sexta-feira, 2 de julho de 2010

"A companhia dos lobos (The company of Wolves)", por Ramon Dias


“Um lobo pode ser mais do que aparenta. Ele usa muitos disfarces. (...) Os piores lobos são peludos por dentro. E quando eles te mordem, eles te arrastam para o inferno”


Uma das mais famosas fábulas infantis é subvertida e acrescida de muito simbolismo e sensualidade nesse clássico do cinema de fantasia. A companhia dos lobos, filme dirigido por Neil Jordan em 1984, faz uma espécie de paráfrase do conto de Chapeuzinho Vermelho, aqui revisto como uma alegoria ao amadurecimento feminino, a transição da puberdade para a vida adulta e a descoberta da sexualidade, além de flertar com o gênero de filmes de terror e com o mito do lobisomem.


Adaptado do romance de Angela Carter, A companhia dos lobos nos coloca dentro do sonho de Rosaleen (a esquecida Sarah Patterson), uma típica adolescente prestes a entrar no mundo adulto, que usa às escondidas a maquiagem da irmã mais velha, divide seu quarto com diversas bonecas e bichos de pelúcia e lê histórias de terror. Em seu sonho, Rosaleen acaba de perder sua irmã (Georgia Slowe), vítima dos lobos que habitam a floresta próxima a pequena vila em que vive. Após a tragédia, a bela jovem passa seus dias entre os afazeres cotidianos, as incontáveis investidas de um garoto narigudo e ocasionais visitas à sua avó (Angela Lansbury). A cada visita, sua avó lhe conta histórias sobre lobos e homens cujas sobrancelhas se unem, enquanto confecciona uma capa de lã vermelha. Até que um dia, a caminho da casa da avó para levar-lhe uma cesta de comida, Rosaleen encontra um jovem cavalheiro misterioso e de sobrancelhas ligadas (Micha Bergese), e que aposta que consegue chegar ao destino antes da moça, pois ele segue um caminho mais curto enquanto ela recusa-se a sair da estrada. Os que conhecem a fábula já fazem uma idéia do que acontecerá em seguida. No entanto, o final guarda uma maliciosa surpresa.

Todo o filme é permeado por uma atmosfera onírica. O cenário, exagerado e de cores fortes, é visivelmente artificial, o que acentua a impressão de irrealidade. Até as poucas cenas que se passam fora do mundo dos sonhos são dotadas de um certo misticismo, como o casarão de estilo vitoriano onde mora Rosaleen ou os enigmáticos bonecos em seu quarto. A trilha sonora, misto do saudoso sintetizador com tons renascentistas, também ajuda na construção de um ambiente híbrido entre realidade e imaginação, que apesar de inicialmente definidas, essa separação torna-se cada vez mais nebulosa, ao ponto de fundirem-se em uma só.

São inúmeras as referências a passagem feminina da infância à maturidade e suas descobertas, a começar pela própria conotação dada à história dos Grimm. Chapeuzinho Vermelho (quer dizer, Rosaleen) é na verdade uma bela adolescente que começa a despertar sua curiosidade em relação ao sexo oposto, assim como os questionamentos acerca da sexualidade. Sua avó passa então a instruí-la, ao seu modo conservador, sobre os homens e os perigos que eles representam. As histórias contadas por ela são ricas em metáforas e alusões, todas possuindo um rígido sentido moral, assim como a fábula a que o filme se refere. Há sempre a idéia do caminho certo a seguir, do qual desviar-se levará a perdição (com toda a ambigüidade que o termo represente), assim como da semelhança entre homens e lobos. Os homens são feras ardilosas, que esperam apenas um deslize para devorá-las. Como a própria avó dirá, “Eles são bons até envolverem você. Mas quando a juventude passa...a besta aparece”. Em contraponto, a mãe parece ter uma visão mais aberta, repreendendo a avó por encher a cabeça de sua filha de abobrinhas, e que fica evidente em sua frase “se há uma fera nos homens, há também nas mulheres”. Mais de dez anos mais tarde, o tema da adolescência feminina seria mais uma vez representado junto com a maldição do lobisomem, no filme Possuída (Ginger Snaps, 2000). Mas enquanto no filme do canadense John Fawcett a abordagem é mais teen, onde as transformações corporais causadas pela puberdade são misturadas com a licantropia (desenvolvimento do corpo, pelos crescendo em lugares estranhos e até a menstruação, referida no filme pelo trocadilho em inglês curse), A companhia dos lobos da um enfoque mais poético, infantil e sensual.

O filme também apresenta passagens que remetem ao surrealismo (movimento enraizado nos sonhos e no inconsciente), como o momento onde Rosaleen encontra um ninho de cegonha, e dos ovos que eclodem surgem pequenas figuras de crianças (talvez uma alegoria à questão “de onde surgem os bebês?”) ou na morte da vovó, quando sua cabeça se espatifa em vários pedaços como uma boca velha de porcelana, além de elementos que o aproxima do cinema de horror. A transformação do lobisomem pode até parecer engraçada aos olhos de hoje em dia cujo padrão de qualidade é Avatar, mas ver um homem arrancar a pele do rosto e do corpo até só sobrar músculos, para em seguida contorcer-se em gritos ao ver seu corpo se desdobrar e adquirir a forma de um lobo pode ter causado algum impacto na época, além da significação intrínseca (o lobo sai das entranhas do próprio homem). E para os mais saudosistas dos animatronics oitentistas, o momento pode até provocar uma certa nostalgia.

Neil Jordan só voltaria ao mundo dos monstros e do sobrenatural ao realizar Entrevista com o Vampiro (Interview with the Vampire) em 1994, filme até hoje considerado um dos melhores do gênero, mas até lá ele já havia consolidado seu nome nesta obra que recria o imaginário (macabro) das histórias infantis, onde Chapeuzinho Vermelho não é tão inocente quanto parece, e o Lobo Mau e o Caçador são um só.

6 comentários:

  1. Acabei de ver o filme, para entende-lo tem que ter muita atenção, é bom dar uma lida aqui antes.

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  2. Esse filme é ótimo! Assisti ele pela 1vez na antiga sessão de gala, na época a globo passava depois do supercine!!

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  3. Gostei muito do texto escrito. Vou ver o filme , pra continuar a pesquisa

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