segunda-feira, 22 de junho de 2009

"O gosto da romã" por Paulo Faltay


Dizem que antes de ser morto por oficiais invasores do exército persa, o poeta e trovador armênio Harutyun Sahakya (mais conhecido como Sayat Nova, que significa o “Rei das Canções”) teria proferido as seguintes frases: “Eu nunca vou parar de seguir Jesus” e “Eu irei morrer armênio”. Pode até mentira, mas ilustra bem a mística que se criou em torno do poeta, transformado em símbolo da cultura, música e literatura armênia e mártir do seu povo. Essa mística é revisitada em “A Cor da Romã” (Sergei Paradjanov, 1968), filme que conta, ou melhor, ilustra, a vida e obra de Nova, no que talvez seja a mais inusitada cinebiografia do cinema.

Desde a infância do poeta, a juventude vivida na corte do Rei Heracles II, da Geórgia, a paixão pela irmã do monarca, seus descaminhos, o refúgio num mosteiro até ser morto pelo exército Persa, tudo é mostrado através de poemas seus, a vida de Nova é retratada em composições simbólicas e extratos de seus poemas, que retratam a cultura armênia medieval em um mundo cheio de mistério, símbolos e imagens.

A escolha pela recriação do aspecto místico da Idade Média, contemporâneo da Armênia de Sayat Nova, é estabelecida pelo sequenciamento de Tableaux Vivans. Com esse rigoroso e idiossincrático esquema formal, Parajanov filma artefatos de forte valor simbólico, e de cores vivas, que retratam santos, o poeta em gestos e poses, sua arte e reflexões sobre a vida e a morte como também imagens impregnadas de sensualidade, a cultura armênia com sua música, seus costumes, festivais e paisagens. As sequências são constituídas de traduções da obra lírica do poeta, de maneira não facilmente perceptíveis ao espectador, requerendo um exercício sensorial e de subjetivismo ao apreciador de arte.

Essa urgência de um novo olhar também é perceptível nas críticas sobre o filme. Após rápida busca na internet, tive a sensação de que “A Cor da Romã” seria o filme que recebeu as críticas mais chatas e pretensiosas. A maioria dos textos enumerava as técnicas, detalhando os elementos constitutivos das sequências, esmiuçando seu simbolismo e os aspectos formalistas do diretor. Dada a linguagem incomum da obra de Parajanov, esse detalhamento das sequências visuais parece cair no lugar-comum dos textos que contam a historinha do filme, e pior, esvaziaria, de certa forma, o rico exercício de intuição que é facultado àqueles que assistem ao filme.

Outra leitura equivocada seria aquela que caracteriza o filme como não-narrativo. Embora conte com uma linearidade desconexa, é errôneo não apontar uma narrativa. Pelo contrário, a estrutura básica e mais tradicional das cinebiografias – apresentação de momentos importantes da vida do protagonista – é repetida, a natureza experimental do filme está na sua linguagem, a poética.

E é justamente nas suas ambiguidades que “A Cor da Romã” se revela magnífico. Esse experimentalismo da linguagem, e é significativo que cause estranhamento e espanto mesmo 40 anos depois de ser lançado, o condiciona a uma característica de avant-garde. Porém, a modernidade da obra de Parajanov está, contraditoriamente, assentada em representações medievais É um avant-garde tradicionalista, com um olhar benevolente à volta a um passado lúdico e utópico. Por outro lado, a encenação cinematográfica da cultura da Idade Média, que confere um ar de sofisticação e alta cultura ao filme, é essencialmente brega. Filmar personagens de túnicas e vestimentas bizantinas, tapeçaria e arquitetura medieval, com toda a ideia de repetição e artificialidade, é excessivamente kitsch, dialogando também com um retorno a um paraíso perdido em algum lugar do passado. A imagem que me vem à cabeça é da biblioteca de uma falida família aristocrática cuja cobertura ostenta uma reprodução do teto da Capela Sistina, de Michelangelo. Tem beleza, sofisticação e é breguíssimo. E, talvez por isso, me encante. Para mim, não há uma linha tênue, o sublime e o ridículo caminham concomitantemente.

Por fim, apesar da linguagem poética experimental, cujo hermetismo flerta com a ideia de autonomia da obra de arte, é bastante perceptível porque o filme foi considerado subversivo dentro do contexto histórico-social em que foi lançado. Além da autoafirmação de uma minoria étnico-religiosa, motivações que permanecem obscuras para quem não é familiarizado com a colcha de retalhos que é a geografia social da região do Cáucaso, a opção por contar a vida de Nova através da encenação de sua atormentada alma, do seu interior, e pela ambição de fomentar uma experimentação sensorial de sua obra vai de encontro ao realismo soviético. Longe das representações heróicas dos heróis nacionais, “A Cor da Romã” é libertário por proporcionar uma apreensão da vida do poeta pela suspensão da realidade, através do lúdico, do onírico.

A riqueza visual de "A cor da romã” é construída por uma bem orquestrada coreografia, que convida o espectador a um diálogo, não só o sobre a vida e obra do poeta, mas também sobre a cultura do povo armênio. Sem obedecer claramente a noções dramáticas lógicas, suas composições criam uma atmosfera surrealista, um universo próprio, constituído de sonho e simbolismo. O filme de Paradjanov solicita um exercício de intuição e subjetividade para admirar a beleza de suas imagens, transmitindo sensações, sendo possível experimentar não só a cor da romã, mas também o seu gosto.

"Control" por Eutalita Bezerra da Silva


Pouca conversa, muita música. Assim é Control, um filme que mostra a vida de Ian Curtis, vocalista do Joy Division, banda formada em Manchester, no final dos anos 70.
Contrariando a rotineira vida dos astros do rock, Curtis não era adepto das grandes orgias. Muito cedo casou-se com aquela que seria sua única esposa, Debbie, cujo livro foi o inspirador da produção. Enquanto a banda alçava maiores vôos, Debbie sempre esteve disponível a ajudá-lo, porém, é quando conhece a jornalista Annik que o cantor mostra o furor de sua paixão.

Mesmo tendo uma amante, Ian não queria se divorciar de sua mulher. Em certo momento, quando Debbie diz querer o divórcio, ele a questiona sobre o que o relacionamento entre ele e Annik interfere na vida do casal, deixando clara sua impossibilidade em manter apenas uma das mulheres.

Pautado muito mais nos relacionamentos do cantor que, propriamente, em sua música, Control destoa das cinebiografias comumente conhecidas, como bem prenunciou seu diretor, Anton Corbijn, conhecido no cenário do rock, por produzir videoclipes de bandas do gênero.

O que se percebe é que Corbijn buscou fazer um filme que retomasse algo forte da vida pessoal de Ian, demonstrando que este não era apenas o astro do Joy Division, mas um homem atormentado pela epilepsia, pelos relacionamentos complexos e, antes de tudo, por uma certeza capaz de fazê-lo desistir da vida, ainda aos 23 anos. Porém, a narrativa leva a crer que a morte do líder da banda de punk foi muito mais uma fuga dos problemas enfrentados pela relação com a amante e a esposa, reduzindo o ícone da música a uma dimensão menor que a real.

Filmado em preto e branco, Control carrega o conhecido estilo fotográfico de seu diretor e em nada peca ao mostrar, nesses tons, a Manchester dos anos 70. A narrativa cinzenta é bem recebida – ainda -, na junção com as músicas depressivas e angustiantes cantadas pelos garotos do Joy Division.

Ao delimitar que assuntos da vida de Ian Curtis dariam à narrativa um caráter menos musical-biográfico, o diretor parece ter colocado em segundo plano os anseios dos fãs da banda em assistir a uma Joy Division que foi divisor d’águas na história do rock. Ainda assim, uma bela obra complementada por uma performance estonteante do recém chegado Sam Riley.

"Aconteceu naquela noite" por Lucas de Azevedo Campelo


Frank Capra inaugurou com "Aconteceu naquela noite" um gênero da comédia que revolucionou o cinema dos anos 30, chamado "screwball comedy". Trata-se de comédias cujo a temática é absurda, com diálogos rápidos que mantém uma cadência veloz de piadas ligeiras e desfechos criativos. O campo mórfico criado por esse gênero reflete em muitos filmes atuais, como é o caso brasileiro do diretor Guel Arraes ("O auto da compadecida", "Lisbela e o prisioneiro"), que abusa da velocidade dos diálogos.

O roteiro narra a história de uma moça da alta classe burguesa que foge do pai para se casar com um fútil playboy. Ela acaba se perdendo no meio do caminho e encontra um jornalista que à ajuda para poder ganhar uma história pro seu jornal. Os dois partem numa viagem para Nova York cheia de percalços, dificuldades de todo tipo, e acabam se conhecendo melhor no meio do caminho.

Algo que pula logo aos olhos do espectador é a velocidade que o filme desenvolve, apesar da época em que está inserido. A produção cinematográfica do período se sustentava em sua maioria nas anedotas físicas, características do gênero pastelão, que nasceu no Teatro de Vaudevile e passou ao cinema. O cinema ainda estava se acostumando a extinção do cinema mudo. "Aconteceu naquela noite" vai de encontro a essa corrente e possui falas tendenciosas, sequências ao ar livre (o cinema mudo costumava ter cenários não muito realistas), e uma naturalidade difícil de ver no cinema da época.

Além de uma comédia romântica, o filme demonstra os reflexos dos problemas econômicos enfrentados pelos Estados Unidos naqueles tempos, após a queda da bolsa de valores. Na cena que os protagonistas se cruzam pela primeira vez, há um verdadeiro ecossistema social, que inclui desde uma mãe desesperada passando fome, até o jornalista cínico que é interpretado por Clark Gable, cuja atuação mereceu Oscar, e a menina mimada e egocêntrica que aprende a viver os prazeres da vida de um nicho social diferente, representado, por sua vez, por Claudette Colbert. Cena que mostra isso com clareza é a cena que ela tem que dormir em um monte de palha e comer cenoura pra continuar sua viagem. Para suavizar o tema pesado que há nessa vertigem de valores, Capra se usa da guerra dos sexos como tema, mostrando personagens que tentam a hora toda se mostrarem independentes entre si, de modo que o público de identifique com a trama. Esse tema clichê fez com que o filme na época fosse desacreditado como produção que fosse render, tendo grandes problemas para realizar-se (Como por exemplo, o papel feminino principal, onde Claudette era a última opção de Capra, após de recusa de mais de quatro diferentes atrizes).

Há cenas que ficaram na memória do cinema, como a que a saia de Claudette é mais eficiente para pedir carona que o jogo de polegar de Clark Gable. Ou então a cena final, onde o casal não é exibido e a interpretação do que eles fazem fica a cargo de metáforas como "som das trombetas" e "queda das Muralhas de Jericó". Tudo isso mostra que, apesar de ter um roteiro aparentemente démodé, Capra consegue transformar esse plano de transcendência em imanência, surpreendendo e sofisticando. "Aconteceu naquela noite" não só rende boas risadas, mas dá também uma sensação de bem estar, e uma lição de como uma parte importante do cinema nasceu. Clássico absoluto, vencedor das cinco principais categorias do Oscar (mérito inédito na época e alcançado novamente apenas por "Um estranho no ninho" e "O silêncio dos inocentes"), "Aconteceu naquela noite" é lição de como se fazer uma boa comédia.

"O incômodo e suas variantes" por Davi Lira de Melo


O incômodo gera desconforto. Ânsia. Promove mudanças. Pode revigorar. Algumas vezes é capaz de transformar. Gera um novo ambiente. A maioria das vezes com um certo peso. Com um esfera densa. Igualmente penosa. Pode ser ocasionado por grandes questões. Ou simplesmente surgir do nada. Do pequeno acaso. Em algumas situações é e sempre foi bem visível. Palpável. Observado sem grandes esforços. Ele, por vezes, pode ter sido combatido, em alguns momentos. Mas jamais vencido em definitivo. A mínima presença pós-combate o faz revigorar com força maior. Aí ele torna-se mais profundo, mais desconfortável. Enfadonho. A batalha final exige superação. A vitória prolongada acalma a alma. Os pensamentos tornam-se mais amenos. Menos preocupados. A vitalidade e a essência da vida reaparecem. O motivo do riso se justifica. Isso quando já é sabido o motivo de sua geração. Quando não, torna-se um ímpeto combatê-lo. O seu aparecimento sem permissão é estranho. Pouco claro. Mas igualmente devastador em seus efeitos. Proporcionalmente danoso ao equilíbrio. Extremamente sagaz em seus propósitos.

O grande objetivo do incômodo é gerar conseqüências. Através da inquietação surge um movimento. Movimento de vida. Ou de ressurreição. Existem pessoas que vegetam. Outras sobrevivem. Algumas poucas, de fato, vivem. A vida gera uma sucessão de incômodos. Dúvidas quanto ao seu propósito, função e prerrogativas, inevitavelmente, contribuem para geração de mais inconvenientes.

A própria natureza das pessoas já facilita a incomodação. A eterna busca pelo inatingível, ou pelo, ainda, não alcançável gera desconfortos. Isso, num plano mais amplo. Generalizante.

De forma pragmática a vida é um incômodo, por si só. E para esse tipo de vida. Sempre incômoda. É possível destacar uma série de causas. Problemas explícitos. Com pouco espaço de discordância. Certa limitação de desacordo. Para aqueles que não possuem o mínimo. O incômodo assume outro nível. Eleva-se a outro grau. Corporifica-se. E ganha mais relevo ao infortúnio banal. Egoísta. Para as pessoas carentes de necessidades básicas, de esperança e de prosperidade, a comodidade não pode ganhar força. Ela tem e deve ser combatida. Os incômodos, por mais fortes que sejam, devem suscitar uma disposição por melhoria. Essa é a busca enfrentada pela personagem africana. Dona de vários incômodos. Incomodada por uma vida fadada à miséria.

Destinada à limitação. Da África para a Bélgica ela emigra. É na Europa. Mesmo na parte pobre do velho continente ela vislumbra um sonho de grandeza. Grandeza em seus horizontes. É lá que busca vida. Dignidade. É lá que tenta subsistir. Promover um outro destino para si, e para sua família. Antes repartida em dois continentes.
Emigração e a desagregação familiar são os pontos de partida e o eixo central de “A promessa”. É através do registro de câmera cuidadoso e provocante que os irmãos Dardenne buscam retratar uma realidade hostil. Verdadeira, mais igualmente adversa. É a partir desse registro que o cinema socialmente impactante, desses irmãos, começa a surgir. Sacrifícios, violência psicológica e exploração humana passam pela câmera de uma forma ágil. Incômoda. É num primeiro plano que esse social fica duro. É com ausências de trilhas que a movimentação fica mais épica. O som ambiente deforma. Deforma as obviedades. Transpassa sinceridade no registro.

É com o rito de crescimento de um jovem loiro, belga, que surge a justificativa do título. Inicialmente como mais uma peça de encaixe de um jogo de opressão, o garoto subleva-se quando confrontado por uma situação limite. Uma promessa faz gerar uma série de incômodos. É com um pedido que questionamentos de sua conduta começam a ganhar espaço em sua consciência. Antes pueril e desconectada. É a partir dessa promessa que o belga se une à africana. É desse envolvimento que ambos buscam atacar seus incômodos. Pena carregarem diferentes estorvos

domingo, 21 de junho de 2009

"Dançando no escuro" por Wilson Rocha


ESTE TEXTO TEM SPOILERS!!!!



Lars Von Trier tem um estilo conhecido por todos nós e seus filmes sempre apresentam uma opinião altamente crítica contra o seu alvo preferido, o “American Way Of Life”.
Em Dançando no Escuro, um musical drama, tendo como protagonista principal a exótica e vanguardista cantora Björk, o diretor exercita esta sua psicose mais freqüente depois do seu engajamento na promoção do Dogma 95 (movimento cinematográfico liderado por ele, com a função de se dar uma nova estética – ou se retomar – a arte cinematográfica, ou seja, a criação de um cinema de autor baseado em 10 regras ou ‘votos de castidade’).

Em linhas gerais, o filme, à primeira vista, pode parecer um dramalhão encomendado para transformar qualquer platéia num imenso pudim de lágrimas. Selma, uma imigrante do então existente país comunista da Tchecoslováquia, refugia-se no EUA pretendendo juntar dinheiro suficiente para pagar a cirurgia do seu filho que sofre de uma doença genética e degenerativa da visão que vai cegando progressivamente e da qual a própria Selma é portadora num estágio mais avançado e sem cura. Sentindo-se culpada pela herança nociva passada ao filho, o único presente que pode dar a ambos é de lhe recuperar o seu sentido de visão. Trabalhando arduamente numa fábrica (onde se passa uma cena memorável coreografada com a música dos barulhos feitos pelas máquinas) até ser demitida por erros causados pela sua visão já comprometida, Selma sucumbe ao seu destino. Seu maior erro foi ter confidenciado suas intenções e sua poupança ao policial e senhorio. Após conseguir boa parte do valor necessário para o tratamento do seu filho, ela tem suas economias roubadas por seu vizinho e senhorio e acaba por assassiná-lo, num momento de desespero extremo para reaver as suas economias. Neste momento o espectador se confunde diante do que é certo ou errado e diante das alternativas.

O desfecho de toda a ambientação do filme possui forte poder de comoção, contudo, a idéia de Lars Von Trier vai além do efeito emocional visível. Ele consegue ser mais gutural do que pensamos. O diretor utiliza o elemento musical, gênero cinematográfico tipicamente americano, dentro do filme e, é desta forma, que a personagem principal quase cega percebe o mundo ao redor e tenta sobreviver às suas dificuldades. As lacunas de sua vida são preenchidas pelos seus delírios em que cria coreografias hollywoodianas, dos musicais (gênero do qual é fã absoluta),nos momentos menos favoráveis, pois só assim consegue enfrentar as privações de sua vida. Sua única perspectiva de realização e contento, fora o prazer da música e de estar participando de uma montagem da peça A Noviça Rebelde num teatro local, as sessões de cinema de musicais antigos, é a cura de seu filho.

A angústia de Dançando no Escuro parece não estancar nunca e o fato de fazer referência aos musicais clássicos dá um tom mórbido ao filme, já que o respectivo gênero tem a função tradicional de transmitir leveza e não desespero numa escalada vertiginosa como a que presenciamos.

O grande toque de genialidade de Lars Von Trier é a forma como ele inverte as sensações e utiliza os recursos simples de edição intercalando o eixo narrativo principal com números musicais, que são devaneios da personagem central. À medida que o filme avança os números se tornam apoteoticamente mais devastadores numa alienação de escapismo surreal por vezes fúnebre. A Personagem Selma desfruta de um status idílico a qualquer ser humano. Extravagantemente virtuosa diante dos acontecimentos que se precipitam contra ela, Selma e sua passividade perante os fatos chegam a ser irritantes.

O caráter transcendente parece espumar neste sacrifício em nome da honra de uma promessa que ao espectador parece ser irrelevante, mas que para Selma vale uma existência. Na defesa desta honra ela não hesitara em privar-se de sua própria vida, deixando de ser apenas vítima e tornando-se, também, agente de seus maiores infortúnios. Para provar sua falta de confiança frente ao sistema, Lars Von Trier destaca uma personagem coadjuvante também imigrante, assim como Selma, na personagem de Kathy que é a sua melhor amiga e através dela recebe apoio nos momentos cruciais.
Rodado numa perspectiva de filmagem naturalista, utilizando-se de câmera manual e muitas tomadas externas (num apelo que faz jus ao próprio Manifesto do Dogma 95 e ao cinema escandinavo de origens, herdado de cineastas como Mauritz Stiller, Victor Seajostrom, Carl T. H. Dreyer, Ingmar Bergman), Dançando no Escuro acaba envolvendo o público na história tendo em vista sua ausência de formalismo e seu senso de documentário. A naturalidade dos planos e o filme digital 35 mm utilizados dão ar de filme caseiro e anticomercial.

Destaco duas cenas no filme que merecem menção. A primeira é onde há a transferência do alter ego de Selma para as personagens do policial e de sua esposa, no momento que se segue ao assassinato e ela se vê recebendo conselhos “musicados” para fugir do local do crime. A outra cena de grande intensidade se dá em sua cela no momento em que é levada à execução e a ausência do som paralisa os seus movimentos. A policial feminina (incorporando um traço de humanização do sistema penal americano que mais parece um tribunal de inquisição) estimula que ela perceba o barulho de seus passos e assim ele consegue percorrer o corredor da morte. Neste instante temos a nítida impressão e a certeza de como humano e real é o seu sofrimento. A falta da música em sua forma mais elementar, o som, lhe tira o seu meio mais recorrente de metabolizar o seu sofrimento e assim Selma não consegue reagir.

