, já que o filme é uma espécie de road movie) nunca se dá por completo. A Nova York cartão postal, com o Empire State imponente, o Central Park gélido e as grandes avenidas que cruzam essa grande metrópole não são alvos da câmera jarmuschiana. A isso tudo ele prefere breves planos de Eva andando por uma rua de prédios classe média, com pichações nas paredes e calçadas vazias. Jamursch não quer o óbvio, não quer a cidade pela cidade. O que o olhar ordinário renega, “Estranhos no paraíso” se predispõe a tornar cenário. O estranhamento da húngara em solo americano repercute em diálogos com Willie. A junkie food ianque, símbolo de uma praticidade torta, é motivo para Eva indagar sobre o tipo de alimentação. O “TV food” reúne carne, batata, salada, com direito à sobremesa. “Mas a carne nem parece carne, de onde ela vem?”, questiona Eva. “Da vaca”, limita-se Willie.

Passada a temporada da estadia, Eva parte para Cleveland, seu destino final. Antes disso, conhece Eddie (Richard Edson), amigo de Willie. Eddie completa a trinca-protagonista do filme. O personagem é dotado de um humor involuntário, mas muito suave. A comédia em Jamursch nunca é escrachada, a predominância é da sutileza. Juntos, os três se reencontrarão no que se pode chamar de segundo segmento, “Um ano depois”, quando os amigos ganham dinheiro em um jogo de cartas e partem para Ohio, a fim de visitar a jovem. Na estrada, Eddie deixa escapar que não sabia que o amigo era europeu. “Sou tão americano quanto você!” é a resposta incisiva de um Willie entre seu passado e seu presente, entre o Leste Europeu e a América. O reencontro com Eva na lanchonete os coloca novamente como trio. A influência da Nouvelle Vague em “Estranhos no paraíso” pincela de Truffaut a Godard: a tríade composta pode lembrar ao espectador o célebre “Jules e Jim” lírico-truffauniano, assim como a desconstrução e a ausência de identidade fixa de qualquer criação godardiana.

Em “Paraíso”, última parte do filme, Willie e Eddie, que haviam decidido ir embora de Ohio, cogitam voltar para apanhar Eva e seguirem juntos para a Flórida. Assim o fazem. Com óculos escuros comprados ao chegarem à Flórida (“agora parecemos turistas de verdade”, brada um deles), os três se instalam em um quarto de hotel. As praias no inverno, a neblina que sobe e um grau de intimidade que nunca se concretiza entre o trio decoram a ambiência. Por mais próximos que estejam, Eva e Willie ou Eva e Eddie parecem não se conectar, não se deixar conhecer uns aos outros. Por desconfiança ou por falta de tato para criarem uma relação menos distante e mais calorosa, se isso não configura observação brasileira em excesso.

O vento forte que passa enquanto Eva está sentada próxima ao mar é uma seqüência simples e eficaz. O paraíso com belas mulheres de biquíni e o clima de veraneio imaginado por Eddie cede espaço para uma Flórida longe do estereótipo idealizado. O que se passa na cabeça daquela mulher, suas angústias e dúvidas não são verbalizadas, e Jamursch parece dizer que seu objeto de interesse é, por conseguinte, o não-dito. A construção de suas imagens e sua narrativa episódica prezam por certos silêncios, seja enquanto dois amigos bebem uma cerveja, seja enquanto Eva passeia em frente a uma gift shop meio abandonada. Paira sobre o filme um laconismo sincero.

Elemento precursor do que já se institucionalizou denominar “cinema independente norte-americano”, ou simplesmente cinema indie, “Estranhos no paraíso”, paradoxalmente, está bem distante do que se vê hoje com o rótulo desse tipo de produção. Longe da presunção de psicologizar excludentes, Jamursch, com o auxílio de uma poderosa trilha sonora que percorre os deslocamentos tanto físicos como imaginativos, tenta criar uma atmosfera sem dissonâncias e gritarias. Seu filme é coeso e quase sussurado. Embora as discussões se façam presente, o tom é de serenidade e de contemplação. Para mim, resvalando em certa apatia juvenil, tendo Eva, sentada diante daquele mar, como a moça sem grandes esperanças.

