sexta-feira, 30 de novembro de 2007

"O ano passado em Marienbad" por Amanda Tavares de Melo Diniz


“O ano passado em Marienbad” não é um filme para ser descrito e, sim, sentido com olhos e ouvidos atentos. Buscar entendê-lo é um grande desafio, pois seu diretor, o francês Alain Resnais, compõe uma obra de perguntas. O que é realidade, que realidade é essa e o quanto a subjetividade influencia uma narrativa são apenas algumas delas e, assim como quase todas as outras, ficam sem resposta, esperando pela interpretação (ou não) do espectador.
O filme de Resnais confunde mais do que explica, deixa portas abertas e espalha enigmas e pistas durante todo o longa-metragem. Quando o espectador acredita estar se aproximando de uma explicação lógica para a história, uma reviravolta acontece e ele é novamente jogado em um confuso universo de memórias, corredores, jardins e pessoas-objetos, tudo isso guiado pela narração do protagonista. Logo no início do filme, percebe-se a densa selva em que estamos entrando, uma vez que a câmera percorre os assustadores cenários de Marienbad enquanto o narrador alerta para a imprecisão do tempo e do lugar onde aquela história se passou: “foi em 28 ou 29? Em Marienbad ou emFrederiksbad?”

O diretor articula a imagem com o imaginado. Caminha pelos corredores, espelhos, salões, jardins, aposentos, quadros e ornamentos, descreve um espaço descontínuo que nunca chega a ser a um local definido. As locações mudam no meio da cena, as quais ocorrem exatamente iguais em cenários diferentes, como se o narrador não conseguisse lembrar exatamente o que aconteceu onde ou como aconteceu o quê. O edifício se movimenta com a narrativa, torna-se impreciso como ela. Ao lado da arquitetura e da decoração opulenta estão os hóspedes, sempre misteriosos em suas feições sem expressão, modelados pelas sombras e muito elegantes em seus vestidos, jóias e smokings, animados apenas quando focadas pelas personagens principais, criando uma relação íntima entre as pessoas e o cenário. É nesse ponto que reside um aspecto muito interessante da obra de Resnais: a intersecção entre várias formas de arte. É possível verificar no filme vários pontos de contato entre o cinema, a moda, a literatura e até mesmo as artes plásticas. Dentro da questão da moda, o diretor usa as roupas e até mesmo a maquiagem para auxiliar na caracterização dos personagens, especialmente no que se refere à personagem principal, sempre com roupas escuras e uma maquiagem “carregada” para contrastar com a brancura do seu rosto e criar um clima ainda maior de mistério e gravidade. A literatura se faz ainda mais presente na história, principalmente na utilização de linguagem e recursos tipicamente literários, como a narrativa não-linear da história e a presença marcante da subjetividade. O filme é, ainda, cheio de sutilezas e silêncios narrativos, outro recurso tipicamente literário, em que é preciso observar as trocas rápidas de olhares e ler as entrelinhas dos diálogos para entender as ações e os sentimentos dos personagens.


Em uma das cenas mais interessantes do longa, os personagens discutem sobre o significado de uma estátua em um dos jardins, mostrando com maestria como as várias formas de arte se influenciam e se enriquecem mutuamente. Os dois personagens interpretam de formas completamente diferentes o significado da escultura e isso pode ser encarado como uma metáfora para o filme como um todo, ao mostrar que a arte, apesar de ser passível de várias interpretações, jamais perde a beleza, e é nisso que consiste a sua genialidade. À parte dos elementos estéticos que influenciam bastante na construção da atmosfera de mistério e fragmentação espaço-temporal do filme, a passagem do tempo e a memória são os elementos centrais deste enredo.
A priori, as cenas não apresentam seqüências lógicas de uma narrativa clássica e a trama não faz diferença na compreensão do filme. A narrativa é composta pelos personagens, os ambientes e as relações entre eles, organizados de acordo com as lembranças do personagem, a qual não é linear assim como os próprios pensamentos. A narrativa do filme torna-se clara quando percebemos que nos são apresentados os devaneios das personagens e quando as fronteiras entre o real e o imaginário são definitivamente quebradas. Um exemplo de como a história é contada nos moldes do funcionamento original da nossa mente, são as cenas em que a própria música de fundo se relaciona com os textos recitados pelo narrador, em que não se pode verificar a harmonia tradicional entre eles nem a lógica para ter sentido e significação, assim como ocorre nas nossas mentes, onde o fantástico e o ilógico têm espaço.

O ano passado em Marienbad é um desses filmes que tira o espectador da sua posição de mero observador dos fatos e o transporta para dentro da história, uma vez que concede a ele o poder de decisão sobre o que fazer com os personagens e com o desfecho da história. É também uma experiência cinematográfica que estende a reflexão para além dos limites da tela e da duração do filme porque nos faz pensar sobre a memória, o passar do tempo e a influência desses dois fatores no relato de histórias sobre o passado em um tempo presente. É por essas questões e ainda por elementos estéticos construídos com maestria que o filme de Resnais, apesar de sua aparente falta de lógica e compromisso com a veracidade dos fatos representados, ocupa o raro lugar de filme que para ser genial não precisa ser compreendido: basta ser visto.

Um comentário:

  1. O interessante é observar como Resnais constrói sua obra sobre o "invisivel" dando a possibilidade de ele ser visto e permanecer como uma grande lacuna que preenchemos com nossa imaginação e não apenas com a razão, com a simples dedução dos fatos.O cinema com uma grande pergunta através do caráter impreciso, confuso e não linear da memória.

    A cena da discussão do significado da estátua do homem, mulher e cão por parte dos personagens realmente é genial - e quiça pode ser considerada o "eixo" de uma obra "fora de eixo".

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