Dançando no Escuro não cria heróis, mas demonstra fragilidades e expõe o sistema capitalista antropofágico. A crítica aos Estados Unidos é clara. Selma, que foi para o país em busca de uma solução para seu problema, é explorada e acaba tendo um fim trágico. Poucos não irão se revoltar e se comover com a história, que é triste e tem um nível de frieza e distanciamento não visto em produções americanas tão acostumadas a ‘happy endings’. Trier é impiedoso com a personagem central, assim como a América é com os que se aventuram por lá.

"A cor de quê?" por Rafael Monteiro Sotero de Melo


Aqui estou só para ser malvado. Em minha defesa evoco que tudo pode ser revisto dependendo do ponto de vista. Se estou sendo malvado, é porque Sergei Paradjanov começou. Para começar de forma simpática, o diretor me lembrou exatamente tudo aquilo que detesto em poesia: aquele afastamento do real e daquilo que é facilmente compreensível. Claro que quando há um propósito nisto tudo perdoamos rapidamente o poeta. Mas é possível perdoar Paradjanov? Talvez em outra vida, sou rancoroso.

A obra contaria a história de um trovador armênio conhecido como Sayat-Nova, que numa tradução roubada de alguém significaria “o Rei das Canções”. Digo “contaria” porque a narrativa é algo nulo aqui. Na verdade, recuso-me de considerar a obra um filme. Até nos tempos do cinema mudo de Eisenstein, a narrativa sempre foi algo fundamental ao cinema. Sempre é necessário contar/mostrar algo. A cor da Romã até mostra algo, mas não de forma cinematográfica.

É uma obra mais próxima da linguagem do teatro e das apresentações de slide que do cinema. E não falo só para causar choque. A suposta narrativa da vida deste poeta senhor das canções estaria contada em capítulos onde vemos uma seqüência de imagens talvez até signifique algo para os armênios, mas não significam realmente muita coisa para pessoas normais. E digo isso com todo o preconceito do mundo.

Aparentemente é preciso imaginar a narrativa de alguma forma. Pensar que se aquela legenda fala da infância, então aquela criança deve ser o poeta. Se fala de juventude, aquela mulher deve ser o poeta. Se fala de velhice, aquele barbudo é o poeta. Mas realmente fica difícil imaginar porque diabos aparece um grupo de homens comendo a indigesta casca de romã.

Esgotado o ódio, ainda sobra espaço para admirar uma coisa ou duas do filme. Ele tem um dos méritos das apresentações de slides, principalmente aquela que vêm sob a forma de correntes por email: é bonito. As cores são limpas e os ângulos sugerem uma noção estranha de profundidade. Muitas vezes até parece uma pintura em movimento. No entanto, como a beleza de uma paisagem, essas imagens acabam sendo somente belas. Você admira, tenta pensar no que significa, mas logo tem que ver outra imagem bonita que vai te obrigar a pensar novamente e assim por diante. É como seguir numa estrada onde belas vistas vêm e vão sem que realmente signifiquem nada para você.

Assim o espectador não está tentado a sentir algo pelo filme, a não ser cansaço. Beleza pode ser até fundamental, mas quem casaria com uma escultura? Se for surrealista, pior ainda. E no fim continuo sem saber nada sobre o poeta e sobre a Armênia.

"Gris" por Ingrid Maiany


O que importa uma existência? É difícil obter essa resposta, mas algumas existências, mais do que outras, podem render uma boa história. Esse é o caso da de Ian Curtis, vocalista da banda Joy Division, precursora do New Order e grande sucesso nos corridos e sombrios anos 70. Virgínia Woolf, que também teve sua vida retratada no cinema recentemente por Stephen Daldry em As Horas (2002), costumava dizer que “gosta-se muito mais das pessoas quando elas são abatidas por um cerco extraordinário de desgraça do que quando elas triunfam”. Se na vida real pode-se questionar essa posição, no cinema ela é praticamente irrefutável e os grandes dramas costumam figurar entre os maiores sucessos de crítica.

O estreante Anton Corbjin tinha, portanto, uma grande possibilidade de triunfo em mãos quando decidiu filmar a trajetória sombria do jovem inglês. Restava repetir em um longa o primor que marca seu trabalho nos vários videoclipes que dirigiu ao longo da sua carreira, inclusive da própria Joy Division. E foi isso que aconteceu em Control (2007). Seu talento de fotógrafo legou ao filme uma sequência de imagens muito bem pensadas, marcadas pela sobriedade do preto e branco, belos ângulos e uma meticulosa disposição de elementos. A opção pelo tom monocromático é decorrente da atmosfera cinzenta que cobre a cidade de Manchester, grande responsável pela angústia do vocalista, bem como uma referência ao nosso costume de enxergar a banda sempre nessas cores, seja em vídeo, seja em papel.

Com a clara intenção de produzir um filme de autor e não um retrato do rock, Corbjin escreveu seu roteiro baseado no livro Carícias Distantes, da viúva de Curtis, Deborah. Ele acredita que tudo está “vinculado ao homem e à sua forma de agir ao seu entorno” e que o Ian Curtis artista é decorrente do adolescente que escolheu um casamento precoce e sofria de epilepsia. Enveredando por esse caminho, tenta mergulhar na personalidade do biografado, tal fez Oliver Dahan em Piaf – Um Hino ao amor (2007) e Todd Haynes em I’m not there (idem), o segundo ousando na abordagem das múltiplas facetas de Bob Dylan. Entretanto, a fidelidade mantida as palavras de Deborah confere certas limitações ao enredo, que se torna um tanto pragmático, voltado para o fracasso da vida afetiva do cantor, bem como concede pouco espaço aos pilhéricos outros integrantes da Joy Division. Essa última constatação, todavia, é suplantada pela excelente escolha de elenco. Sam Riley parece tomado por inteiro pelo “imo curtisiano”. A agonia de Curtis, sua densidade no olhar, a dança epiléptica, as contorções, tudo foi corretamente interpretado pelo ator, que vai muito além de sua semelhança física com o personagem e chega ao empréstimo de sua voz aos musicais.

O ataque sofrido por Curtis após seu primeiro show em Londres é um momento especial no tempo. Após o diagnóstico da epilepsia, o tédio adolescente é substituído pela turbulência da vida adulta, os remédios roubados para evasão divertida dão lugar aos receitados para combater à doença, e She’s lost control é a canção escolhida para indicar a seção entre duas etapas da vida de Ian, da banda formada após um show de Sex Pistals, e, consequentemente, do filme. Se algum dia tivera sido senhor de sua história, Curtis definitivamente perdera o controle desta, e o caso com Annik surge para selar o acontecimento. Era o fim da vida estável com casamento sólido e trabalho numa agência de empregos, seu relacionamento com Debbie definhava e o Joy Division exigia uma trajetória errante, que unida ao álcool e à depressão, agravou bastante sua moléstia. O matrimônio tem fim com um bilhete; Curtis entra em convulsão em pleno palco. Amor e ódio se misturam, nada é simples. Mais árduo que medir uma existência é entendê-la e, dilacerado e exausto, Ian Curtis comete suicídio após assistir Stroszek, de Werner Herzog, ouvir The Idiot, de Iggy Pop e ter um último acesso de epilepsia.

São da mesma Virgínia Woolf as seguintes palavras: "Quase todo biógrafo, se ele respeita os fatos, pode nos dar bem mais que outro fato para adicionar na nossa coleção. Ele pode nos dar o fato criativo; o fato fértil; o fato que sugere e engendra." É dessa maneira que, retratando uma história, Corbjin nos dá algo completamente novo. Embora fiquemos mudos ao som da Atmosphere tocada ao final, o filme não se deixa passar em silêncio.

"Tudo se Repete" por Wesley da Silva Prado




Padrões. A vida é feita de padrões. Somos seres dependentes de algo que nos estabilize. Ao mesmo tempo, buscamos a novidade, sem nem ao menos desconfiarmos que aquela novidade se tornará mais um padrão. Greenway com o seu “Afogando em Números” (1988) mostra o quanto pode ser destrutiva a força de um padrão.

Ao se iniciar o filme, somos apresentados a uma menina de visual um tanto extravagante, mas de beleza poética, pulando corda enquanto conta estrelas. Quando indagada porque parou em cem, ela responde simplesmente: “Cem são suficientes. Depois de cem tudo se repete”. Percebemos, cedo, que tudo não passará de um jogo de contar até cem, camuflado em meio à teia que envolve os personagens.

Três mulheres de nomes idênticos – Cissie Colpitts, mãe e filhas – afogam seus maridos pela insatisfação no relacionamento, gerada por diferentes motivos: adultério, desinteresse ou a simples constatação de que cometeu um erro. Todas elas apelarão a Madgett para encobrir seus crimes. Ele é um legista dramático, apaixonado por jogos intrincados e cujo filho, Smut, sofre de uma obsessão por contar de tudo, de folhas numa árvore a mortes violentas. Madgett e Smut formam interessante simbiose, onde o primeiro cria simbologias lúdicas de seu microcosmo e o segundo se satisfaz muitíssimo se dedicando a elas.

Dos personagens, conhecemos os padrões que os envolvem através dos bastões do Pegue o Morto – uma antecipação de seu futuro – e das complexas regras do Cricket do Enforcado, uma alegoria do relacionamento entre eles, além de outros jogos, que não mencionarei para não estragar a surpresa o prazer em descobri-los. Além disso, o próprio Greenway nos convida para jogadores de seu filme, ao nos fazer procurar loucamente pelos números (nos objetos e/ou nas pessoas) e pelas referências às pinturas clássicas (como a menina da abertura, ligada diretamente ao “As Meninas” de Velásquez). Outro jogo é o de claro-escuro, também fruto da obsessão de Greenway pela pintura, e muito bem realizada pelo fotógrafo Sacha Vierny, parceiro do diretor em outras obras. As seqüências horizontais, como que passeando a vista por um longo quadro, atesta novamente essa marca de Greenway.

Razões de conflito surgem entre as Cissies e Madgett, pois ele as deseja, porém sofre seguidas rejeições. Esse jogo de Eros e Tânatos, essa sedução, é uma representação dos padrões que criamos: buscamos os mesmos objetivos através de diferentes estratégias (o prazer, a felicidade. Ou seja, Eros, a vida). Acontece que nem sempre os alcançamos e isso nos gera frustração e um dia tudo acaba (Tânatos).

As Colpitts, por sinal, são as criaturas mais complexas do filme. Mesmo com
a frustração no casamento levando-as às raias do assassinato, elas choram pelo marido morto logo em seguida. Arrependimento? Culpa? As três Cissies são basicamente a mesma pessoa, com pouco mais que a idade para diferenciá-las. Inteligentes, manipuladoras, oportunistas. Há uma frase de Cissie I, um jogo de palavras, que talvez responda a questão: “Eu não o matei: ele se afogou. Eu o afoguei”. As coisas simplesmente acontecem, nenhuma culpa, mas algum arrependimento.

