sábado, 15 de novembro de 2014

"A rotina tem seu encanto", por Hugo Nogueira



O filme de Ozu possui uma riqueza de características cinematográficas que saltam aos olhos do  espectador. Podemos destacar a planificação com enquadramentos fixos e que mantém certo distanciamento dos personagens, evitando o close-up. Destaca-se, também, a composição de quadro com uma riqueza de detalhes cenográficos, além do uso de planos de transição típicos, sem aparente função diegética. O filme possui uma construção temporal particular e Ozu retrata uma cultura e um tempo com sensibilidade e sutileza.

Nesse filme podemos inferir uma relação entre a interpretação e a planificação na criação do universo ficcional de Ozu. Em ambas percebe-se o contraste entre o distanciamento e a afetuosidade.
Se, por um lado, as personagens são contidas nos gestos e na expressão dos sentimentos, por outro, fica patente uma afetuosidade nesses mesmos gestos. Sem afetação e justamente pelo seu oposto, a contrição e a sutileza, somos levados a um sentimento de afeto pelas personagens e pela cultura retratada. Podemos apreciar a maneira como vivem.

Os sentimentos são contidos, mas não deixam de existir. Contrição e sutileza lhes conferem verossimilhança e força. Um choro contido, evitado e até ocultado acaba tomando maior potência quando verte-se em lágrimas inevitáveis. Não há arroubos de paixões avassaladoras como em outras estórias. Não há caricaturas exacerbadas nem sobressaltos. Apesar de não negar-se ficcional não estamos num universo onírico ou fantástico. Viajamos num quotidiano que por sua singeleza revela sua beleza.

Na planificação podemos notar algo parecido. A imagem é construída a certa distância e sempre fixa. Destaca-se o enquadramento que deixa transparecer a riqueza de elementos cenográficos e a mise-en-scene única de Ozu. O cinematógrafo posiciona-se estático a certa distância e pacientemente capta a entrada e a saída dos atores e suas ações. Por outro lado, em alguns momentos nos encontramos, junto com a câmera, mais próximos das personagens. Próximos o suficiente para captar uma tenção emocional surgida através da narrativa, mas não tão próximos ou invasivos quanto num close-up que se apropria do rosto do ator.

Ainda quanto à planificação, em alguns momentos, em diálogos mais íntimos, em vez do plano e contraplano tradicional, nos vemos deslocados a uma perspectiva subjetiva alternada. A personagem fala como que diretamente para a câmera, a qual se posiciona no lugar do interlocutor. Em vez de planos alternados oblíquos, que mostram detalhes das personagens como os ombros. Vemos uma alternância de planos subjetivos frontais, como se o olhar do espectador fosse transportado alternadamente á perspectiva das personagens. É curioso perceber isso e ainda o estranhamento causado ao olhar. Na tela, através desse recurso, as figuras acabam se sobrepondo com a alternância das imagens. Disso vem o estranhamento. É como se a imagem do anterior permanecesse no seguinte nos causando a impressão, por instantes, de serem a mesma pessoa. A consequência é a sobreimpressão e confusão das personagens, mesmo que momentânea. Talvez essa montagem alternada de planos, em que personagens diferentes possuem o mesmo enquadramento em planos que se intercalam, sugira que elas dividem, naquele momento, ideias, sentimentos ou conflitos em comum ou parecidos ou correlatos.

Outro ponto interessante na construção fílmica de Yasujiro Ozu são os planos de transição. Apesar de serem aparentemente sem função diegética, cumprem o papel de localização espacial e temática do expectador na narrativa, além de costurarem a continuidade fílmica. Esses planos mediam planos de ação ou diálogo e geralmente são acompanhados de trilha sonora e efeitos sonoros sutis. A função da trilha é manter uma continuidade enquanto os planos transportam o expectador de um lado a outro. Se prestarmos atenção, esses planos tem uma relação temática e espacial com a estória e costumam se repetir durante a narração, reafirmando o lugar e o clima de determinada personagem ou ambiente na trama. A casa do filho mais velho está associada a determinado plano de transição, da mesma forma o bar e a casa do professor.

Há ainda uma sutileza sonora. Em determinado plano de transição mostra-se um trem que entra e sai do quadro. O efeito sonoro do trem passando se repete subtilmente em diversos momentos do filme, inclusive em planos de transição nos quais tal efeito aparentemente não caberia. Talvez a inserção desse efeito sonoro reforce a ideia de passagem, tanto no sentido de passagem de tempo quanto no sentido de mudança. Por outro lado,p podemos nos indagar se não se trata de uma referência ao tempo cíclico do oriente, como um metrônomo a marcar o compasso da estória e suas voltas.
O filme “A Rotina tem seu Encanto” é um pródigo manancial ao cinéfilo. Repleto de elementos cinematográficos sutis e sensíveis, trata-se de uma obra virtuosa com uma cor única do Japão de Ozu.

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