Da safra recente do cinema argentino, Lucrecia Martel aparenta ser, de fato, a mais autoral e a mais criativa dos cineastas. Dotada de uma sutileza singular, a diretora – que estreou nas telas em 2001 com o aclamado O Pântano (La Ciénaga) – não hesita nem se intimida em tratar de assuntos delicados, como religião, sexualidade e dissolução familiar. Além disso, outro aspecto que se faz presente no foco de preocupações da diretora argentina é a desnecessidade da separação moral entre o bem e o mal. Trabalhando com temas íntimos e particulares, Martel propõe-se a descortinar a absoluta inutilidade de tal dicotomia. E de outras dualidades também. Em seu último filme, A Menina Santa (La Niña Santa, 2004), ela nos apresenta uma trama onde desejos e repressão, bem e mal, sexualidade e religiosidade se confundem devido as suas linhas tênues e frágeis.
O filme, que participou do Festival de Cannes em 2004 e foi premiado na Mostra Internacional de São Paulo, traz a história de duas adolescentes – Amália (Maria Alche) e Josefina (Julieta Zylberberg) – que freqüentam um grupo de estudos católicos em que se discutem temas como vocação, sinais divinos e repressão às tentações. Porém, a garota do título é, na verdade, Amália, que mora no hotel em que sua mãe divorciada (interpretada por Mercedes Morán) é gerente. Como efeito da forte educação religiosa que lhe foi imposta, Amália tem como rotina decorar preces e esperar pelo momento em que receberá de Deus a sua missão. Certo dia, a garota é levemente molestada pelo discreto Dr. Jano (Carlos Belloso), um dos médicos presentes no hotel em que mora devido à realização de um congresso de medicina. Amália encara o ocorrido como sendo um sinal divino sobre a sua missão cristã no plano terrestre e obstina-se, então, a salvar o médico dos seus desejos escusos que lhe convidam ao pecado.
Inicia-se, então, um sufocante jogo psicológico: Amália entende o gesto do desconhecido como um pedido de ajuda e começa a persegui-lo, a fim de salvar a sua alma enquanto o Dr. Jano corrói-se de culpa e evita, sempre que possível, a presença da adolescente. Paralelamente, Helena – a mãe de Amália – começa a se sentir atraída, sem saber, pelo rapaz que assediou a sua filha. Lucrecia Martel constrói, dessa forma, uma situação explosiva que caminha naturalmente ao encontro de um desfecho tenso. No entanto, o final do filme pode chegar a irritar os espectadores mais ansiosos, uma vez que não contempla uma solução para o caso. Irritação esta totalmente incompreensível, afinal não é apenas no fim, mas em todo o filme, que Martel mais sugere do que mostra, mais privilegia a riqueza das sutilezas do que a crueza das explicitudes. Entre o mostrar e o esconder, a diretora convida quem lhe assiste a mergulhar no nublado espaço das entrelinhas, onde o não-dito tem mais a expressar do que aquilo que é óbvio e explícito.
Os personagens das histórias de Martel habitam o terreno das ambigüidades e são, portanto, difíceis de se decifrar. Embora queira salvar o médico que a molestou, Amália sente um desejo secreto e reprimido por ele. Outro exemplo: sua melhor amiga, Josefina, nega-se a perder a virgindade antes do casamento, o que não lhe impede, porém, de permitir-se à penetração anal quando na companhia do seu próprio primo. Percebe-se, então, que a diretora não alimenta falsos moralismos: todos, em sua história, têm a sexualidade e a libido como companheiras, ainda que, em alguns casos, tal sexualidade seja visivelmente inocente e ingênua, o que denuncia a repressão social e religiosa que busca privar o homem de um desejo naturalmente humano.
Ao enquadrar em sua câmera personagens que vivem o dilema entre a satisfação dos desejos e a adequação destes às convenções sociais que tentam distinguir o certo do errado e o bem do mal, a diretora argentina vai de encontro a qualquer solução única ou moralista. Martel não apenas critica toda essa repressão – ao mostrar, em muitas das cenas, uma onipresente faxineira do hotel que literalmente esteriliza e detetiza todos os cômodos e metaforicamente limpa aquele ambiente de desejos e tentações desenfreadas –, como também rejeita essas dicotomias que não se sustentam na realidade. Para afastar da tela a idéia de tais cisões, a cineasta optou, por exemplo, por uma fotografia sem efeitos de claro/escuro, a fim de não dividir a face dos personagens em luz e sombra, evitando, com isso, a assimilação e a perpetuação de clichês como “duas caras” ou “lado obscuro” das pessoas.
Co-produzido por Pedro Almodóvar, A Menina Santa serve, ainda, como um instrumento de comparação entre as obras, tão contidas, de Lucrecia Martel – que tem sido considerada pelos críticos espanhóis como “o Almodóvar de saias” – e os filmes do diretor espanhol, notavelmente exacerbados. Na verdade, o cinema de ambos se assemelha à medida que ganham a cumplicidade dos espectadores, os quais, influenciados pelos filmes daqueles, se permitem a uma mudança no seu próprio ponto de vista moral. Mas a cineasta argentina vai além: através de alegorias e metáforas e permitindo-se fazer um cinema íntimo, que foge dos padrões de mercado e valoriza as liberdades narrativas, ela inquieta o público, seja por focar o cotidiano de forma tão asséptica e atemporal seja por permitir a quem lhe assiste acentuada liberdade de pensamento diante de tantas sugestões que brotam das cenas. Tanto que, ao se referir aos filmes de Martel, é extremamente comum que nossa memória chegue a se confundir entre o que os nossos olhos viram e o que a nossa mente imaginou – ambos têm a mesma intensidade no cinema da diretora argentina.
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