Assistir “Afogando em Números” é um exercício de mergulho profundo no universo hermético e ao mesmo tempo convidativo de Greenway. Sair afogado desse filme é altamente recomendável. E para fechar, só uma última pergunta: quanto falta para você terminar de contar até cem?

“A felicidade corrosiva” por Yuri Assis


Certos filmes, não dá vontade de ver até o final. Para quem se acostumou com o desfilar de bonanças no cinema comum, é complicado encarar um pesar mal-sanado. Ao menos, assim me situei defronte 'O medo corrói a alma' (1974), película de Rainer Werner Fassbinder, temendo não haver remendo para tais desafios, que por sinal, até que conseguem bem coexistir.

A questão é que nada ajuda, tudo é bastante aflitivo e quando se pensa que chegou – finalmente! – o meio-termo, a seqüência persegue o início de mais uma querela. Não falo aqui só do enredo não: figurinos, cenários, personagens, trilha sonora: a esperança só se mostra no final, num hospital e à beira da morte.

Mas é bom, em começando, falar primeiro do enredo, história de tons melancólicos e sem pretensões de solucionar coisa alguma; Emmy (Brigitte Mira), viúva, de filhos criados, ao entrar em um bar para se proteger da chuva, conhece Ali (El Hedi ben Salem), imigrante marroquino, negro, muçulmano e jovem, que a convida para dançar. O calvário começa embalado por música árabe, coca-cola e clima de paquera. Nasce, assim, uma relação controvertida e mal-vista, mas que nem por isso se desanima. Ou quem sabe?

Não: a família rejeita, as amigas rejeitam, ambiente todo hostil. E por isso mesmo fogem os dois para outro lugar que é para dar tempo: ao tempo, aos demais. E adivinha? Funciona! E a primeira impressão prevê o final feliz. Qual nada! Fassbinder parece saber que nem só dos outros é feito o inferno: da gente também.
Emmy não sabe fazer cuscuz – isso é um problema. Ali quer cuscuz – isso é outro problema. Danou-se tudo e lá vai Ali buscar seu conforto em Barbara (Barbara Valentin) – atendente do bar, que sabe fazer cuscuz e amor. Parece que a calma dos dois se contrapõe à calma alheia, não sabendo as duas tomarem o mesmo lugar. Mas o adverso põe termo ao adverso: a internação de Ali devido a uma úlcera, acaba por reaproximá-lo de Emmy. A lição de Fassbinder é além de expor a inaceitação; faz sair do alvo da flecha o desentendimento próprio. Como se atestasse dificuldades, no humano, para compreender.

"O medo corrói a alma" pode ser interpretado como uma releitura mais sóbria – e quiçá mais complexa, já que põe em Ali a voz de vários excluídos – de "Tudo o que o céu permite", de Douglas Sirk. Perto daquele, a película de 1955 parece mera brincadeira que beira, mas só de leve, a crítica social à qual Fassbinder concede primeiro plano. Ademais, o kitsch de Sirk dá lugar à realidade esmaecida de Fassbinder: a cenografia porta cores que, para mim, remetem à opacidade de dias nublados.

O curioso foi a forma que Fassbinder, homossexual declarado (e eventualmente parceiro de El Hedi), usou para discursar sobre a discriminação. É como se ele cedesse seu lugar a Emmy para tecer a crítica - talvez um grito em desabafo - aos preconceitos da sociedade do seu tempo.

"A felicidade nem sempre é divertida", sentencia os trinta primeiros segundos do filme; às vezes, é preço alto a pagar ou não, afinal cada um sabe seus desafios e aonde a corda vai arrebentar.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

“Fuga ao som de blues” por Aaron Athias


O filme Down by Law (1986) abre com uma câmara em movimento com imagens preto e branco de subúrbio: casas abandonadas, muros pichados e carros policiais fazendo ronda. No fundo uma música meio jazz, meio blues canta sobre crime e alcoolismo.

O lugar é Nova Orleans, Louisiana, e a música de Tom Waits combina perfeitamente com a atmosfera do lugar. Mas na verdade isso tudo é só o pano de fundo de um filme aparentemente banal com enredo e história bastante simples, mas que retrata brilhantemente os dilemas da convivência forçada, da amizade e do tédio. São esses os três pontos centrais do filme de Jim Jarmusch.

Zack (Tom Waits) é um DJ e trabalha em rádios. Jack (John Lurie) é um cafetão envolvido no submundo do crime. Por motivos que o filme não explicita, Jack e Zack caem ambos em armadilhas e acabam indo à prisão. Os dois se conhecem lá e a partir de então constrói-se uma amizade atípica, não-declarada mas presente, porém marcada por implicâncias e discussões. É aí que entra Roberto (Roberto Benigni) um italiano que na verdade já tinha sido apresentado no filme, mas reaparece. Roberto é a figura excêntrica que quebra com a monotonia da vida carcerária e com o antagonismo presente na relação entre Jack e Zack ao ser preso por homicídio. Com um inglês bastante caricato, ele puxa assuntos do nada, solta frases engraçadas, de tal maneira que acaba envolvendo os tediosos companheiros de cela, Jack e Zack, nas suas conversas, que não o levam muito a sério. Na verdade eles só o levam a sério quando ele revela saber um jeito de fugir. Ao saírem da prisão, e após se perderem algumas vezes, os três encontram uma cabana, e tal não é a surpresa, se não a de encontrarem uma italiana solteira e solitária (Nicoletta Braschi) que se apaixona por Roberto e ele por ela.

Roberto decide então ficar com Nicoletta. Jack e Zack, que continuam andando, encontram uma bifurcação e cada um toma um rumo separado. A separação dos três marca o fim da convivência e também o desfecho do filme.

Diversos aspectos me chamaram bastante atenção em todo o longa. Por exemplo, Jarmusch escanteia propositalmente toda a trama por trás dos acontecimentos que levaram Jack e Zack à prisão justamente para focar no convívio dos dois (posteriormente, três). Na prisão isso se torna ainda mais evidente no momento em que a câmara não deixa de enquadrar a cela por um segundo sequer, e o efeito, a sensação de estarmos presos ali também, é facilmente construído. O tédio é uma constante em toda a obra. Ora presente nas longas pausas, no silêncio, nas conversas enxutas, ora nas expressões faciais dos encarcerados. Diferente de todos os filmes que recordo ter visto com a temática de fuga de prisão esse é o único de que me lembro que não mostra a maneira pela qual os três fugiram. Em uma cena Roberto explica que conhece uma rota de saída, em outra são mostrados os três saindo da cela, e por fim os três já estão no esgoto, praticamente fora da prisão.


Se existe outro ponto em que Jarmusch acertou em cheio foi a de incluir o próprio Tom Waits para a trilha sonora. A música do filme (muito boa por sinal), que se aproxima muito do blues (coincidentemente ou não, gênero típico de Nova Orleans) é primordial, assim como o preto e branco, para criar esse clima de decadência citado anteriormente.

Interessante foi encontrar pontos em comum desse filme com outro de Jarmusch que vi recentemente, Flores Partidas (2005), pontos em comum que na verdade caracterizam o estilo do diretor. A importância que Jim Jarmusch dá sobre os personagens é notadamente maior que a importância do enredo nos dois filmes. Em Flores Partidas o personagem Don Johnston (Bill Murray) parte em uma viagem solitária em busca da mulher que lhe escreveu uma carta revelando a existência de um filho dele. Novamente, assim como em Down by Law, o silêncio é um artifício bastante utilizado e as cenas com a câmara em movimento mostrando a paisagem que vai passando na janela do carro lembram o estilo das cenas do subúrbio de Nova Orleans.

No final da contas, Down by Law é a prova viva de que não é necessário uma grande trama, ou um grande enredo para produzir um bom filme quando se tem em mãos ótimos personagens e ótimos atores para representá-los. Down by Law conseguiu atrair a atenção do início ao fim, sendo leve e cômico mas não por isso besta ou banal.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

"Arca Russa" por Thaís Maioli


Para os que não conhecem um pouco da história russa ou não apresentam interesse por filmes que versem sobre a arte, Arca Russa, provavelmente, será considerado cansativo. Contudo, a produção de Aleksandr Sokúrov, ainda pode despertar a simpatia do expectador, através do mistério em torno dos personagens centrais ou da distinção dos seus figurinos.

Possivelmente, os expectadores questionarão por que em algumas cenas há atores trajando ao estilo do século XXI e outros parecem perdidos em vestes antigas. Por que alguns coadjuvantes conversam com o narrador materializado (Sergei Dontsov), e outros parecem não enxergá-lo ou não acharem estranho a sua presença ali? Ou ainda, por que a voz em off, o primeiro narrador, está perdido no tempo, sem saber as suas origens e o motivo de não ser descoberto pelos transeuntes? Essas foram algumas perguntas que me ocorreram quando assisti à Arca Russa. Dúvidas que me prenderam ao filme, permitindo que ele não fosse, para mim, algo tão maçante.

A princípio tentei encontrar explicações para a voz em off e para o personagem vestido de nobre, justificativas como: eles são fantasmas? Não. Devem ser lembranças, algo semelhante às Memórias póstumas de Brás Cuba, de Machado de Assis. Depois fiquei me perguntando se o possuidor da voz em off, iria aparecer em algum momento do filme, mesmo que fosse no final, para mostrar aos que assistiam que eles tinham perdido algum detalhe, alguma parte importante, para desvendar o mistério.

Além dessas indagações, algumas curiosidades sobre Arca Russa chamaram minha atenção. O cenário, por exemplo, o museu Hermitage, em São Petersburgo, é desbravado pelos narradores, em uma constante discussão sobre a unicidade das obras expostas. O primeiro narrador, cuja única referência é a sua voz, parece defender a originalidade dos feitos russos, sempre contestando as afirmações do segundo narrador, que se identifica como um diplomata do Congresso de Viena em 1815.

Ainda sobre os guias pelo passeio ao museu, achei que os dois apresentam objetivos diferentes. Ao passo que o segundo tentava encontrar respostas sobre a sua própria história e o motivo para estarem no museu, o primeiro estava engajado em desfrutar ao máximo a complexidade da arte que via, apenas em alguns momentos questionando coisas que lhe pareciam estranhas.