O senso de deslocamento que vai interligando estradas, quartos de hotel e parcerias ocasionais é retratado em dois planos generosos de beleza visual. A cena de abertura, quando vemos Eva com sua mala e sacola ainda no aeroporto, vendo um avião decolar. E uma das últimas seqüências, quando Eddie olha um outro avião alçar seu vôo. Nos dois momentos, a aeronave preenche a tela e rouba a atenção do espectador. Os dois seres ali embaixo, olhando, oprimidos pelos ritos de passagem que aqueles vôos significam, em espaços diferentes, sob ângulos distintos. “Viemos para um lugar diferente e tudo parece igualzinho”. A inocente e anterior constatação de Eddie ao trocar Nova York por Ohio talvez se oponha ao rito de passagem daquele avião. Talvez se deslocar fisicamente não signifique, de fato, mudar.

"Exótica" por Mariane Bigio



Impossível não começar falando do título: “Exótica”, que acaba por condensar o que o longa de Atom Egoyan é de fato. Mas ao contrário do que possa parecer, não há nada de óbvio nem superficial no enredo deste filme. Além de ser o nome do strip-club onde grande parte da trama toma corpo, o título se explicita nas trilhas escolhidas – geralmente de origem árabe – na decoração “tropical” do club, nos personagens – geralmente descendentes de orientais – , na loja de animais exóticos. O “ser exótico” é aqui, também, o ser além (ex) do que se vê (ótico), o que significa que é preciso mais do que apenas olhar para compreender o que Egoyan pretende. Mais que isso, o “ser exótico” é abordar temas, espaços e fatos que estão além de uma ótica hollywoodiana.

O diretor canadense é, ele mesmo, um exemplo do multiculturalismo: origem armênia, nascido no Egito, e traz esta vivência para dentro da narrativa. A não linearidade é uma característica por ele utilizada, e chega, até mesmo, a confundir-nos um pouco, sobre o por quê do comportamento dos personagens.

A Dançarina do strip-club, Christina, faz uma apresentação “vip” para o mesmo cliente (Francis), todas as noites. Francis leva e traz sua sobrinha diariamente de sua casa, e sempre lhe oferece um pagamento em dinheiro. O dono da loja de animais exóticos (Sr. Pinto) freqüenta diariamente o balé, sempre com um ingresso extra... o que esses personagens pretendem? Ou melhor, o que o diretor espera que pensemos? O que ele pretende?

Até que cenas retrospectivas (flash-back) apareçam, as dúvidas são imanentes. Aos poucos os por quês vão sendo explicados, os comportamentos, fundamentados, e tudo ganha um sentido mais claro. As vidas dos personagens estão interligadas por uma tragédia. O então Dj do strip-club, Eric, e Christina encontraram no campo o corpo sem vida da filha de Francis; antes disso Christina tinha sido Babá da menininha – é provável que a reviravolta em sua vida (de babá à striper) tenha sido causada por essa tragédia; Francis, que fiscaliza a loja de animais exóticos, aproveita-se da situação de ilegalidade da loja para fazer com que Sr. Pinto se aproxime de Christina, quando ele próprio foi afastado de Exótica, por ter tocado na dançarina....enfim tudo começa a se encaixar. Francis, na verdade, busca reviver os momentos com sua filha através da convivência com pessoas próximas a ela.

Além de tecer uma história comovente, Atom Egoyan trata de temáticas como o contrabando, a violência, o homossexualismo, entre outras, que fazem parte da realidade contemporânea. Mostra quais os rumos mais prováveis daqueles oriundos de outros países/culturas, ao chegarem em território Primeiro Mundista. Sutilmente propõe uma redefinição do significado de cultura, contestando limites e fronteiras, julgando o preconceito. Quando um personagem refere-se aos animais da lojinha, Egoyan nos deixa subentendida a condição dos que fazem parte dessa trama: “só por que são exóticos, não significa que não suportam os extremos, afinal lá fora é a selva”.

