quarta-feira, 17 de junho de 2009

“O meu nome é Ferdinand” por Olivia Souza


Do grupo da Nouvelle vague, Jean-Luc Godard foi o mais militante. Comprometido até o osso com uma filosofia transgressora, procurava em seus filmes romper parâmetros estabelecidos através da experimentação, desconstruindo mitos da dramaturgia hollywoodiana, visando uma linguagem própria, não-linear, abarcando um mundo de referências em seus filmes. De todos eles, Pierrot le Fou – aqui traduzido como O Demônio das Onze Horas, foi um dos mais cultuados. Nele, podemos ver as características de um road-movie, diferente porém, misturando o thriller policial com o melodrama, o documentário e o musical, incluindo até mesmo elementos metalingüísticos.

Ferdinand Griffon (Jean Paul Belmondo) é um produtor de TV desempregado, vivendo uma vida tediosa de aparências com uma esposa chata, que quer a todo custo moldá-lo de acordo com as exigências de sua família. Ele não concorda com isso, mas aceita passivamente, de modo que chega a conclusão de que desconhece a si próprio. E no meio disso tudo surge Marianne Renoir (Anna Karina), um antigo amor que reaparece em sua vida de maneira inesperada. Convidado para uma festa na casa dos sogros, Ferdinand e sua esposa deixam os filhos aos cuidados de Marianne, que coincidentemente era sobrinha de seu cunhado.

Após perder a paciência durante a festa, Ferdinand volta pra casa, encontra Marianne e lhe oferece uma carona. No caminho relembram seu antigo relacionamento e se dão conta de que ainda são apaixonados, um pelo outro. Esse é o ponto de partida da história, o ponto em que Ferdinand buscará romper com a vida medíocre a qual é prisioneiro.

Assim como em Acossado ou Banda à Parte, Pierrot le Fou tem uma história basicamente simples, importando então a maneira de contá-la. Godard costumava dizer que suas histórias serviam apenas como pretexto para que ele pudesse inserir suas próprias idéias. Dessa forma, procurava atacar a ideologia predominante na linguagem cinematográfica, virar do avesso, confundir e questionar.

As referências são utilizadas para serem postas em contradição. Um exemplo muito claro disso no filme é o elemento do melodrama, já bastante conhecido pelo público e exaustivamente utilizado pela indústria norte-americana de cinema. Tentamos enxergar Ferdinand e Marianne como um casal apaixonado, mas Godard consegue desconstruir a idéia de amor romântico. Salvo alguns momentos poéticos, conseguimos vê-los mais como uma dupla de parceiros no crime do que qualquer outra coisa. Ambos são frios, não há juras de amor eterno, para eles tudo é incerto.

O papel do homem e da mulher é totalmente invertido dentro da narrativa. Enquanto Ferdinand passa a maior parte do tempo lendo, filosofando, escrevendo e questionando tudo – inclusive a si mesmo –, é Marianne quem toma a frente em várias situações, racionalizando as possíveis soluções. Seu apartamento está cheio de armas, é ela quem quebra a garrafa na cabeça do tio – pois Ferdinand desiste por falta de coragem. No final das contas, é ela quem o abandona.

Ferdinand é a própria incapacidade do protagonista em ser o herói. O personagem não tem um objetivo estabelecido, apenas se deixando levar pelas conseqüências das situações. Ele não sabe bem quem é e nem a o que veio, e também não toma nenhuma atitude visando uma possível tentativa de reencontro com o seu “eu verdadeiro”. A repetição exaustiva da frase “eu me chamo Ferdinand” (Je m’apelle Ferdinand) toda vez em que é chamado de Pierrot por Marianne é uma mostra desse desencontro consigo mesmo. Ao rejeitar ser chamado de Pierrot, Ferdinand mostra ainda estar preso à vida tediosa de produtor de TV e do casamento infeliz. Apesar disso, quer, sobretudo, que esse Ferdinand produtor de TV – e não o Pierrot louco – assuma os riscos de seu amor por Marianne. Acaba não sendo uma coisa ou outra.

As referências ao cinema, à literatura, à poesia e aos próprios símbolos do capitalismo são características do cinema godardiano e em Pierrot não é diferente. Ao gritar para o frentista “pôr um tigre” em seu carro, nos deparamos com a campanha publicitária dos combustíveis Esso, muito popular na época e que tinha um tigre como mascote. O truque do Gordo e o Magro, utilizado por Marianne para derrubar um dos frentistas, é mais uma dessas referências. Os 50 mil dólares queimados dentro do Peugeot representam um golpe simbólico à hegemonia norte-americana. As citações à Balzac, Baudelaire e Velásquez, inclusive o próprio sobrenome da protagonista (Marianne Renoir).

Fora esses elementos simbólicos há outras referências, muitas delas ligadas aos diferentes gêneros cinematográficos. As cenas de luta lembram as comédias-pastelão; as cômicas e constantes fugas e perseguições ao longo do filme são características do cinema mudo.

A divisão do filme em capítulos com a inserção de intertítulos – narrados em off pelo protagonista – é também característica do cinema mudo. A fragmentação da narrativa buscando uma fuga à linearidade dava uma idéia de unidade ao filme, que culminava com o último capítulo: a morte de Marianne e o suicídio de Ferdinand, fechando a história.

É essa ausência de compromisso com os conceitos pré-estabelecidos do cinema comercial – sua beleza plástica em detrimento à “feiúra” da condição humana – a principal característica dos cineastas da Nouvelle vague. Elementos que, jogados numa narrativa não-linear e fragmentada como a de Godard, acabam enfim nos fazendo questionar paradigmas – modelos sedimentados em nossas mentes – a respeito do “fazer cinematográfico”.

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