Em algumas cenas, por não deter de referências suficientes sobre a história da Rússia, comecei a achar o filme cansativo, embora a entrada de novos personagens na história quebrasse um pouco essa monotonia. Sempre tinha a esperança de que através da interpretação de um novo ator eu iria entender algo. Depois tive o conhecimento de que foram utilizados mais de três mil figurantes para compor o filme. O que explicava em parte a minha constante sensação de movimento no museu. Acho que essa impressão também foi reforçada pela troca de ambientes e pela movimentação da câmera. Descobri depois que foram exploradas 35 salas do Hermitage e que a película foi rodada em um plano-sequência único.

Ter sido gravada em um plano-sequência único, não foi um pioneirismo da Arca Russa, já que isso já havia sido feito por Hitchcock, em Festim Diabólico (1948). Lógico que a experiência de Aleksandr Sokúrov, em Arca Russa foi facilitada por um suporte digital ainda não disponível em 1948, mas pode-se dizer que o plano sequência único não é um recurso muito utilizado nas produções de longa-metragem. O que enaltece o teor de complexidade da obra de Sokúrov.

Distanciando-se das informações mais técnicas, e retornando ao enredo do filme, uma das cenas que mais me impressionaram foi a do baile. Acho que é nela, que os diálogos mais expressivos são alcançados. Embora todas as outras cenas nos dessem pistas sobre os personagens e sobre a movimentação no museu, é na cena do baile que a nostalgia e a insegurança do futuro são reproduzidas mais veladamente. Ao fim da dança, o narrador em off conversa com o diplomata sobre o próximo destino dos dois, e o segundo narrador pergunta para onde? O amigo responde: Adiante. E ele por fim diz: O que encontraremos lá? Com esta cena é sintetizado todo saudosismo construído pela história do filme e explicitado o temor proveniente da incerteza do futuro.

Por fim compreendi que a chatice do inicio foi importante para que eu apreciasse o baile final. Talvez não fosse ela, eu não daria tanta significância ou não me esforçaria para encontrar a simbologia que o filme tentava passar.

"As tormentas de Curtis" por Roberta Cardoso


Antes de começar a escrever este texto, fiquei com medo de fazer uma “resenha biográfica” e então tentei me guiar pelas emoções deixadas por “Control”. Falar de jovens é falar de controle, seja a presença ou a falta dele. O filme retrata o descontrole da vida de Ian Curtis, seja em decorrência da epilepsia, seja através das tentativas de fazer a vida e os seus relacionamentos pessoais terem sentido.

A vida do líder da Joy Division é desenhada por Anton Corbijn de maneira simples, cotidiana e talvez por isso, tão poética. A figura de “qualquer” garoto inglês, suburbano e confuso, acometido por uma doença horrível é maximizada pelo status de frontman de Curtis. Fotógrafo e cineasta holandês, Corbijn é responsável por várias fotos da banda e faz de cada frame uma fotografia digna de exposição. Sam Riley dá vida de maneira esplêndida ao jovem cantor. Alguns momentos do filme são tão sutilmente sincronizados que não sabemos se foram perfeitamente ensaiados ou se partem dos olhos de um espectador que, tão encantado, busca significância nos mínimos atos. Porém é preciso dizer que em alguns momentos o filme minimiza a problemática curtisiana e fazendo associações que chegam a breguice, como “Love will tear us apart” tocando após uma briga entre o casal Curtis.

Fica difícil falar sobre “Control” e não citar “24 Hours Party People”; os dois filmes retratam a mesma época, o mesmo lugar, a mesma juventude influenciada por Bowie, Lou Reed e Sex Pistols, o mesmo Tony Wilson, jornalista e fundador da Factory Records, selo de bandas como Joy Division, New Order, Happy Monkey e até o mesmo Ian Curtis.

Mas talvez a relação maior entre os dois filmes se dê através das diferenças: enquanto “24 Hours...” é colorido, tem como figura central Tony Wilson, e investe num tom assumidamente historicista, uma abordagem mais genérica e relativista, Control carrega um forte contraste numa fotografia em preto e branco, criando o universo intimista da Joy Division, delineado pela personalidade de Ian Curtis.
“Control” é baseado na biografia escrita por Deborah Curtis, esposa de Ian, E isso fica explícito na sensibilidade presente na película. Apesar dos shows, da fama e do amor pela jornalista belga Annik Honoré, é de volta para casa e para Deborah que se criam os conflitos e também a paz de Ian. Pois no subúrbio de Macclesfield, ele não precisava dar mais de si, como querem os outros. Se ‘perde o controle’ sobre seus sentimentos, Deborah faz-se firme no amor por ele e na maternidade. As tormentas que angustiavam Curtis não o derrubam em alto mar, mas o deixam tão perdido ao ponto do rapaz se afogar em seu próprio porto.

Tirando as referências ao final dos anos 70 e início dos 80, a vida de Ian Curtis mostrada por Corbijn parece anacrônica, como se qualquer recurso de medição de duração fosse inútil, tanto que o tempo rodado na tela soa incerto. Talvez pessoas pouco “sensíveis” venham a achar o filme lento, parado, mas para mim, a velocidade em que se passa a história freia antes do entediante, é ideal para nos tocar, nos desligar de nossas vidas e entrar na curta (e arrastada) vida de Ian.

“O meu nome é Ferdinand” por Olivia Souza


Do grupo da Nouvelle vague, Jean-Luc Godard foi o mais militante. Comprometido até o osso com uma filosofia transgressora, procurava em seus filmes romper parâmetros estabelecidos através da experimentação, desconstruindo mitos da dramaturgia hollywoodiana, visando uma linguagem própria, não-linear, abarcando um mundo de referências em seus filmes. De todos eles, Pierrot le Fou – aqui traduzido como O Demônio das Onze Horas, foi um dos mais cultuados. Nele, podemos ver as características de um road-movie, diferente porém, misturando o thriller policial com o melodrama, o documentário e o musical, incluindo até mesmo elementos metalingüísticos.

Ferdinand Griffon (Jean Paul Belmondo) é um produtor de TV desempregado, vivendo uma vida tediosa de aparências com uma esposa chata, que quer a todo custo moldá-lo de acordo com as exigências de sua família. Ele não concorda com isso, mas aceita passivamente, de modo que chega a conclusão de que desconhece a si próprio. E no meio disso tudo surge Marianne Renoir (Anna Karina), um antigo amor que reaparece em sua vida de maneira inesperada. Convidado para uma festa na casa dos sogros, Ferdinand e sua esposa deixam os filhos aos cuidados de Marianne, que coincidentemente era sobrinha de seu cunhado.

Após perder a paciência durante a festa, Ferdinand volta pra casa, encontra Marianne e lhe oferece uma carona. No caminho relembram seu antigo relacionamento e se dão conta de que ainda são apaixonados, um pelo outro. Esse é o ponto de partida da história, o ponto em que Ferdinand buscará romper com a vida medíocre a qual é prisioneiro.

Assim como em Acossado ou Banda à Parte, Pierrot le Fou tem uma história basicamente simples, importando então a maneira de contá-la. Godard costumava dizer que suas histórias serviam apenas como pretexto para que ele pudesse inserir suas próprias idéias. Dessa forma, procurava atacar a ideologia predominante na linguagem cinematográfica, virar do avesso, confundir e questionar.

As referências são utilizadas para serem postas em contradição. Um exemplo muito claro disso no filme é o elemento do melodrama, já bastante conhecido pelo público e exaustivamente utilizado pela indústria norte-americana de cinema. Tentamos enxergar Ferdinand e Marianne como um casal apaixonado, mas Godard consegue desconstruir a idéia de amor romântico. Salvo alguns momentos poéticos, conseguimos vê-los mais como uma dupla de parceiros no crime do que qualquer outra coisa. Ambos são frios, não há juras de amor eterno, para eles tudo é incerto.

O papel do homem e da mulher é totalmente invertido dentro da narrativa. Enquanto Ferdinand passa a maior parte do tempo lendo, filosofando, escrevendo e questionando tudo – inclusive a si mesmo –, é Marianne quem toma a frente em várias situações, racionalizando as possíveis soluções. Seu apartamento está cheio de armas, é ela quem quebra a garrafa na cabeça do tio – pois Ferdinand desiste por falta de coragem. No final das contas, é ela quem o abandona.

Ferdinand é a própria incapacidade do protagonista em ser o herói. O personagem não tem um objetivo estabelecido, apenas se deixando levar pelas conseqüências das situações. Ele não sabe bem quem é e nem a o que veio, e também não toma nenhuma atitude visando uma possível tentativa de reencontro com o seu “eu verdadeiro”. A repetição exaustiva da frase “eu me chamo Ferdinand” (Je m’apelle Ferdinand) toda vez em que é chamado de Pierrot por Marianne é uma mostra desse desencontro consigo mesmo. Ao rejeitar ser chamado de Pierrot, Ferdinand mostra ainda estar preso à vida tediosa de produtor de TV e do casamento infeliz. Apesar disso, quer, sobretudo, que esse Ferdinand produtor de TV – e não o Pierrot louco – assuma os riscos de seu amor por Marianne. Acaba não sendo uma coisa ou outra.

As referências ao cinema, à literatura, à poesia e aos próprios símbolos do capitalismo são características do cinema godardiano e em Pierrot não é diferente. Ao gritar para o frentista “pôr um tigre” em seu carro, nos deparamos com a campanha publicitária dos combustíveis Esso, muito popular na época e que tinha um tigre como mascote. O truque do Gordo e o Magro, utilizado por Marianne para derrubar um dos frentistas, é mais uma dessas referências. Os 50 mil dólares queimados dentro do Peugeot representam um golpe simbólico à hegemonia norte-americana. As citações à Balzac, Baudelaire e Velásquez, inclusive o próprio sobrenome da protagonista (Marianne Renoir).

Fora esses elementos simbólicos há outras referências, muitas delas ligadas aos diferentes gêneros cinematográficos. As cenas de luta lembram as comédias-pastelão; as cômicas e constantes fugas e perseguições ao longo do filme são características do cinema mudo.

A divisão do filme em capítulos com a inserção de intertítulos – narrados em off pelo protagonista – é também característica do cinema mudo. A fragmentação da narrativa buscando uma fuga à linearidade dava uma idéia de unidade ao filme, que culminava com o último capítulo: a morte de Marianne e o suicídio de Ferdinand, fechando a história.

