quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

"Vingança é um prato que se come frio?" por Philipe de Castro


Nem tanto para Georgie (Helen Mirren), que servirá ao marido o cadáver – cozinhado - do amante Michael (Alan Howard), com que viveu alguns dias de deleite e amor.

A história se passa em O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante (1989) do diretor britânico Peter Greenway. Como o próprio nome já explica o filme mostra um enredo em que Georgie, mal tratada e humilhada em público por Albert Spica (Michael Gambon), um mafioso que patrocina um rico restaurante, se envolve com um misterioso cliente que passa horas no mesmo 'Le Hollandais' que eles. Aí entra o renomado cozinheiro Alfred "Se o senhor gastasse seu dinheiro na comida, Senhor Spica, como gasta na decoração, com certeza melhoraria seu paladar" que acoberta o caso na sua própria cozinha e, ao término, acaba por cozinhar o cadáver de Michael a pedido de Georgie.

Greenway é conhecido por sua polêmica declaração logo a estréia de O Cozinheiro, O ladrão, sua mulher e o amante em que afirma que "A única arte que me ensinou algo foi a pintura, eu penso que ela é arte suprema. Se você quiser contar histórias, seja um escritor e não um cineasta" E é isso que vemos em seus filmes. O Cozinheiro ganha destaque dentro de sua produção justamente por acentuar essa característica em que o intenso trabalho com cores, iluminação e cenografia formam uma composição atraente, e até certo ponto onírica.

A narrativa é pontuada por uma forte musicalidade entre a passagem dos dias que somada a sincronização de todos os atores, ao cromatismo viril dos ambientes e aos passeios fantásticos entre eles - via planos seqüências retilíneos - criam um clima envolvente e uniforme com um certo tom voyerístico por parte do espectador.

Se o enredo de certa forma flerta com uma boa telenovela brasileira (Traição – Poder) o filme apresenta questões bem interessantes. Michael, o amante, é um leitor inveterado “Sei que só lê isso porque não tem ninguém para conversar" afirma Spica. O ladrão, por sua vez, tenta – inconscientemente - ou não, disfarçar sua estupidez através da ostentação glamourosa do salão e os pratos refinados de Alfred.

Mesmo sendo ambos duas representações crassas sem perder seus toques de verossimilhança. O amante se mostra como uma tentativa de quebrar um arquétipo que costuma separar o prazer e o trabalho intelectual dos prazeres mundanos. Do outro lado temos Spica que com sua obsessão anal, grita, bebe e come desenfreadamente.

Michael passa mais dos quarenta minutos iniciais sem dá uma única palavra. Ele se divide entre um bom prato de comida, um bom livro e, é claro, uma boa transa.

Essa contraposição fica muito clara a partir do momento em que romance é descoberto e os dois personagens ganham um contorno ainda maior. Alfred assume a insanidade total, enquanto Michael se refugia em seu depósito de livros com Georgie.

Michael demonstra como os diversos habitus estão necessariamente imbricados, de modo a formar uma unidade. No início do filme até comenta-se como comida e sexo são relacionados – porém, não ao modo Spica. O próprio Greenway cita em entrevista que para muitas civilizações a alma não reside no coração, mas no estômago.

Ironicamente, Michael morre sufocado pelas próprias páginas do livro sobre a Revolução Francesa, enfiadas guela a baixo pelos capangas de Spica. O ladrão não esperava que pouco tempo depois também teria uma morte tão simbólica como a de Michael. O filme toca justamente nesse ponto: como a comida vira bosta e como a bosta pode virar comida. O início e o fim. E a participação de cada um nisso tudo e de cada um consigo próprio. Como Alfred responde a Georgie quando perguntado como ele escolhe o preço de uma prato: "Cobro caro por tudo que for preto. Uvas, azeitonas, amoras. As pessoas gostam de ser lembradas da morte. Comer comida preta é consumir a morte. É como dissesse: “" Morte, estou comendo você"”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário