sábado, 15 de novembro de 2014

"A Chinesa", por Júlio Pereira


Ocorreu, recentemente, uma ressignificação interessante de Riocorrente, do paulista Paulo Sacramento, perante as manifestações iniciadas em junho de 2013 no Brasil. O filme foi realizado antes da erupção política nas ruas, mas, por ser lançado posteriormente, acabou estabelecendo uma ponte involuntária com acontecimentos reais. Por outro lado, podemos compreender a obra por outra ótica (bem mais instigante, diga-se): como um anúncio do que estaria por vir, ou seja, um pequeno retrato dum sentimento de revolta presente nos brasileiros anterior às chamadas jornadas de junho (nome problemático tendo visto que as manifestações não se cessaram) – e, claro, existe uma relação muito direta entre essa sensação de mal-estar com a explosão política no Brasil. Essa divagação serviu, de fato, apenas para poder falar um pouco sobre a força adquirida por A Chinesa, de Jean-Luc Godard, ao tentar enquadrar o filme num contexto político maior na França. Leia-se: prelúdio capturado em película do que seria o Maio de 68, cujo estopim foi, inclusive, a demissão de Henry Langlois, diretor da cinemateca francesa, por André Mauraux, então ministro da cultura.

Falamos duma obra fundamentalmente romântica, retrato honesto dum tempo onde a ideia da revolução sendo feita nas urnas, muito presente em certa esquerda contemporânea, se empalidecia diante do fervor revolucionário presente entre os jovens franceses. E é muito importante destacar o fato dos personagens de A Chinesa serem todos militantes da juventude, afronta direta a uma esquerda mais velha absolutamente institucionalizada, pouco preparada para a efervescência de ideias à esquerda pairando entre os mais novos. No âmago disso, existe o apreço forte pelas ideias maoistas, num período já desiludido com a URSS. O Livro Vermelho se impõe na obra menos como elemento figurativo de ideias do que representante de um desejo radical entre os personagens, ou seja, força motriz de todo o debate do filme.

Aliás, essa sinceridade, uma fé clara do próprio Godard, nos ideais de Mao Tse-Tung, celebração pura da Revolução Cultural na China, obstruem qualquer possibilidade de revisionismo, tendo vista que nós sabemos todos os excessos cometidos – embora muitos não-provados – pelo governo socialista de Mao – perdurado até hoje, mas com uma esquizofrenia grotesca: um dos capitalismos econômicos mais cruéis do mundo. Um período pré-descortinamento, em que os franceses, assim como os militantes comunistas do resto do mundo, não sabiam tão bem a barbárie por trás da utopia (como define Silvio Tendler em seu afetuoso documentário). Em suma: A Chinesa adquire o status (neste sentido específico, pois o filme é muito maior do que qualquer enquadramento genérico) de registro duma juventude extremamente engajada. Por outro lado, Godard foge do simplismo ao admitir o perigo duma falta de tática revolucionária elaborada, assim como o caráter pequeno-burguês, contraditório, imperfeito mas esperançoso, dos militantes franceses dos anos sessenta. Assim, o desfecho acaba aludindo também ao que seria o Maio de 68, reconhecendo a revolta como apenas o primeiro passo pequeno dum projeto político maior.

Godard promove seu panorama político, inserido no começo de sua fase estética mais radical, através duma linguagem pop constituída por colagens, hinos sobre Mao (cômicos pelo modo como são postos), encenações de importantes acontecimentos históricos – como a Guerra do Vietnã. Amálgama de elementos cinematográficos guiados por uma montagem de preceitos eisensteinianos, do choque mesmo, desencontro do áudio com a imagem para te extrair do universo diegético da obra. Acaba chovendo no molhado, inclusive, ficar comentando esses traços formais godardianos, ou seja, a quebra de toda a narrativa clássica hollywoodiana, rompimento com a impressão de realidade - alienante por natureza. Mas são constituidoras, e por isso fundamentais para a análise, de toda a linguagem anárquica, necessária para a expressão da pólvora prestes a pegar fogo de A Chinesa. (Acho curioso observar como o estilo de atuação bretchiniano empregado por Godard acaba sendo muito mais radical e estranho do que duas resistências – muito bem sucedidas – ao star-system norte-americano: a coralidade do neorealismo italiano e o coletivismo do supracitado Eisenstein.)


Ou talvez A Chinesa me toque tanto por retomar um sentimento pouco presente em nossa era desiludidada com as utopias, em que as ideias precisam voltar a ser perigosas – como dizia nos muros de Paris. Talvez por me lembrar um pouco das mesas de bar com amigos militantes discutindo sobre Bakunin e Marx – em pleno dois mil e quatorze, há pessoa dispostas a isso, acredite. Talvez por evocar imagens do poético molotov sendo arremessado nas forças repressoras do Estado. Afinal, por me deixar com aquela remota esperança de que um dia as coisas podem mudar radicalmente. E enquanto houver pessoas dispostas a assistir e discutir Godard, terei a certeza de que nem tudo está perdido.

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