É essa ausência de compromisso com os conceitos pré-estabelecidos do cinema comercial – sua beleza plástica em detrimento à “feiúra” da condição humana – a principal característica dos cineastas da Nouvelle vague. Elementos que, jogados numa narrativa não-linear e fragmentada como a de Godard, acabam enfim nos fazendo questionar paradigmas – modelos sedimentados em nossas mentes – a respeito do “fazer cinematográfico”.

terça-feira, 16 de junho de 2009

“Os desafios da cor da romã” por Rafael Leandro


Romã. Fruta não muito conhecida, de aspecto meio estranho, de um colorido opaco por fora, mas bem viva por dentro. A fruta que dá nome (pelo menos o nome com que a produção foi exportada para a maioria dos países) ao filme “A cor da romã” (“Sayat Nova” 1969), pode, de um modo meio exagerado, dizer alguma coisa sobre essa película bastante audaciosa.

Filmado em 1969 pelo elogiadíssimo, mas nem tão conhecido, Sergei Paradjanov, “A cor da romã” traz a vida de Sayat Nova (1712-1795), poeta e trovador tido como um dos principais nomes da cultura armênia e cujas obras marcam a literatura do século XVIII naquele país. No entanto, não espere uma biografia filmada ou um relato histórico da vida de Nova, o que se vê é a exposição erudita da poesia do mesmo, reunida a uma miscelânea de ritos e aspectos totalmente ligados ao mundo armênio e a região do Cáucaso.

Paradjanov extrapola a fronteira do tradicional e do normal no cinema, sua ousadia chega a assustar. O filme não tem diálogos, as cenas são paradas, plano fixo, trilha sonora plenamente lírica, a composição das imagens está acima de tudo, principalmente do enredo. Da vida até a morte do profeta Sayat Nova é mostrado, de uma forma bem ritualística, extratos de poesias, cânticos e solenidades que são totalmente incomuns e estranhos a qualquer pessoa que não faça parte ou não conheça, pelo menos algo, da cultura daquela região. E está aí outra peça audaciosa da película, seu hermetismo. Para quem não conhece a cultura armênia fica um misto de frustração, confusão e até mesmo desalento, já que são muitos os símbolos mostrados e a falta de conhecimento para tentar destrinchá-los causa um crescente incômodo com o passar da exibição. Além disso, na era da velocidade e dos fortes apelos comunicativos, da fala em excesso, em que vivemos, 72 minutos sem diálogos e com cenas continuamente estáticas / lineares, é quase que inevitável um choque, que ajuda a aumentar o desconforto já citado acima.

Mas tanta simbologia sem uma aparente estrutura para entendê-la, pode gerar outro resultado: o do desprendimento. Depois do impacto inicial, o filme vai incitando à divagação, à contemplação, talvez por isso mesmo tenha sido proibido. O regime soviético temeu (talvez por não entender) o filme e o censurou, tentou o remodelar; Paradjanov chegou a ser punido. O convite, meio que indireto, a um mundo distante do “realismo soviético” então vigente, transformou o filme em instrumento perigoso dentro de uma ditadura.

Grande parte da obra se sustenta na forte estética e na arte da composição das cenas. Os cenários de “A cor da romã” são totalmente referentes aos desenhos medievais; assim como a romã, sua parte “de fora” (o exterior do cenário) é de um amarelo/acinzentado ou mesmo sem cor identificável, contrasta-se assim, com a parte “de dentro” (o núcleo das cenas, o figurino, em vários momentos, do profeta) do fruto que é rubra, viva, forte. A posição dos personagens em cada momento, a imagens que parecem afrescos, a sonoridade que é mais que audível, chega a ser visível, tudo se direciona de modo bem peculiar e especial, como se cada cena fosse um culto, deixando ainda mais única a forma como o filme foi composto.

É claro que não se pode falar de “A cor da romã” sem dizer que ele é cansativo, moroso, estranho. Por outro lado, é injusto não dizer que é um filme que desconcerta, justamente por essa ousadia de ser voltado para si mesmo, de ser preciso assistir mais uma vez para tentar-se uma maior interpretação dos significados (isso, é claro, se não houver desistência ainda na 1ª exibição). Um filme que desafia pelo seu jeito hermético, por sua contrariedade ao “comum”, por sua proposta para lá de exótica.

"Cartão de visitas" por Wesley Prado


Considero-me uma vergonha como cinéfilo. Desconheço boa parte dos filmes ditos clássicos. Diretores, aqueles também clássicos, conheço da maioria apenas o nome, de tão idolatrados pela 7º Arte. Antonioni, Fellini, Truffaut, Bergman, ainda são um mistério para mim. Ao menos Godard já não é mais depois que vi “O Demônio das Onze Horas” (1965).

A abertura semelhante a um jogo de forca me chamou logo a atenção. Era como se Godard estivesse me dizendo “Você vai descobrir este filme aos poucos, com calma, como num jogo de forca”. Resolvi adotar o conselho.

O Pierrot do título original é Ferdinand, um sujeito meio abobalhado, cansado da futilidade da vida. Godard, ao mostrar esse cansaço, cria uma espécie de bizarra publicidade, ironizando o consumismo em vermelho, verde, azul e amarelo. “Para querer algo é preciso estar vivo”, diz Ferdinand. O choque existencialismo x individualismo abre a discussão e conduz a narrativa em diferentes tons ao longo do filme.

Ferdinand se envolve inusitadamente com uma jovem chamada Marianne. Enérgica e dominadora, ela o leva, como uma criança, numa fuga embasada no limite entre normalidade e absurdo. Godard exibe uma realidade-fantasia muito mais marcante que qualquer efeito especial de hoje.

Numa trilha sonora fragmentada, alternando silêncio e música, Ferdinand e Marianne vão levando uma vida de Bonnie e Clyde, fugindo e roubando para sobreviver, e continuar fugindo. Em meio a essa jornada francesa, Godard ainda encontra tempo para falar de Guerra Fria; com o mundo dividido e pessoas cansadas, através da metáfora da lua.

Cansados de tanto fugir, o casal encontra o paraíso, um pedaço esquecido da França que parece desligado das responsabilidades do mundo real. Mas essa vida onírica também cansa. Robinson Crusoé também queria sair de sua ilha. Marianne, a “My Girl Friday” nos cadernos de Ferdinand, não suporta mais tanta calmaria. Calmaria esta que oferece tudo o que Ferdinand precisa. Essa discordância é inevitável, já que ela é a necessidade de emoção, enquanto ele é a lógica da necessidade.

Nessa busca por emoção, Marianne arrasta seu Pierrot., Le Fou (O Louco), cuja maior necessidade é a presença dela em sua vida. Poucas vezes a expressão “a vida é um filme” foi tão bem desenhada no cinema como na relação desse casal, reforçada na brincadeira de Godard com o néon “Cinema Riviera” e “vie” (vida, em francês).

O cansaço abraça essa obra, especialmente na figura de Ferdinand. Aliás, vale dizer que o filme cansa um pouco a quem o assiste por seu ritmo cortado e sua atmosfera fora do real. Se a MTV existisse nos anos 60, Godard seria um dos pais do videoclipe com “O Demônio das Onze Horas”. Não tem como não imaginar uma batida pop na cena em que Marianne corta o ar com uma tesoura. Ainda assim, seria um clipe lento. Paradoxal, não? O excesso de planos abertos, paisagísticos, colabora com a sensação de lentidão. Talvez tudo isso seja culpa das idéias da Nouvelle Vague francesa. De qualquer modo, “O Demônio das Onze Horas” me foi um ótimo cartão de visitas sobre Godard. E quando um filme desperta a curiosidade por outros trabalhos de seu diretor, ainda mais quando se trata de Godard, isso só aumenta seu valor.

domingo, 14 de junho de 2009

"Ian Curtis, mais perto" por Pedro Neves


Quando Ian Curtis cometeu suicídio, aos 23 anos, no dia 18 de maio de 1980, ele entrou para um panteão. Dele fazem parte Buddy Holly, Jimi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin – ídolos do rock que morreram tragicamente jovens. Ou talvez seja mais acertado, visto a personalidade exuberante dos astros acima citados, colocá-lo na companhia de John Keats, Thomas Chatterton e Álvares de Azevedo, poetas românticos de temperamento melancólico, todos mortos antes dos 30.

O cinema tem sido pródigo em fornecer retratos de artistas quando jovens, principalmente quando uma morte fora do tempo vem adicionar uma dose extra de pathos ao relato. Em geral, filmes desse tipo contam com a vantagem da existência de um consenso por parte do público (ou dos fãs, pelo menos) sobre a genialidade do retratado; o destino trágico, já conhecido de antemão pelos espectadores, reveste cada ação com um significado profundo, uma aura sagrada. O mito, enfim, já existe; cabe ao filme alimentar a fome por objetos de culto.

Control, cinebiografia de Ian Curtis dirigida por Anton Corbijn, se não foge das convenções da Legenda Áurea pop, oferece ao mesmo tempo algo distinto: uma visão mais pessoal, íntima e em pequena escala do jovem problemático à frente de uma das bandas mais influentes do mundo. Baseado no livro Touching from a distance, escrito por Deborah Curtis, esposa do músico, o filme, apesar das cenas em clubes noturnos e estúdios de gravação, mantém-se aferrado ao ambiente doméstico.

Control começa como uma história de ennui adolescente. Oprimido pelo tédio suburbano e por uma escola desestimulante, Ian Curtis escapa através de remédios roubados e rock n roll. O vemos em seu quarto, frente a pôsteres de Lou Reed, imitando poses de Bowie. Ele recita Wordsworth de memória. Em sua prateleira, livros de William Borroughs e J.G. Ballard. Essas referências servem uma dupla função: inserem Curtis em uma cultura e uma época e apontam para fontes de inspiração. Mas não parecem meros artifícios para a construção da necessária nostalgia; Ian aparece aqui na condição do fã mais ardoroso, o adolescente deslocado, como tantos outros em tantos lugares e épocas. Se há aqui mitificação, é da adolescência como conceito, e não de Curtis em particular.

Ian conhece Debbie e se apaixona. Ele arranja um trabalho em uma agência de empregos e se casa com a namorada. Sua vida caminha rapidamente para a banalidade de classe média. Mas, paralelamente, outros caminhos estão sendo traçados em sua vida. Inspirado pelo histórico show dos Sex Pistols em Manchester, Curtis, junto com alguns amigos, forma uma banda. Mas não estamos diante do espetáculo da gênese de um grupo lendário; com surpreendente honestidade, Corbijn foca nas dificuldades de se comprometer com uma carreira artística mantendo o emprego diurno para sustentar casa e esposa. O processo de composição das canções é desmistificado: Curtis escreve as letras em um caderninho, rasura, reescreve. O resto da banda não está ali só para fornecer o acompanhamento necessário ao gênio, mas é parte ativa na construção das músicas.

