quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

"Profissão: repórter" por Maria Eugênia Bezerra Alves




David Locke está na África, fazendo reportagens sobre os conflitos tribais que ainda marcam a atribulada história do continente. Ou pelo menos é isso que tenta o personagem interpretador pelo premiado Jack Nicholson no filme Profissão: Repórter (The Passenger, 1975), do diretor italiano Michelangelo Antonioni (Blow Up, A Aventura). Logo nas primeiras seqüências, percebemos que ele não parece muito confortável com a situação em que se encontra. O ambiente que o cerca é inóspito e ele não consegue se comunicar muito bem com os habitantes da região. Apesar do status profisional que desfruta e da importância da sua missão, o repórter não demonstra interesse pela atividade.
O jornalismo já serviu de inspiração para muitos filmes, alguns deles até figuram entre os clássicos do cinema mundial. Para citar alguns poucos exemplos, podemos lembrar de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles; Todos os homens do presidente (All the President´s Men, 1976), de A.J. Pakula; O Informante (The Insider, 1999), de Michael Mann, e o recente blockbuster brasileiro Cidade de Deus (2002), dirigido por Fernando Meirelles.
Mas se, ao menos na maioria deles, a presença do jornalista é marcadamente relacionada aos dilemas éticos e aventuras da profissão, no filme de Antonioni o que mais se destaca são os conflitos do ser humano que está por atrás do profissional. Em comum, todos eles tem a relevante qualidade de discutirem questões políticas e os costumes da sociedade contemporânea no Ocidente (ainda que o filme de Antonioni tenha optado por fazê-lo de maneira marcadamente metafórica).
Quando um viajante morre repentinamente no hotel em que os dois estão hospedados, o desiludido Locke resolve assumir a identidade do conhecido. Ele agora é David Robertson (Chuck MulveHill), um homem de negócios aparentemente bem sucedido. No entanto, em pouco tempo, Locke descobre que a aventura é mais complexa do que aparentava, Mr. Robertson é um fornecedor das armas que sustentavam a guerrilha africana. Com a nova identidade, Locke começa viaja por diversos países da Europa e aos poucos descobre elementos que o fazem mergulhar cada vez mais no personagem.
Mas não espere cenas de tiroteios e perseguições alucinantes com carros manobrando em alta velocidade, porque simplesmente não faria sentido dentro da proposta de Antonioni. A película segue um ritmo mais calmo, um convite à contemplação e reflexão. Em uma construção do arquiteto catalão Gaudí, Locke conhece uma jovem universitária interpretada por Maria Schneider (O Último Tango em Paris), com quem terá um relacionamento afetivo. O aspecto labirítinco do prédio, aliás, diz muito sobre os elementos da narrativa. Na época em que o filme foi realizado, a psicanálise exercia grande influência na sociedade e no cinema.
Locke é brilhantemente construído por Nicholson através dos mecanismos de projeção e identificação entre sujeitos, que são importante objeto de estudo para a psicologia. É interessante acompanhar como ele tenta fugir para libertar-se das amarras de um casamento falido e da rotina profissional, para experimentar coisas que antes não poderia fazer. Fugir de si para buscar a própria verdade. Aos poucos, uma seqüência inicial, na qual um dos entrevistados vira a câmera para Locke e diz "suas perguntas revelam mais sobre você do que sobre mim", adquire um significado mais amplo.
Robertson parece realmente livre aos olhos do jornalista, não deixa rastros, não segue as leis. Mas, nesse sentido, vale prestar atenção à personagem de Maria Schineider. Ela não diz seu nome, nem sabemos de onde veio. Simplesmente segue com Locke, sem muitas exigências ou promessas de futuro. Ela está ali, simplesmente por que isso lhe parece satisfatório naquele momento.
Já para o protagonista, as coisas não são tão simples assim. O seu passado começa a persegui-lo quando o produtor para quem ele trabalhava, Martin Knight (Ian Hendy), procura por Mr. Robertson, pois acredita que ele foi o último a falar com o supostamente falecido Locke. Logo em seguida, a esposa do jornalista também entra na busca e, desconfiada de que ele não está morto, aciona a polícia. Não há como deixar de ser si mesmo, por mais que se queira. O tédio e a pressão do passado que teima em voltar aos poucos suga a vitalidade do personagem.
A cena final é um plano seqüência encantador, na qual apenas sugestões são o bastante para que o espectador possa compreender a grandiosidade e a beleza singela do momento. Antonioni nos ensina, com maestria, como utilizar recursos de câmera e montagem com precisão para cativar os espectadores pela simplicidade, sem prescindir da emoção. O próprio diretor considera que este é o seu filme estilisticamente mais maduro. Profissão: Repórter, indicado para a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1975, é uma obra bem acabada de um dos maiores expoentes do cinema moderno, preocupado em exercitar a combinação entre estratégias narrativas, na relação entre técnica e linguagem.

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