sábado, 15 de novembro de 2014

O Estranho Caso da Crise na Aristocracia do Velho Continente, por Danillo Medeiros


“O Estranho Caso de Angélica” é um muito filme interessante, e antes de começar a assistir, pensava que se tratava de um caso de morte do qual iria ser investigado no decorrer do filme, mas estava enganado. Nos primeiros minutos ainda deram a entender isso. A estranha morte da jovem Angélica, todo o ritual dos seus familiares sobre seu corpo agora sem vida, etc, mas quando o Isaac a enquadra na sua câmera fotográfica e Angélica muda suas expressões faciais, comecei a entender (ou não) do que o filme se tratava.
Não digo que comecei a entender a partir desse momento citado acima, mas sim que, a partir daquele momento, entendi que tudo o que eu achava do que ia se tratar o filme estava sendo desconstruído. O filme vai além da morte da personagem, o filme mostra o caminho para o estado de loucura que se encontrará o protagonista nos últimos minutos da película. Isaac embarca numa confusa jornada para algo do qual não conhece, mas que precisa descobrir o que é. As aparições de Angélica o confundem, o desestabiliza, o mata. Parando para pensar um pouco, o que confundia e desestabilizava as pessoas na época na qual o filme foi feito(2010)? A tão citada no próprio filme, a Crise Mundial. Mas vou deixar essa importante reflexão sobre a crise para um parágrafo mais à frente do texto, pois agora tenho que começar pelo começo.
A trilha sonora, essencialmente produzida num piano, remete ao primeiro cinema, aos filmes silenciosos e a tudo que se relaciona com o antigo. O filme se passa na década de 50, e é muito bem ambientado. Casas históricas, ruas escuras, músicas no piano, etc são usadas para acentuar um certo tom melancólico que o filme carrega por toda sua duração.
Nas primeiras cenas, todo esse tom melancólico é somado a todo um emparelhamento aristocrático da família da falecida. A forte ligação com a religião, a casa antiga, as roupas formais, e mais tantos outros detalhes que ligam a família aos padrões aristocráticos dos séculos passados. Aristocrático também é o fato de que Isaac, o fotógrafo, trabalha a moda antiga, nos remetendo a ideia do artista como alguém superior, alguém diferenciado. Isso se prova nas sucessivas perguntas da irmã de Angélica, que queria saber se o fotógrafo já havia tirado a foto, mostrando não estar familiarizada com o equipamento.
Usando o conceito de Personagem Conceitual, criado por Deleuze, que diz que tanto no real como no fictício, existem personagens que carregam uma certa e necessária carga filosófica, é possível identificar, nesse filme, a presença de 2 principais personagens conceituais, a Angélica e o Isaac.
A morte de Angélica é um marco no filme, todos acontecimentos e questões levantadas são baseadas na morte dela. Angélica é a personagem conceitual que carrega a crise mundial como conceito. A Crise Mundial que se iniciou em 2008 quebrou o mundo dos Desenvolvidos, destruindo a vida de muitos dos europeus. A morte da Angélica traz perturbação e tristeza a maioria dos personagens do filme, especialmente a sua família e a Isaac, assim como a crise fez a Europa e seus habitantes.  
Já Isaac, representa a falida aristocracia. Ele usa roupas formais demais em lugares inapropriados, ele utiliza de instrumentos antigos e até falou: “Eles preferem a moda antiga”. Ele representa o antigo, a elite (mesmo não sendo parte dela), representa antigos valores que foram quebrados no decorrer da história. No filme, esses valores elitistas e aristocráticos são quebrados com a morte de Angélica. A loucura de Isaac, que é sempre atormentado pelo fantasma de Angélica, nasceu da morte da mesma, e isso o leva a ter um trágico final. Tal história se relaciona, analogamente, a realidade europeia da época de produção do filme. Os luxos, a estabilidade e o desenvolvimento, foram dizimados pela chegada da crise, e dizimados gradativamente, assim como acontece no filme.
O tom melancólico do filme serve justamente para destacar essa analogia. As atuações cruas, a iluminação fraca, os planos abertos de câmera fixa, e tantos outros elementos, servem para dar esse necessário tom de melancolia, que simboliza, explicitamente, o sentimento da maioria dos europeus na crise.

Visando uma reflexão sobre o cenário de crise na Europa no final da década dos anos 00, o filme conta com um alto grau de excelência narrativa e principalmente técnica para fazer isso. "O Estranho Caso de Angélica" não se trata só da história de um homem atormentado por um fantasma, se trata, na verdade, de uma reflexão europeia (o filme não é só Português, pois conta com a colaboração de vários outros países europeus) sobre sua própria situação caótica. 

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