quarta-feira, 23 de junho de 2010

“O Criado” de Joseph Losey, por Luciano Monteiro


Algumas vezes uma obra tem a capacidade de sintetizar muitos elementos estéticos, culturais e comportamentais de uma época. De forma despretensiosa ou não, filmes, músicas e obras de arte em geral tornam-se ícones de sua geração, verdadeiros representantes de toda uma conjuntura. Por mais incrível que pareça no final dos anos cinqüenta e por toda a década de sessenta, Londres de tornou um desses ícones. Tudo que saía da capital inglesa respirava juventude, inventividade e como conseqüência influenciava todo o mundo pop.

É neste contexto que muitos diretores, estreantes ou não, migram suas atividades para a terra da Rainha. Nos anos cinqüenta a América vivia uma de suas fases mais duras no tocante à perseguição aos direitos civis e de livre expressão. O macarthismo, que perseguia os ditos "comunistas comedores de criancinhas" fez, na sua longa lista de vítimas, um verdadeiro gênio do cinema: Joseph Losey. Um diretor de capacidade criativa e estilística impossíveis de mensurar e que parece ter surgido no lugar errado e na época errada, pois suas convicções políticas esquerdistas incomodavam o senador Mccarthy. O Menino de Cabelos Verdes já é um belo prenúncio de suas preocupações sociais, com um forte tom de denuncia contra o preconceito.

Quando Losey chegou ao longa-metragem já tinha cerca de 40 anos e possuía uma formação bastante eclética. Foi crítico literário, fez parte de grupos teatrais e estudara literatura e medicina. Produzira noventa programas de rádio e chegou a conhecer Bertold Bretch, chegando a trabalhar na versão americana de Galileu. Supervisionou sessenta filmes educativos para a Fundação Rockfeller onde entrou em contato pela primeira vez com o cinema. Toda essa formação deu ao diretor uma profunda perspectiva artística e política e acreditava que os filmes, apesar de serem um esforço coletivo, devem imprimir a marca do diretor, caso contrário, perdem o sentido. Tal posicionamento deu a Losey muitas dificuldades para trabalhar no oprimido sistema hollywoodiano.

Porém, foi justo na Inglaterra, no inicio dos anos cinqüenta, que Losey encontrou o lugar ideal para exprimir suas idéias e onde desenvolveu seu estilo inconfundível. O Criado, seu primeiro filme britânico é, talvez, o melhor exemplar da maestria do cineasta. Baseado na peça homônima de Robin Maugham, trata-se de uma análise sobre a luta de classes e a corrupção, usando como metáfora a conturbada relação entre o servo e o seu senhor. Aqui, o empregado toma as rédeas da situação, numa teia de intrigas, chantagens e jogos de poder, subvertendo o chamado heritage films britânicos, onde são apenas a aristocracia é retratada e os empregados ficam esquecidos, em ultimo plano.

O diretor, dono de um estilo inconfundível, onde a precisão de encenação e o leve distanciamento que existe entre a câmera e os personagens, juntamente com a humanização dos personagens e a perfeita integração entre trama e cenário. Losey usa e abusa, no melhor dos sentidos, do jogo de aparências, da hipocrisia da sociedade burguesa e de como a aristocracia, antes tratada de maneira idealista pelo cinema em geral, é, em O Criado, mostrada como tola e perdida em sua própria existência.

Já foi dito que o cinema é a literatura do século vinte e que, se o cinema não tivesse sido inventado muitos dos grandes cineastas teriam sido escritores. Se tais afirmações precedem podemos afirmar, sem sombra de dúvidas que O Criado, de Joseph Losey, seria o Primo Basílio do cinema moderno. A luta de classes é perene, sempre existirá. A obra de Losey também.

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