domingo, 1 de julho de 2012

Você sabe o que pensa o rato na quinta? , por Luciano Viegas

O rato, na quinta, pensa o mesmo que em todos os dias: pão e presunto, mais presunto que pão. É neste tom sarcástico que Fassbinder iguala a protagonista de Martha (Margit Carstensen) ao roedor – frágil e incapaz de refletir sobre suas próprias circunstâncias, estrangulada pela rigidez do matrimônio, ela pensa apenas no imediato: agradar ao marido Helmuth (Karlheinz Böhm) O primeiro encontro do casal é silencioso e tão rude quanto às suas relações posteriores, no plano-sequência mais impressionante do filme. A câmera gira 720° em torno dos protagonistas, que se entreolham e seguem rumos opostos – algo como os tantos encontros casuais cotidianos que não dispõem do artifício do movimento de câmera para denunciar o tal “momento mágico”. Virgem aos 30 anos, Martha é insegura e depende de calmantes, como a mãe. Ela se apoia na primeira promessa de estabilidade emocional, o casamento. Fassbinder molda uma personagem que de tão ingênua é, também, cômica. Tenta-se desvendar por dentro a origem misteriosa de uma submissão que não é de Martha, mas das várias gerações de mulheres que se viram enclausuradas pela dedicação exclusiva, sexual e doméstica, aos seus maridos. Como em Roleta Chinesa, Fassbinder está preocupado em esfacelar as falsas relações burguesas, desmascarando os seus indivíduos. Helmuth é sádico, arrogante e não suporta concessões. Fica escancarado o modelo ultrapassado de desigualdade entre os sexos e, de forma irônica, a impossibilidade de fugir dessa união indesejada. Martha terá de esperar sentada, literalmente, “até que a morte os separe”.

"Charulata, a esposa solitária", por Matheus Espíndola

Charulata (1964, Satyakit Ray) é uma belíssima película, construída com extrema atenção aos detalhes, levada em frente com delicadeza, e desvelada perante nossos olhos com um senso único de preciosismo. O filme abre com um plano-detalhe: as mãos de Charu (apelido carinhoso dado à protagonista) bordando um lenço para seu marido, Bhupati, ao som ressonante da Sitar. Logo depois, a acompanhamos enquanto caminha pelos corredores da mansão que habita, conversando com o mordomo, retirando livros da estante, observando o movimento das ruas pela janela da sala. Ao mesmo tempo em que observamos Charulata como uma esposa indiana igual a outra qualquer, a sensação é que estamos a observar um fantasma. Em meio ao luxo de sua casa, Charu caminha sem rumo, sem objetivo, sem vida, mesclando-se com os próprios objetos dos seus aposentos, e mesmo quando seu marido a ultrapassa, nem sequer a repara. Observando as pessoas de sua janela, descobrimos com ela o exterior: as ruas e as pessoas, e entendemos o valor daquele instante de voyeurismo: a sutil presença da liberdade em uma prisão implícita. É nesses instantes, gloriosos a sua maneira, que o filme transcende o visível, e se coloca num nível puramente poético de apreciação da imagem e de seu significado. O preciosismo do filme me remete ao preciosismo bergmaniano. Como em Fanny e Alexander, somos convidados a um universo límpido, de uma cenografia impecável, imagens harmônicas e bem-enquadradas, e de atuações sinceras e divertidas, onde podemos realmente sentir a conexão dos personagens. Mas enquanto Bergman nos apresenta um conto de fadas iluminado pelos olhos de uma criança, Ray nos dá uma estória de amor e liberdade vista aos olhos de uma esposa reprimida. Sendo assim, o filme é permeado por um sofisticado senso de melancolia, onde mesmo as cenas mais felizes são levemente insaturadas graças à presença desse olhar lânguido, mas ainda assim límpidas e reluzentes, como, por exemplo, na cena do balanço, onde observamos o close-up contínuo no rosto de Charu enquanto se balança e canta. O jardim é idílico, Charu sorri satisfeita, mas ainda assim seu sorriso é vago, e em alguns momentos sentimos a iminência das lágrimas. Essa delicada tensão, que surge de forma espontânea ao longo da canção, torna a cena uma das mais belas e envolventes do filme. E por falar em imagens, quantos usos inusitados da fotografia. Temos planos-detalhes em movimentos, close-ups que bruscamente se tornam mid-shots, e, além de tudo, os últimos instantes do filme, congelando a imagem e deixando em aberto as possibilidades de resolução da narrativa. Jamais tinha visto isso em algum filme preto e branco, ainda mais colocado de tal forma que cause um estranhamento tão marcante assim. Curiosíssimo. Os outros dois personagens principais são ótimos. Bhupati é um intelectual, revolucionário, que ama e admira sua esposa, mas divide seu tempo entre ela e seu jornal. Amal, seu irmão, um jovem poeta bon vivant, divertido e ingênuo, defensor dos ideais românticos. Os dois, em oposição, colocam na tela a influência da Inglaterra nas terras indianas ainda colônias. Bhupati recorre também a pensadores ingleses para lutar pela independência da Índia, enquanto Amal é claramente influenciado pelo romantismo britânico. Mesmo com as suas diferenças, ambos são personagens visionários e honestos, que preenchem o filme com beleza e sensibilidade. Se em Primo Basílio Luísa paga cruelmente o preço da traição, em Charulata isso nem chega a se consumar. Num universo onde tudo parece caminhar em direção ao inevitável, a única resposta que a vida poderia lhe dar é a indiferença, desafiada bravamente pelos gritos da tempestade, que se submete às explosões cáusticas do destino. Charulata não é um grito de revolta nem um lamento sofredor, mas uma canção indiana, triste e sagrada, alimentada por anos e anos de tradição.