quarta-feira, 23 de junho de 2010

"Blow Up", por Ricardo Duarte



“Um filme que pode ser explicado com palavras não é um filme verdadeiro.”

Michelangelo Antonioni


Há uma espécie de esboço de uma história de suspense nesse filme de Antonioni, mas, como em outros filmes de sua autoria em que isso acontece (Profissão: Repórter, A Aventura, entre outros), os expectadores desavisados são enganados e levados a crer que o filme se resumirá à resolução do mistério mostrado. Entretanto, em Blow Up, a situação é ainda mais especial: não sabemos se houve realmente uma morte. Tudo o que nós e o fotógrafo Thomas temos como prova são ampliações de fotografias tiradas num parque, em que o que vemos e que parece uma pessoa com uma arma, pode não ser nada.

Em seus projetos anteriores, Antonioni, focava-se na “relação entre as pessoas, sublinhando os conflitos que, na sociedade contemporânea, costumam opor o amor à ambição, o sucesso profissional à integridade artística. Em Blow Up houve mudança de rumo. Desde o início da narrativa, a imagem do jovem protagonista, que perambula por Londres, acionando compulsivamente o obturador da câmara fotográfica, adverte que não iremos assistir mais à disputa entre os homens, mas a um duelo com o mundo.”¹ Outro dos temas que usam constantemente para definir Antonioni, a incomunicabilidade, também não é um dos temas mais presentes numa leitura mais superficial do filme, embora esteja lá, especialmente no diálogo entre Thomas e Patrícia.

Então, quais temas característicos do diretor estariam no filme, além do falso clima de mistério? Primeiramente, podemos dizer do retrato da vida moderna e de como o homem reage a ela, mas, ao contrário dos personagens anteriores de Antonioni, Thomas não está em combate com esse mundo, já se adaptou a ele, sua única pendência é resolver um problema que diz respeito apenas à sua relação com a realidade. Há também um retrato crítico da burguesia, que, em eterno caminhar sem rumo, parece não ter nenhum objetivo nesse mundo. O tédio emana do fotógrafo e qualquer coisa nova parece-lhe dar uma nova energia, mas apenas algo efêmero, como o encontro com os mímicos no início do filme, a hélice que ele compra e, obviamente, o “assassinato”. Outras cenas deixam clara essa crítica, não apenas direcionada aos ricos, é verdade, mas também à alienação dos jovens ditos como “rebeldes”, e a cena, bastante onírica, ocorrida no show dos Yardbirds serve como exemplo disso: todos os jovens permanecem parados, quase como zumbis, enquanto a banda canta ou quebra seus instrumentos, apenas reagindo (de forma violenta) quando o vocalista atira sua guitarra para o público.

Mas, falar que o filme resume-se a essa crítica seria, no mínimo, ingênuo. Está presente no longa, algo muito mais interessante e profundo do que a já batida crítica ao mundo burguês: a indagação sobre a dependência quase total que a modernidade tem da visão e, mais particularmente, sobre a noção de que algo que esteja representado numa foto (ou num filme) seja verdade.

“A fotografia se beneficia de uma transferência de realidade da coisa para sua reprodução. Passamos de um efeito de realismo a um efeito de realidade.”². Tal “realidade”, segundo Walter Benjamin, seria usada para fim do próprio capitalismo, ao “transformar autenticidade de um fato em bem de consumo” ³. Há no filme uma inversão disso: a “realidade” só existe nas fotografias. São elas, e apenas elas, que mostram algo que pode (ou não) ter acontecido. O fotógrafo inicialmente acredita piamente no que elas lhe mostram, mas, ao longo da projeção, vê suas certezas se desintegrarem, até a cena final, em que há uma total desconstrução de seus pensamentos. O uso de um fotografo como protagonista em um filme questionador sobre a confiança excessiva no que vemos, o exagero do “ver para crer” e, de uma certa forma, um voyeurismo crescente, é algo extremamente importante. Ele tem sua câmera como uma espécie de continuação de seu corpo, e não mede esforços ou pensa na privacidade alheia para tirar boas fotos (como flagrar um casal se beijando, ou operários). Os mímicos, que aparecem no início e no final do filme, são a representação diametralmente oposta à nossa confiança excessiva no que vemos e servem como contraponto ao protagonista: são artistas que usam o inexistente como seu objeto artístico. No final do longa, com a belíssima cena do jogo de tênis, a própria câmera do diretor acompanha a bola, supostamente inexistente, e a torna tão real quanto todos aqueles personagens. Entretanto, Thomas permanece impassivo diante daquilo, não “acompanha o jogo”. Quando o fotógrafo pega a bola “não-existente”, o que seria uma espécie de teste (como podemos ver por todos os mímicos observando-o atentamente), para livrá-lo de todo ceticismo que vimos exibindo-o. Quando ele “joga” a bola de volta para os mímicos, aceita a falsidade do pensamento realidade = aquilo que vemos, e começa a acompanhar o jogo, e nós (espectadores) passamos a ouvir a bola. Então, o fotografo desaparece diante dos nossos olhos, demonstrando-nos ser apenas mais uma ilusão, embora nós pudéssemos vê-lo. Nesse final, percebemos as intenções anti-ilusionistas do filme: ele “esfrega”, embora de forma sutil, na cara do expectador que tudo que víamos era apenas ilusão, e tira-nos de uma catarse que o filme possa ter provocado. Há nisso algo que lembra o esforço constante de Godard de nos lembrar que o que vemos é apenas um filme, esforço esse que provêm, por sua vez de pensamentos de desmistificações muito antigos: desde o livro Don Quixote, o teatro Brechtiano, o cinema de Dziga Vertov etc. Embora, de forma bastante diferente do humor sarcástico e da violência dos exemplos citados acima, Blow Up triunfa nos seus desejos desmistificadores e é um ótimo exemplo para constar na lista de filmes dessa espécie.