Lentamente, de show em show, Warsaw, como resolveram chamar a banda, começa a chamar atenção do público e de alguns personagens chave, como Tony Wilson, apresentador de um programa de TV e figura central na cena musical que surgia em Manchester. São os primórdios do sucesso. É aí que Control entra numa duplicidade interessante. Sem abandonar a naturalidade e intimidade do relato (em turnê, a banda ainda dirige a própria van e carrega os próprios instrumentos), o filme vai aproximando a narrativa do mito. Não apenas no que há de anedótico na carreira do grupo (agora conhecido como Joy Division), presente no contrato assinado por Wilson com sangue e nos ataques epilépticos do Curtis no palco, mas nas próprias imagens que Corbijn nos apresenta. O diretor foi fotógrafo de muitas bandas inglesas da época. Das poucas fotografias do Joy Divison existentes, algumas das mais emblemáticas são suas. O preto e branco, os longos sobretudos e a paisagem industrial são elementos que fazem parte do imaginário gótico que a banda ajudou a construir. A feiúra dos prédios, a fumaça das fábricas, a miséria dos apartamentos (mais notadamente a decrépita moradia do empresário do grupo), o deprimente ambiente doméstico – à primeira vista doses de realismo, mas características da triste cidade de Manchester já mitificadas pela música de suas bandas. Ao cantar a falta de perspectivas, os grupos de Manchester deram glamour ao desespero – algo que Corbijn aproveita muito bem.

Com o sucesso crescente do Joy Division e o nascimento de uma filha, a pressão sobre Ian começa a pesar demais. O diagnóstico de epilepsia, que requere remédios pesados para manter o controle, abala ainda mais o temperamento frágil do rapaz. Em uma cena particularmente dolorosa, Debbie, depois de descobrir o caso que Ian mantém com uma jornalista, grita com o marido e exige explicações, desculpas, explosões, uma reação qualquer, enfim. Curtis permanece calado: é uma criança assustada, incapaz de lidar com as cobranças da vida adulta.

A fama iminente da banda, com turnê marcada para os Estados Unidos e um segundo disco prestes a ser lançado, traz uma dose considerável de insegurança. Mas talvez por ter sido baseado nas memórias de Debbie Curtis, a cozinha prevalece sobre o palco. Ian Curtis se enforca com as cordas do varal, e partir daí começa o processo de canonização de mais um mártir do rock, adorado nos altares dos quartos adolescentes. Nasce um mito, sua lenda escrita nos evangelhos da MTV e da Rolling Stone. Do jovem epiléptico que escrevia letras de canções depois do expediente no escritório se sabe cada vez menos.

"Prefiro Bob ao tédio" por Ingrid Maiany


Filme de Jim Jarmusch é quadro de Cézanne. Natureza morta de gente, gente comum. O diretor consegue como nenhum outro retratar seres marginalizados prisioneiros da mesmice cotidiana, escravos do tédio que, como diria Cazuza, é o sentimento mais moderno que existe.

Interstício da nouvelle vague que prima pelo insólito do estilo americano de vida, o discípulo de Nicholay Ray conseguiu com o aclamado “Estranhos no paraíso” uma posição de destaque no cinema da década de 80. Posição essa que se firmou com o posterior “Down By Law”, de 1986. O longa-metragem em preto e branco foi fotografado por Robby Müller de maneira peculiarmente sensível. Mergulhamos na monocromia e, tal a personagem que está sentada na cadeira de balanço na abertura, somos convidados a ver “como a luz muda”, perpassando níveis extremamente brandos ou assaz intensos, de acordo com as minúcias de cada cena.

É ao som da trilha sonora elaborada por John Lurie e Tom Waits – união de jazz e rock à percussão de Naná Vasconcelos – que conhecemos os dois primeiros protagonistas, interpretados pelos próprios músicos. Jack e Zack, além da similaridade de nomes, possuem uma analogia de vidas. Ambos são a escória em superfície da grande panela americana, entregues à passividade e diluindo-se no ar. O terceiro ingrediente é Roberto, vivido por Roberto Benigni, um italiano atrapalhado que possui parco domínio da língua inglesa e carrega consigo um caderninho com expressões e anedotas.

Vítimas de sua inércia, Zack e Jack acabam presos ante uma tentativa frustrada de conseguir dinheiro fácil. Uma vez juntos, partilham o marasmo de uma existência limitada e odeiam-se mutuamente ao notarem-se reflexos um do outro, espelhos de sua falta de perspectiva. A passagem dos dias, ilustrada por Jarmusch através de planos longos e estáticos, só é percebida pela quantidade crescente de traços de giz na parede. Então Bob, detido por cometer um assassinato no melhor estilo comédia pastelão, une-se aos dois, conferindo beleza a, até nesse momento, triste história. Dessa maneira, o giz vira janela e, por trás de um jocoso trocadilho, liberdade toma nome de sorvete.

Numa metáfora para a fuga da apatia proporcionada pelo cinema, o estrangeiro anuncia ter descoberto, inspirado em um filme, uma maneira de escapar da prisão. Nesse ponto encontramos uma incongruência e o cineasta que defende o valor dos momentos aparentemente sem importância, chegando mesmo a filmar uma película que retrata o período decorrido nas viagens de taxi (Uma noite sobre a Terra, 1991), despreza o processo de fuga e nos mostra o trio já fora da cadeia.

Todavia, os muros não estavam restritos ao presídio e, mesmo lá fora, a idéia de caos permanece. Os personagens vagam em círculos até encontrarem uma velha cabana de notável semelhança à cela que antes ocupavam. Precisam vencer sua inaptidão de transpor os problemas, e Bob se mostra gradualmente o instrumento necessário para essa vitória. É o personagem de Benigni que vai em busca de comida enquanto os outros dois estão entregues ao desânimo; uma vez sozinhos, Jack e Zack parecem incapazes de sobreviver. São devido a Bob todas as ocasiões contentes do filme, e apenas com ele os personagens ganham alguma atividade.

Finalmente, os três encontram a estrada e, mais adiante, uma hospedaria. Mais uma vez, os quase homônimos não se movem e é Bob quem tem coragem de entrar e pedir ajuda. Cansados de esperar a volta do amigo e exaustos pela fome e pelo frio, resolvem verificar o que se passa dentro da pousada. Deparam-se com Bob sentado à mesa com uma moça, comendo e gargalhando. Trata-se de Nicoletta, uma italiana como ele, papel de Nicoletta Braschi, esposa de Benigni na vida real. E, assim como em um conto de fadas, o casal imigrante se apaixona e Bob ganha um lugar para viver.

Zack e Jack parecem, enfim, terem percebido a necessidade de movimentar-se e recusam a oferta de Bob para permanecerem com ele e Nicoletta. Buscando distanciar-se daquilo que sabiam um no outro e que tanto os incomodava, decidem seguir caminhos distintos. A separação importada na estrada bifurcada não é outra coisa senão a tão sonhada liberdade. Mesmo sem certeza de para onde iriam, os dois foram. E ir já era um grande começo.

sábado, 13 de junho de 2009

"As sobrancelhas de Godard" por Paulo Faltay




A história não segue uma linearidade, é descontínua, formada por interrupções e curvas abruptas. Em meio à fuga empreendida por Ferdinand e Marianne em “Pierrot, le Fou”, após ser provocado pela personagem de Anna Karina, Ferdinand gira a direção do carro, escapando da estrada e conduzindo o automóvel ao encontro das águas de um rio. Para Godard, a máxima marxista vai além da História; a vida, o cinema e a sua narrativa também não obedecem a uma arbitrariedade linear, são estruturados por interrupções. Afinal, no próprio tema da evasão, que dá início ao filme e é presença recorrente nos filmes do diretor, como Acossado, Viver a Vida e Alphaville, está contida a ideia de abandono a fórmulas pré-concebidas de se viver/contar uma história.

Para Robert Stam, o uso de interrupções na narrativa é um dos mecanismos que ele conceitua como anti-ilusionistas. Com fundamentação teórica no teatro de Brecht, que inseria em suas peças elementos que explicitavam o próprio processo de produção das apresentações, essas técnicas seriam usadas para quebrar o espetáculo e a suspensão fantasiosa da realidade, e retirar o espectador da confortável posição de receptor. Esse efeito de distanciamento, chamado de Verfremdungseffekt pelo encenador, tornaria evidente à plateia que ela está diante de uma obra de ficção, quebrando, assim, a acomodação criada por uma ilusão diegética, e terminaria por provocar um exercício reflexivo sobre a narrativa.

Não por acaso, as obras de Godard são dos objetos de estudo mais caros ao crítico. E Pierrot, que Stam vai caracterizar como uma “suma das artes”, por suas inúmeras referências a diversas manifestações artísticas, também pode ser definido como suma dos artifícios autorreflexivos e anti-ilusionista no cinema. Logo no começo, é citado o pintor espanhol Diego Velázquez, conhecido por suas pinturas carregadas de autorreferência e jogos de espelho. A citação é, na verdade, um aviso do que viria a seguir.

Entre as diversas quebras da narrativa no filme, pode-se destacar a divisão não-cronológica dos capítulos que dividem o filme, a descontínua sequência de fuga do apartamento de Marianne, com planos fragmentados e temporalidade contraditória, além das autorreferências explícitas. Em uma passagem do filme, após Marianne sugerir que eles se divirtam em um hotel de classe, Belmondo vira a cabeça, se dirige à câmera e diz: “Tudo no que ela pensa é diversão”. Questionado por uma confusa Marianne, desejando saber com quem ele falava, o personagem de Belmondo responde: “a plateia”. Em outro momento, para confundir a polícia, o casal forja um acidente, no que Marianne pondera: “Tem quem parecer real. Isso não é um filme”. Por fim, em uma sequência canônica do cinema, Anna Karina chega a posicionar a tesoura em frente à câmera, em alusão clara ao corte de cena.

No entanto, mesmo reconhecendo, e louvando, o caráter reflexivo e as questões apresentadas em Pierrot, permaneço com uma inquietação em relação ao filme. E a resposta para a sensação pode ser encontrada no início da produção. Em meio à atmosfera superficial de uma reunião burguesa em que é intimado pela mulher a comparecer, Ferdinand se encontra, em mais um artifício autorreferente, com Samuel Füller. Ao ser perguntado sobre o que seria o cinema, o diretor responde: “um filme é um campo de batalha: amor, ódio, violência, ação, morte, - em uma palavra, emoção”! Meu incômodo é justamente esse: Pierrot não me desperta nenhum pequeno indício de emoção.

