sábado, 15 de novembro de 2014

Relações humanas regadas a sake em "A rotina tem seu encanto" de Ozu, por Lorena Arouche



















"No final o homem sempre acaba sozinho."

Dezessete anos se passaram após o cessar-fogo da II Guerra e com ela o fim da Guerra do Pacífico. O tempo parece não dar conta das cicatrizes e a referência ao conflito entre Japão e América do Norte é um espectro onipresente que paira na filmografia de Yasujiro Ozu. Uma guerra sempre se constituirá em um divisor e indexador temporal. O pré guerra transforma-se em apelação nostálgica. A guerra em si é realidade crua e sobretudo cruel. O pós é a esperança na reconfiguração de si e do futuro sem ela. Há um certo tom de humor quando o tema bélico vem a tona, um saudável exercício de rir de si, apesar da seriedade do assunto e de outro, a ocidentalização do oriente. Ozu questiona se, inversamente, o Japão houvesse ganhado a guerra, as crianças americanas estariam orientalizando-se. As sequências do Torys bar e o tema recorrente da marchinha de guerra estabelecem uma elo, um acesso a certos lugares da memória. O protagonista, viúvo e ex militar, refez sua vida graças a oportunidade de emprego na indústria capitalista. Contudo, "A rotina tem seu encanto" (1962) trata menos de guerra do que de solidão, ou o medo desta. Mulheres jovens são interpeladas ao casamento arranjado (propostas de casamento tratadas como business). Filha de pai viúvo sofre por haver perdido todas as oportunidades matrimoniais dedicando-se plenamente ao mesmo. Vale comentar a força social que a presença feminina desempenha aqui. Nota-se uma menor submissão heteronormativa, a passividade existe, entretanto, em menor grau que outrora. Grande parte das filhas, esposas, e irmãs, nesta obra, recusam-se ao servilismo gratuito com um: "faça você mesmo!". Ainda que o futuro das filhas, tradicionalmente, seja decidido por seu pai, é inegável o "crescendo" de suas agudas vozes.

As relações humanas e familiares, seus pontos fortes e fracos, situam-se em primeiro plano na narrativa regada a doses sake e outras bebidas como gatilho para a fluência das revelações, socializações e possíveis outras abordagens, a posteriori, menos rasas. Os personagens são comumente enquadrados no centro do plano e, metaforicamente, seus olhares nos atravessam em campo ou contracampo. O olhar de Ozu sobre seu universo, seu posicionamento e perspectiva têm por característica planos de câmera fixa no tripé, ou seja, ausência de movimentos mecânicos e dinamismo. O movimento que surge está inserido internamente no plano que oscila entre abertos, americanos, médios e alguns poucos zooms, nunca closes. Um obra auto reflexiva, pouco impelida para ação/ movimento com uso de dilatação temporal, características dos trabalhos do diretor. Os personagens transbordam passividade e resignação. De forma geral a ação que se desenvolve é mais verbal do que física. A câmera impõe distância, assim como os próprios entes entre si. Os personagens enquadrados em planos próximos, médios, parecem emoldurar-se em meio ao cenário e seus trajes coadunam-se e harmonizam-se em qualquer ambiente que estejam.

Os momentos de elipse, passagem de tempo, ou meros elementos de ligação entre sequências internas, concentradas nas relações, são pontuados por planos da cidade traduzidos especialmente pelas formas arquitetônicas de edificações habitadas ou habitáveis. As passagens entre os planos se dão de forma gradativa, do maior para o menor. Porém, os planos abertos revelam uma parte do todo apenas, e sucessivamente o recorte vai sendo redimensionado e fragmentado. Não vemos a cidade,
em si, seu cotidiano localiza-se no extracampo. O uso de figuração é bastante reduzido e controlado e algumas vezes oculto por sombras. A paisagem bucólica foi substituída pelo semblante do rápido crescimento industrial pós- guerra.

Além do exemplo acima mencionado, Ozu faz uso do extracampo em outros momentos: o casamento acontece foram de campo, as negociações sobre casamento entre as famílias, os encontros com o noivo e o próprio noivo.

"Aproveite a vida enquanto pode. Não desperdice seus pensamentos com a eternidade. Erga decidido o seu copo de vinho." Frases recitadas pelo professor Calabaza pouco antes de desabar embriagado reverberam para além da narrativa. Como se o grande mestre Ozu, no fim de sua vida e carreira, intermediado por seu personagem ancião, fizesse das palavras suas as dele. Tal personagem Calabaza tem papel fundamental na obra, por vezes ridicularizado ou incitando piedade entre os conhecidos, precipita toda a trama que envolve seus erros com sua filha, sua infelicidade e solidão como espelho de um futuro e de uma vida a ser evitada a qualquer custo.

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