"O Ódio (Mathieu Kassovitz, França, 1995)" por Guilherme Carréra




A urgência das imagens de “O ódio” (La Haine, França, 1995) remete a um desejo de filmar a tensão do agora. Seus personagens se atraem e se repelem com a mesma facilidade com que se locomovem. O deslocamento constante dos protagonistas é filmado com peculiar interesse. Eles exploram cada esquina, cada rua da cidade. Vão da periferia ao centro. Circulam entre os transeuntes sem se misturar. Carregam consigo os próprios dilemas, não sabendo muito bem como lidar nem como resolvê-los. Tal movimentação resulta em um filme jovem. Com uma montagem editando seqüências que se passam ao longo de um dia, o ritmo da produção é construído com as possibilidades de se narrar aquele contemporâneo de forma instigante. E o ar jovial só contribui para se construir uma obra que parece pulsar, enquanto seus personagens discutem, correm e gritam.

Mathieu Kassovitz tinha 28 anos quando dirigiu este longa-metragem. Vincent Cassel ainda não era considerado um dos grandes nomes de sua geração. A popificação da violência tarantinesca era uma novidade que se alastrava pelo mundo com o lançamento de “Pulp Fiction” e o aval de uma Palma de Ouro. O contexto em que “O ódio” emergiu o coloca como exemplar de um cinema interessado no que está se passando. Essa idéia de gerúndio é bastante notória na produção: o trio principal é acompanhado durante 24 horas, suas ações se sucedem e o levam para situações subseqüentes. O clima um tanto quanto documental deixa claro que Kassovitz quer diagnosticar um tempo histórico específico.

Passado na periferia parisiense, “O ódio” está à margem do centro. A primeira metade do filme se passa nessa espécie de gueto, onde Vinz (Vincent Cassel), Hubert (Hubert Koundé) e Said (Said Taghmaoui) convivem. Um judeu, um negro e um árabe, respectivamente. Os três personificam identidades distintas, co-habitando as franjas da civilização. Na periferia, dançam hip hop, entram e saem de suas casas, fumam maconha e gritam uns com os outros. Gritam muito, como se gritando, pudessem ser ouvidos de alguma forma. Quando se deslocam para o centro da capital francesa, algo soa estranho para o espectador, acostumado com o dia-a-dia dos jovens nas vizinhanças. A Paris filmada parece ser uma outra cidade. O trio não se encaixa naqueles cartões postais.
A fotografia em preto-e-branco contrasta com os cortes bruscos das imagens. O relógio que expõe ao público em que hora do dia se passa o acontecimento retratado, ao mesmo tempo em que cria a cronologia do cotidiano, sinaliza para o imediatismo dos fatos. Tudo acontece muito rápido, em um fluxo de eventos ininterruptos, fazendo de “O ódio” um filme verborrágico por excelência. A todo o tempo alguém está falando, comentando, dialogando. Comunicar-se é deliberadamente um objetivo. O experenciar do dia-a-dia também entra através da TV na casa dos personagens. Em uma seqüência, mãe e filho estão comendo à mesa, enquanto a televisão expõe imagens dos atentados e da violência ocorridos na vizinhança. Devidamente instalados naquele espaço, circulando e convivendo com os populares, ninguém, entretanto, parece estar satisfeito com a condição disponível. “Estou de saco cheio desse lugar, tenho que partir daqui” é o que exterioriza Hubert, cansado da vida que leva e das oportunidades nulas.

Essa tensão entre os que vivem nos subúrbios e os habitantes das redondezas dos Champs Elysées ganha momentos curiosos. Quando uma equipe de reportagem vai até o local onde o trio mora, querendo entrevistá-los sobre um atentado que houve no dia anterior, um deles indaga (gritando, obviamente): a gente tem cara de marginal ou o quê? E em uma situação oposta, quando os três circulam pelo centro de Paris e passam por policiais, notam uma diferença simples, mas que quer dizer muito. “Por aqui eles chamam as pessoas de ‘senhor’”, constatam. O discurso de Kassovitz é paradoxalmente contido. Ele não faz um filme panfletário, muito menos sociológico. “O ódio” está focado no que acontece com Vinz, Hubert e Said, se apropriando do comportamento tipicamente jovem de se deslocar, para a partir daí representar a cidade e suas tensões.