Até agora, houve apenas uma análise dos intuitos, dos significados e da narrativa do filme, entretanto não é apenas por esses aspectos que esse magnífico trabalho é considerado por muitos uma obra-prima do seu diretor. Seria clichê dizer que as cores do filme são espetaculares, pois todos já estão cansados de saber do cuidado de Antonioni em relação a isso: a grama do parque teve que ser pintada de outro tom de verde para as cenas gravadas lá, pois o original não agradava ao diretor. Outros pontos que deixaram o filme famoso (esse foi o filme com maior audiência do diretor) foram seus figurinos, já que Thomas fotografa modelos, e sua trilha sonora, especialmente o show da banda Yardbirds.

Há também cenas memoráveis, além da do jogo de tênis entre os mímicos (já citado anteriormente), como o ensaio com Veruschka, que foi eleita pela Premiere como a cena mais sexy da história do cinema. A cena, que ficou sendo a mais representativa do filme, não mostra apenas uma sessão fotográfica, mas também algo sexual: “a câmera dispara fotos a todo momento como meio de união entre os dois, seus corpos movimentam-se juntos. No final da sessão, numa representação máxima de excitação, o fotógrafo ajoelhado sobre ela grita eufórico (...). O clímax é visual e inquestionável. A modelo continua deitada no chão extasiada com o que acabaram de fazer, passando a mão sobre o seu seio e exausta, está aí a representação visual do orgasmo. A cena nos mostra uma metáfora de relação sexual mediada por uma câmera fotográfica. É o exemplo máximo da influência da imagem em um ser humano, a possibilidade de juntar a capacidade de penetração do meio fotográfico em realidade física e visual. É uma forma de mostrar a vulnerabilidade humana quanto essa inversão de valores entre realidade e imagem, mostrar a necessidade de obter uma coisa representada cada vez mais próxima, se possível poder tocá-la, senti-la, é a necessidade de disfarçar uma vontade de poder criar uma realidade que possa ser controlada individualmente, montada por cada um de nós em que não haja necessidade de comunicação entre pessoas.”4 . Outra cena digna de aplausos é a que o fotógrafo arruma as fotos do “assassinato” em sua casa. Podemos ver toda a narração cinematográfica daquele crime acontecendo diante de nossos olhos, com cortes inclusos. Belíssimo.

Filme de um diretor italiano, Blow Up inscreve-se no movimento britânico da Swinging London, momento em que vários outros cineastas estrangeiros, como Godard, Truffaut e Polanski, filmaram em Londres, centro de uma incrível efervescência cultural. Talvez tenha sido esse enfoque das modernidades londrinas que causou o trunfo de bilheteria de Blow Up. É perceptível a demonstração dessa exaltada “modernidade” no filme (embora com críticas, como falado anteriormente): com seus figurinos exagerado, sua Londres agitada, suas festas com drogas, as cores berrantes do filme, a presença dos jovens, a primeira nudez frontal em um filme inglês, entre outras coisas. Talvez possamos dizer que isso tenha deixado o filme um pouco datado, mas, numa época dominada por reality shows e pela idéia cada vez mais presente de uma imersão total dos expectadores no filme, principalmente focando o elemento da visão (as novidades do 3D e muitas profecias do futuro do cinema), as indagações e críticas que ele deixa nas cabeças dos que o assistem, tornam-se cada vez mais importante.









¹ SOUZA, Gilda de Mello. (2005).

² DUBOIS, Philippe. (1999).

³ SOUZA, Augusto Cesar Cavalcanti de.

4 Ibidem.


Bibliografia:

DUBOIS, Philippe. “A linha geral. Cadernos de Antropologia e Imagem.” Rio de Janeiro: UERJ, n. 9, 1999.

MATOS, Yanet Aguilera Viruez Franklin de. “A crônica visual de Michelangelo Antonioni”. Tese de pós-graduação, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo, 2007.

SOUZA, Augusto Cesar Cavalcanti de. “A fotografia como informação”. In: UFSCAR. Disponível em: http://www.ufscar.br/~cinemais/framefoto.html. Visitado em: 09 de junho de 2010.

SOUZA, Gilda de Mello. “A idéia e o figurado”. 1 ed. São Paulo: Duas Cidades, 2005.

4 comentários:

  1. Esse foi o melhor texto dos que li aqui no blog ( li todos os sobre POlanski, e alguns outros também). Ele é informativo, analítico e crítico ao mesmo tempo.
    De qualquer modo,o blog é muito interessante, o conjunto de filmes é bom, tem filmes conhecidos e outrso nem tanto. É bom até para a gente buscar sair do lugar comum .

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  2. Até agora, a melhor resenha que li sobre o filme. Parabéns!

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