Há filmes que chamam a atenção do espectador por causa de reviravoltas em suas tramas. Mas foi outra coisa que chamou minha atenção em “A menina santa” (La Niña Santa, 2004), escrito e dirigido pela argentina Lucrecia Martel. Na verdade, um conjunto delas. Os tons escuros com que se compõem as cenas (há uma predominância de marrons, há muito preto, às vezes um vinho escuro); a aparência das personagens (não há ninguém muito viçoso ou radiante, todos parecem meio cansados, como se aceitassem a idéia de viver sem ter outra escolha... as unhas das mulheres são pintadas de escuro... a protagonista é pálida, nunca sorri, tem cabelos pretos sempre úmidos); o fato de o hotel onde se passa grande parte da película ser estranhamente escuro (a certa altura uma personagem diz a outra: “este quarto está tão frio, parece um túmulo”), onde a piscina não é límpida ou cristalina – é escura e mal conseguimos ver seu piso – além de as paredes ao redor terem lodo e estarem descascando. Foi de fato quando, passados vários minutos de filme, eu comecei a atentar para esses elementos – que dão ao filme uma sombria coerência – que fiquei empolgado, mergulhando em cena após cena, intuindo que, por trás daquela trama aparentemente banal havia algo maior.
Essa coerência – uma espécie de estética de filme de espírito (já ouvi em algum lugar “poética da estagnação”) – passa ao espectador, na verdade, tanta ou mais informação que qualquer trama ou diálogo. Mas é importante ressaltar que Lucrecia Martel esconde esses elementos atrás do realismo e os oferece sutilmente ao espectador. De fato, feliz é o artista que consegue equilibrar uma espécie de mimese documental com a abstração que é a concepção e esquematização de idéias. A diretora, delicadamente, edita, exclui e esconde de sua película qualquer imagem ou situação alegre, festiva, clara. Essa atmosfera pesada, que faz os personagens parecerem mortos-vivos se arrastando dentro de um poço fundo, úmido, com as paredes cheias de ervas esquálidas, também é realçada por pequenas cenas sem nenhuma função narrativa. Exemplos: um rápido diálogo sobre a empregada ter deixado a pia cheia de cabelos; ou quando um rapaz cai de uma janela, se levanta desnorteado e uma personagem diz: “está morto. As ações dele são reflexos motores”. Por tudo isso, se pode concluir que Martel faz parte daquele grupo de artistas cuja relação com o mundo não é positiva (podemos filia-la àquele Romantismo do século XIX, ou, voltando mais no tempo, àqueles artistas medievais que tiravam poesia das feridas e do sofrimento de Cristo ou, voltando ainda mais, aos bardos gregos que preferiam falar sobre a morte da Medusa a discorrer sobre a harmonia do reino de Zeus).
De modo que o campo de forças no qual se desenvolve a trama é basicamente negativo. E o que o filme tematiza é essencialmente o seguinte: a falta de amor e de afeto. Em torno de uma linha narrativa principal (Amalia – María Alche –, jovem estudante de colégio religioso, se apaixona por Dr. Jano – Carlos Belloso –, um médico casado que vem a um congresso realizado no hotel que sua mãe, Helena – Mercedes Morán –, administra e onde com ela mora) há outras: Helena, advinda de um casamento fracassado e ressentido, também se apaixona por Jano; uma senhora que ajuda na gerencia do hotel é amarga e negativa com todos, principalmente com a filha; Josefina, a melhor amiga de Amalia, transa escondida com um garoto; o irmão de Helena, que estudou com Dr. Jano, vê que também poderia ter sido um médico de sucesso, além de querer falar com os filhos que moram fora e não lembram dele. Martel, contudo, não aborda essas linhas preocupada com causas, conseqüências ou em mostrar diálogos e situações de clímax. Ao invés de mostrar uma relação sexual altamente relevante para o entendimento das ações de certos personagens, ela mostra uma masturbação – ato solitário e desesperado. O filme não quer “desenvolver” os personagens – quer mostrar a condição deles.
Li em várias resenhas sobre o filme a tentativa de esquadrinhar a importância narrativa do tema “religião”. Mas não achei que aborda-lo dessa forma fosse relevante. Amalia, ao se apaixonar por Jano, acredita que recebeu uma missão divina (era esse um assunto que vinha sendo discutido nas aulas que freqüentava) – salva-lo. Na verdade, não é possível dizer se Amalia de fato acredita, como uma devota, que recebeuum chamado dos céus. Há uma cena em que Josefina diz à classe que Amalia recebeu tal missão, mas esta tapa a boca da amiga e as duas dão risinhos como se a cena se passasse num colégio laico e ela estivesse com vergonha de dizer que estava querendo um novo namorado. Mesmo assim, acredito que receber a missão de salvar alguém é uma bela metáfora para se estar apaixonado. E, se a função do tema “religião” não acaba aí, é porque contribui, com sua insistência em histórias de chagas e de fantasmas, com a atmosfera geral do filme.
O anseio de não “desenvolver” os personagens, mencionado antes, faz de “A menina santa” quase uma sucessão de cenas mais ou menos fragmentadas. Algumas vezes a câmera focaliza as situações muito de perto, sem preocupação com um enquadramento inteligível, como se estivesse bêbada, e as imagens se tornam um tanto evanescentes, distantes (uma cena belíssima, que dura apenas alguns segundos, é quando, no elevador do hotel, Helena convida Jano para jantar). Mas isso não tira a coerência do filme, conseguida sobretudo, repito, por causa dos efeitos de sua “estética da estagnação”. E aquela intuição inicial, de que algo maior se escondia por trás de uma trama comum, se confirmou quando eu percebi que tal trama, nadando lentamente dentro da poética de espectros sensorial de Martel, queria mostrar uma visão de mundo da diretora.
E tal visão pode ser desse modo sintetizada: o mundo é um lugar onde as pessoas são zumbis e os impulsos para amar são sempre impossibilitados. A cena-chave nesse sentido é quando Amalia e algumas amigas saem de ônibus (a câmera está como descrevi há pouco). Elas – na flor da juventude – correm livres por uma floresta e por uma estrada. Mas a floresta é escura, na estrada passa uma carreta preta que quase as atropela, Amalia, apesar de rindo, quase cai num pequeno fosso, tiros são ouvidos. O ambiente é perigoso, cruel – e ele abafa as risadas e a vontade tímida de viver das jovens. O fato de uma argentina mostrar assim o mundo – o fato de ela fugir do discurso de certos bens culturais que buscam uma espécie de “identidade nacional” já formada, ou um “discurso do exótico” – é algo importantíssimo a ser ressaltado. Porque nos faz refletir sobre o motivo de algo dessa natureza (a vida de zumbi e a não concretização do amor) acontecer em mais lugares e com mais freqüência do que se imagina – independente de nesses lugares haver o costume de se dançar tango, samba ou ciranda.
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