quarta-feira, 23 de junho de 2010

"Simplesmente Feliz ", por Filipe Marcena



Mike Leigh ficou conhecido por fazer crônicas pesadas sobre a classe operária britânica. Seus personagens em filmes como Segredo e Mentiras e Agora ou Nunca vivem infelizes em suas vidas medíocres, encontrando esperança quando menos esperam. Em Simplesmente Feliz temos as mesmas características, exceto pelo fato da protagonista ser uma esperançosa mulher que se autoproclama feliz. É com esse argumento que Leigh muda o freqüente tom de seu cinema e realiza uma obra leve, mas que revela uma densidade tão forte quanto a de seus filmes anteriores.

Leigh não é só um ótimo diretor, mas é um roteirista brilhante, e o incrível roteiro de Simplesmente Feliz é mais uma prova disso: não há uma meta a ser atingida pelos personagens, uma historinha a ser contada pra gente torcer contra ou a favor de alguém, nem grandes reviravoltas. É um registro de um trecho da vida de Pauline (ou Poppy, como ela mesma prefere), professora de classe média que divide a casa com sua amiga Zoe. Otimista incorrigível, Poppy passa seus dias organizando aulas, aprendendo a dirigir com o seu mal-humorado instrutor Scott e passeando por aí, sempre sorridente e cheia de tiradas cômicas. E é isso. Por quase duas horas nós assistimos a uma série de eventos na vida dessa mulher, nem sempre interligados entre si. E quando a sessão acaba você sabe exatamente quais as intenções de Mike Leigh. Genial.

O inglês deve muito a Sally Hawkins para o sucesso do filme. Revelada em Agora ou Nunca (você pode lembrar-se dela como a namorada de Colin Farrell em O Sonho de Cassandra), Sally entrega-se a uma personagem que nas mãos de uma atriz medíocre poderia se tornar rasa e irritante. Mas ela insere nuances e camadas tão ricas em Poppy que dizer que sua atuação é menos do que excepcional seria um crime. Leigh sempre faz um trabalho particular com seu elenco, às vezes por mais de três meses, e juntos eles criam toda a personalidade dos personagens. Eles até mesmo imaginam a história de vida e situações que marcaram essas pessoas, sem isso nunca ser mostrado na tela. O roteiro é apenas um guia. Toda essa criatividade tornou Poppy numa personagem intrigante, carismática e curiosa. Por que ela está sempre tão bem-humorada? Por que está sempre querendo agradar a todos? Essas perguntas não são explicitamente respondidas e o roteiro não faz psicologia barata do assunto, mas por causa de alguns detalhes você simplesmente sabe que tem algo escondido na personalidade de Poppy. Cenas que um espectador desatento veria como desperdício de tempo, como a aquela em que Poppy assiste dois de seus alunos brigarem, contribuem imensamente para a construção de seu caráter. E a talentosa Sally equilibra perfeitamente o humor escrachado e exterior com o lado triste e escondido de Poppy. Injustamente não foi indicada ao Oscar, mas merecia ter ganhado o prêmio. Globo de Ouro e Veneza fizeram justiça à revelação que é essa atriz. Destaque também para Eddie Marsan, fantástico como Scott e criando o contraponto perfeito de Poppy, sendo sua última cena a mais sublime.

Esses filmes sérios de Hollywood acham que só tratando de assuntos pesados pode-se fazer um filme importante. Mas vai falar sobre a felicidade! É assunto pra render trilhões de filmes importantes, mas a gente quase não vê de tão complicado que é. E os blockbusters têm a tendência de resumir felicidade a coisas menores (casamento, riqueza material, perda de virgindade, etc.). Todd Solondz conseguiu realizar a proeza no fantástico Felicidade, e Mike Leigh acabou de cumprir a tarefa com maestria. Felicidade é coisa séria, e Poppy sabe disso. Você pode até achá-la inocente e infantil (e as crianças não são felizes?), mas acredito que a linha é tênue entre a inocência e a sapiência. Viva Poppy! Viva Happy-Go-Lucky! 

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