É tudo excessivo, afetado em demasia, e acaba por se revelar superficial. A irritante característica totalizante está presente na brincadeira com os gêneros cinematográficos, na abordagem política e nas referências artísticas. No misto de homenagem com paródia crítica, Pierrot desloca-se em praticamente todos os gêneros: de filme de gangster, road movie, sozinhos-em-uma-ilha-deserta, a uma pitada de comédia romântica com cenas musicais, que até me surpreende o fato de Marianne e Ferdinand não terem uma cena de encontro com Alpha 60. As abordagens mais políticas – a mediocridade da burguesia, os aviões com napalm da guerra do Vietnã, a ridicularização de signos capitalistas, a situação da política francesa, se mostram, na verdade, de pouca profundidade.

E tudo isso me soa ainda mais estéril na caracterização de “suma das artes”. As inúmeras citações – Jack London, Velázquez, Robert Browning, Balzac, Baudelaire, Picasso, histórias em quadrinhos – não parecem dizer nada, soando vazias e fruto de uma egotrip do repertório artístico do diretor. Infelizmente, não consigo fugir do lugar-comum de que esse exercício self-conscious não está a serviço de uma expressão puramente egóica. Essa sensação é ainda maior quando ele próprio se autorreferencia: no momento em que Jean Seberg aparece na tela do filme-dentro-do-filme, nos remetendo imediatamente a Acossado. E nesta brincadeira extremamente nerd, prefiro muito mais encontrar as inúmeras referências à Odisséia de Homero em Lost. É mais inusitado, e, por isso mesmo, mais divertido.

Pierrot se revela para mim nessa dualidade. Por um lado, ele se apresenta como uma obra rica em elementos que marcaram, mudaram e revigoraram o cinema e que permitem pensar o fazer cinematográfico. Por outro, é um filme que pouco me toca, chego mesmo a ter certa repulsa pelos seus excessos. Entretanto, assim como o diretor, também gosto de uma citação. Recorro então a Charles Bukowski.

Em seu livro Hollywood, coincidentemente marcado pela metalinguagem e autorreferência, o escritor relata o encontro do seu alter-ego com um certo cineasta francês, chamado Jon-Luc Modard. Da conversa, Bukowski conta: Jon-Luc continuava falando. Mostrava se dark e bancava o gênio. Talvez fosse um gênio. Eu não queria ficar ressentido com isso. Mas já tinham me haviam empurrado gênios durante todo o tempo de escola: Shakespeare, Tolstói, Ibsen, G.B. Shaw, Checov, todos esses chatos. (...) A bebida jorrava e Jon-Luc continuava falando. Tenho certeza que disse muitas coisas espantosas. Eu me concentrava apenas nas sobrancelhas dele...”.

Enxergo Godard dessa maneira também. Tenho convicção de que o diretor e seus filmes versam sobre coisas fantásticas e incitam discussões ricas, mas prendo a minha atenção apenas nas suas sobrancelhas. E elas são, no meu caso, a dança de Bande à Part, a adorável canastrice do rosto de Belmondo (e o inseparável cigarro no canto da boca) e, com destaque especial, a melancólica e sublime dança solitária de Nana em Viver a Vida. É só nisso que consigo me concentrar.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

"Cinema também é poesia" por Pedro Neves




Já nos primórdios do cinema seus defensores afirmavam que ele seria a síntese de todas as artes. Mesmo sem som e sem cores, já existia ali o potencial para ser pintura, literatura, teatro, música e poesia. Talvez por ser o cinema um meio tão aberto a diferentes experimentações visuais e auditivas filmes sobre artistas são tão comuns, a ponto de constituírem praticamente um subgênero da cinebiografia. Um subgênero, paradoxalmente, dos mais problemáticos.

Acontece que o cinema se estabeleceu como uma arte essencialmente narrativa. Artistas muitas vezes são figuras excêntricas e apaixonadas cujas vidas são cheias de drama (que o cinema ajudou e muito a criar essa percepção é um assunto que fica para outra resenha). Biografias de artistas costumam explorar as alegrias e sofrimentos (muitos sofrimentos) desses gênios incompreendidos, mas deixam de lado o principal motivo do interesse pelo biografado: a sua arte. Um aficionado a pintura que vá assistir, por exemplo, a Basquiat (Julian Schnabel, 1996) vai encontrar uma história comovente e um comentário interessante sobre a cena artística na Nova York dos anos 80, mas se sentirá frustrado se o que procura é a essência raivosa e explosiva dos grafites de Jean-Michel.

É por quebrar essa tendência que A Cor da Romã é um filme tão bem sucedido. Chamá-lo de cinebiografia é quase um disparate. Apesar de seguir em ordem cronológica todas as etapas da vida do poeta armênio Sayat-Nova, a película não se preocupa em fornecer dados historicamente corretos sobre o trovador. Procura habitar seu universo. E o universo de Sayat-Nova era a Armênia do século XVIII, um país disputado por otomanos e persas e atrasado em relação ao resto da Europa. A Cor da Romã recria o modo de vida medieval: os ritos religiosos e os mosteiros, a corte e seus jogos, a fabricação da renda e o tingimento dos tecidos. O folclore da região se faz presente nas canções tradicionais e na encenação dos rituais e manifestações artísticas, nas vestimentas típicas e nas casas de banho.

Mais impressionante é o profundo entendimento das formas de percepção da Idade Média. Inspirado em iluminuras, o diretor Sergei Paradjanov aboliu a perspectiva do seu filme. As cenas, planos estáticos compostos como tableaux vivants, são em geral filmadas diante de paredes ou tapeçarias, emulando o fundo neutro da iconografia bizantina. Nas cenas ao ar livre, a grama funciona como fundo pintado. Quando existe a necessidade de por em um quadro vários grupos de personagens executando atividades simultâneas, esses grupos são dispostos em diferentes níveis, como em uma arquibancada. Alguns planos são filmados de um ponto mais alto, mas de alguma forma Paradjanov consegue dar aos objetos (uma cama, por exemplo) a aparência achatada e sem ilusão de profundidade das pinturas medievais. Os atores assumem posições hieráticas e movem-se apenas o suficiente para descrever a ação desejada. As cores, finalmente, são intensas e sólidas, como as ilustrações de um manuscrito.

O que A Cor da Romã tem de mais admirável, entretanto, é a capacidade de não apenas falar de poesia, mas ser ele mesmo um poema. O filme, que não tem diálogos, se utiliza de vários recursos da linguagem poética. O ritmo é ditado pelos planos longos e estáticos separados por intertítulos que elucidam a narrativa ou citam canções do bardo. Metáforas abundam: a concha como o seio feminino; o verter líquido de um recipiente para outro, símbolo da temperança, aqui funcionando como a corte entre o poeta e a princesa. Imagens alegóricas perdem o significado para um espectador distante de uma cultura e de uma época, mas conservam intactos a beleza plástica e o poder evocativo, o sentimento místico. As rimas visuais estão na repetição de certos motivos: o livro cujas folhas viram com o vento, as romãs que mancham (tingem) o tecido, os galos que sangram e se debatem. E o vermelho, que escorre como suco, tinta e sangue em vários momentos. Nem tudo em A Cor da Romã pode ser compreendido em termos puramente racionais. Como em toda arte, é necessário intuição para apreciá-lo. Mas a carga de estímulos sensoriais e o papel essencial que estes assumem na leitura do filme são característicos mais do gênero lírico que da prosa.

O que A Cor da Romã alcança, finalmente, é uma raridade: partir de elementos cinematográficos (mise-en-scène, trilha sonora, fotografia, figurino, roteiro, enfim, tudo o que compõe um filme) para encontrar outra forma de arte. Biografar a vida de um artista através de sua obra. Fazer do cinema, verdadeiramente, poesia.

"Estranhamente particular" por Felipe Lima


Jim Jarmusch é um cara estranho E gente estranha gosta de outras pessoas estranhas. Os três protagonistas de Down By Law (EUA, 1986) são excêntricos. Cada um ao seu modo. Por possuírem todos imperfeições notórias, acabaram por se afeiçoar. Conhecer o antes, o durante e o depois dessa amizade fora dos padrões é a premissa do filme, terceiro do diretor e obra seguinte a Stranger Than Paradise, justamente aquela que alavancou Jarmusch para o pedestal de ícone cult-independente-alternativo-outlaw-outside-incomum dos Estados Unidos, no começo da década de 80. Pequena odisséia em preto-e-branco, fotografada por Roby Muller de Paris, Texas, de Win Wenders e com trilha sonora dos músicos que contracenam na película.

Jarmusch declarou certa vez que o que “quer fazer é fazer filmes que contem histórias, mas de alguma maneira de um jeito novo, não de uma forma premeditada, não do jeito normal e manipulador”. Centrado nas pequenas odisséias pessoais de cada um dos personagens, somos apresentados um a um ao três protagonistas: primeiro a Jack (o jazzista John Lurie) e em seguida a Zack (o cantor Tom Waits, que, ora que surpresa, é um tanto quanto estranho). Envolvidos em situações inescapáveis, terminam presos e em uma mesa cela, que não tarda a ficar mais cheia com a presença de Roberto (Roberto Benigni).

Diálogos aparentemente sem sentido, discussões sem evolução e implicâncias infantis e gratuitas marcam o convívio dos três. É justamente ao mostrar esse período que o filme atinge seu melhor momento. O que pode parecer desinteressante foi a forma fora dos padrões que Jarmusch encontrou para narrar o início da amizade entre os personagens. Se no começo, temos uma amostra das inconstâncias emocionais e vacilos racionais dos protagonistas, entendemos porque se tornaram próximos quando postos juntos em um cubículo na Orleans Parish Prison, complexo penitenciário que também já foi título de canção de outro famoso outlaw norteamericano, Johnny Cash.

Pena que o filme se torne deveras claudicante e sem sentido em seu final. Uma sucessão de outros acontecimentos incomuns, no entanto inflado de fantasias que terminam por desnivelar-se em qualidade com a primeira metade do longa. Até mesmo Tom Waits, que se com sua voz gutural e feições sombriamente enrugadas já chama atenção, consegue ser ainda mais esquisito e sedutor com seu Zack consegue escapar do caminhão descarrilado que é o fim do longa. O pior, é que essa era a verdadeira intenção do filme, ser parte pesadelo, parte conto de fadas.

Nada, porém, que venha a desmerecer a obra, classificada como algo entre o noir, o espírito beatnik renovado e a comédia, todas misturadas em uma embalagem alternativa. Música de primeira qualidade, diálogos inteligentes, posturas hypes, jeitão de descolado. Um filho autêntico filho de Jim Jarmusch, dono de particularidades estranhas, mas ainda assim particularidades. O que é um grande feito em meio à chatice da normalidade vigente no cinema mainstream.