sábado, 15 de novembro de 2014

"Bom trabalho", por Felipe Leal




"Quando se está em movimento, há algo a ver com o tempo… o movimento te dá realmente uma oportunidade de se mover nele, sabe?"
Claire Denis

Todo filme de Claire Denis é inevitavelmente um filme sobre corpos. Especificamente sobre seus movimentos, sutilezas e pulsões, mas mais ainda, talvez, sobre suas relações de poder. Se assim os classificamos, como numa politique de auteur, em que a matriz de seu cinema é o estabelecimento dessas relações corporais, pode-se dizer que Bom Trabalho (Beau Travail, 1999) é o seu filme-síntese, aquele em que ela explora sua temática ao máximo. Mesmo quando não estão em cena - o que é raro -, os elementos do filme fazem menção às individualidades físicas dos soldados da legião francesa no Golfo de Djibuti.

Inspirado em Billy Budd, conto do genial Herman Melville, e claramente tratando das mesmas relações de inveja, atração e grupo - o contra-mestre de um navio, inquieto com a presença do marinheiro que chama a atenção do capitão -, Denis utiliza ainda uma outra camada de referência, a do Pequeno Soldado (Le Petit Soldat, 1963), filme de Godard que também se debruça sobre a temática da ocupação francesa na Argélia. O comandante da legião francesa é Bruno Forestier (Michel Subor), mesmo personagem e mesmo ator do filme de Godard. "Um homem sem ideais, um soldado sem ambições", como narra Galoup (Denis Lavant), o sargento que serve como ponto de vista para a narração da história. Não seria este Forestier o mesmo de 63, fugitivo, distante, consciente de que aquilo é o seu fim? Não seria essa uma conexão, seja por carinho ou admiração de Denis, com a Nouvelle Vague de seus predescessores?

Inapto à vida, à vida social, o personagem de Lavant é primordial para tratar as oposições entre grupo e indivíduo em Bom Trabalho. Por mais que sejam sempre tratados como um todo, a legião é sutilmente representada por soldados solitários, que, aliás, sequer são de origem francesa. A câmera capta silenciosamente, como uma transeunte observadora, os pertences dos soldados - como as camisas presas ao varal, cuidadosamente passadas por cada um, ou a máquina de barbear de Forestier. Da mesma maneira se deu a aproximação de Denis com os treinamentos da legião francesa: não recebendo a permissão para estudá-los, a diretora teve de observar sua rotina no deserto, à distância, posteriormente sendo treinada por um ex-legionário em Paris.


E é precisamente nisto que o filme encontra sua força: nos movimentos desajeitados dos soldados que dançam por entre as africanas, nas suas pesadas séries de treinos e divertidos momentos de folga, dividindo cervejas e celebrando aniversários, Bom Trabalho é uma coreografia da rotina. Se para Claire Denis a música é o mediador que impulsiona corpos e espaços numa relação, a trilha sonora - extraída da ópera também adaptada de Billy Budd, além dos sensuais ritmos árabes - não é menos crucial para o desenvolvimento desses jogos de poder. Do comandante às africanas, todos inscrevem suas personalidades através do corpo. Movimento e, consequentemente, existência, afirmação.

Toda a (suposta) tensão homoerótica do filme se dá especialmente a partir de Galoup e Sentain (Grégoire Colin, ator-fetiche de Denis), de cuja tensão nasce a cena mais poderosa do filme. Em movimentos circulares, sem sequer um toque ou palavra, os dois concentram sentimentos de inveja, ameaça e desejo, que exalam de seus olhos, físico e espaço entre eles. As sensações mais inerentes ao ser humano são assim estudadas pela câmera atenta da diretora. Nos termos da mesma, aliás, não há crença em um "cinema de arte", mas é praticamente impossível posicionar sua obra junto a tantas outras que vemos por aí.    

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