Perto do fim do filme, os jovens entram em uma festa de penetras e se dão mal cantando duas mulheres. Não perdem tempo e tentam assaltar um carro. O plano dá errado e eles fogem da polícia. Depois de perderem o metrô de volta para casa, optam por perambular pelas ruas. Em resposta a um outdoor publicitário que diz “o mundo é seu”, um dos jovens pára diante da frase. Sem titubear, não pensa duas vezes. Ele reescreve-a: “o mundo é nosso”. Esse é o ponto de vista aparente de “O ódio” ao enxergar o mundo pelos olhos da juventude. Essa sede de mundo é o guia. Essa vontade irrefreável de abraçar o universo e tudo que com ele vier.

"O mundo" por Laíse Queiroz



“Veja o mundo sem sair de Beijing” nos dá a deixa inicial de O Mundo, que se passa em um parque temático e traz a história das pessoas que trabalham neste intrigante lugar, e suas relações, tanto com outras pessoas quando com o parque e com o mundo exterior. O parque possui réplicas em tamanho menor de todos os grandes monumentos de diferentes partes do mundo (tem desde a sua própria Torre Eiffel até as Torres Gêmeas, passando pela Grécia).

Logo no começo, o parque recebe estrangeiros para fazerem parte de seu elenco de apresentações, e seus passaportes são imediatamente “interceptados”, para que fiquem sob os cuidados de um responsável, indicando que os performers russos agora estariam presos “no mundo”. O filme mostra o tempo inteiro o quão as pessoas estão presas naquele lugar, e é pontuado por animações que, em geral, trazem imagens de fugas. Seja quando mostra uma menina voando, ou um homem indo embora a cavalo, identificando o forte desejo que as pessoas dali têm de ir embora.

O diretor Jia Zhang-Ke também traz o grande contraste, e encantamento da parte dos chineses, em relação às culturas estrangeiras, seja em relação aos próprios nomes seja em relação a objetos utilizados, e às tentativas de comunicação entre pessoas que não falam a mesma língua. Em uma das cenas aparecem uma chinesa e uma estrangeira tentando se comunicar enquanto lavam as roupas. E elas conseguem. Fato curioso é que essa parte não tem legendas, o que deixa o espectador na mesma situação dos personagens, tentando entender somente por gestos línguas completamente diferentes.

O Mundo mostra o tempo todo o fascínio dos chineses que trabalham no parque temático com o mundo estrangeiro. Musica pop, pôsteres de filmes ocidentais (como Titanic), e a ocidentalização da cultura. Em uma das cenas dois personagens folheam um catálogo de moda estrangeira, e uma delas, que vende itens importados, comenta que pessoas dali têm atração por coisas de fora.

“Dê-nos um dia e lhe mostraremos o mundo”. As relações refletem as principais características do parque temático: A artificiliadade e o alto nível de aprisionamento. Em um dos casais, a menina é completamente sufocada pela desconfiança do namorado, que sempre pergunta onde ela esteve, e, quando ela finalmente toma coragem e tenta terminar o namoro, ele põe fogo no próprio casaco, ainda em seu corpo. Eles acabam casando. A artificialidade nos é mostrada no relacionamento de Tao, a protagonista, com seu namorado, que tenta a todo o momento se aproveitar do sentimento dela. Em uma das cenas lês aparecem discutindo e segundos depois começam a posar para uma espécie de montagem em vídeo do parque, onde aparecem felizes e acenando.

Na relação entre irmãos e amigos mostrada em O Mundo o caráter artificial também surge em vários momentos, e fica claro que o dinheiro vem na frente de qualquer afeto. Quando Irmãzinha, um dos amigos, está quase morrendo, pede pra escrever uma carta. Os amigos e irmãos lêem o que foi escrito e começam a chorar copiosamente. Depois nos é revelado que a carta nada mais continha do que a listagem de todas as suas dívidas.

- É lindo!
- Não tanto pra mim.
- Você esteve aqui um tempo.

Esse diálogo, em que Tao elogia uma construção nos remete a situação em que ela própria se encontra com o dia-a-dia no parque: apesar de todos ali terem uma enorme admiração pelo que vem de fora, no parque, onde eles têm “o mundo”, se sentem presos e perderam a capacidade de se encantar com tudo aquilo. A grande questão do filme talvez seja essa, somada ao fato de que apesar de não satisfazerem seus encantos pelo mundo exterior com a artificialidade do parque, e sentirem-se aprisionados ali, sentem-se satisfeitos em relações tão artificiais quanto, e que as aprisionam ainda mais.