http://www.youtube.com/watch?v=1WjsqVwWyrI
O crítico pernambucano de cinema Kleber Mendonça Filho, em seu texto sobre o filme “Maria Antonieta” (“Marie Antoinette”, 2006), fala sobre as vaias que o terceiro longa de Sofia Coppola levou quando veio a público pela primeira vez no Festival de Cannes e diz que é quase impossível achar uma critica sobre o filme que não mencione esse fato. Este texto não é exceção. A menção aqui, contudo, é para lançar as hipóteses de que nem mesmo o público de um dos mais prestigiados festivais de cinema no mundo está preparado para certas surpresas e de que a crítica cinematográfica atual é mais “influenciável” do que imagina.
Com relação à crítica, cito dois jornalistas aqui de Pernambuco cujas opiniões são consideradas relevantes quando o assunto é cinema. O primeiro é o próprio Kleber. Ele fez dois textos sobre o filme: um, logo após tê-lo assistido presencialmente em Cannes, abominando-o[1]; outro, passado o “calor” do festival, como ele mesmo admite, mais ameno, admitindo as qualidades técnicas do filme, dizendo que ele de fato falava de algumas coisas importantes, mas que tinha “um sabor específico: veja se é o seu”[2]. O segundo jornalista é Rodrigo Carrero, cujo sucesso de seu site de críticas pode ser constatado pelos comentários entusiastas em seu blog. Carrero analisa a estética do filme, quase o elogiando, para no final, vir com o seguinte: “Em meio a tantos acertos narrativos e à beleza visual evidente, o que realmente sobressai é a narrativa ausente, distante, quase onírica, de um filme entorpecido de ópio. Sim, é a obra de um autor, mas que autor chato, hein?”[3]. Ele não diz, no texto, o porquê de tal chatura.
O que houve foi que tanto o público quanto a crítica acharam o filme superficial (Carrero o chama de “vazio como um balão de gás”). Sofia Coppola já estava se consolidando no início dos degraus que levam a ser uma “cineasta importante”. Seu primeiro filme, “As virgens suicidas” (“The virgin suicides”, 1999), era uma adaptação literária bem-sucedida sobre o tédio adolescente. O seguinte, “Encontros e desencontros” (“Lost in translation”, 2003), um estudo sobre o casamento e o amor na contemporaneidade. E de repente o que ela escolhe para exibir em seguida? Kirsten Dunst interpretando uma rainha francesa num filme pouco fiel à História contada pelos livros.
No filme, Sofia não mostra nem por um segundo os meandros que a Revolução Francesa estava tomando nem os pobres passando fome em Paris. Pelo contrário: vemos apenas uma jovem rica gastando rios de dinheiro em roupas e outros objetos de futilidade; indo a bailes; fazendo festas dispendiosas em Versalhes; traindo o marido; tudo isso embalado por músicas de rock dos anos 80 e atuais. Assim, quase automaticamente, saem da boca daquelas cultas pessoas que o filme era uma ode ao consumo e à futilidade; com ele não se aprendia história e ainda se batia palmas para o capitalismo (como elas bem o fazem sem se dar conta, mas isso é outra história).
Mais ou menos a partir do segundo terço de “Maria Antonieta”, de fato o que vemos é o que foi descrito no parágrafo anterior. Mas os que se precipitaram a uivar diante da enorme tela em Cannes estavam cegos ou distraídos demais para ver a primeira parte do filme. Em essência, ela mostra o peso da cotidianidade mecânica e castradora de Versalhes. Vê-se repetidas vezes a rotina da Antonieta recém-chegada ao palácio. Cerimônia da vestimenta ao acordar à Refeição com o marido à Igreja à Fofoca com algumas damas da corte. Essas coisas são vistas cansativamente quase que dos mesmos ângulos e com a mesma música (Vivaldi, um raro “clássico” na trilha sonora). Cerimônia da vestimenta ao acordar à Refeição com o marido à Igreja à Fofoca com algumas damas da corte. Cerimônia da vestimenta ao acordar à Refeição com o marido à Igreja à Fofoca com algumas damas da corte.
Mas a jovem Antonieta não se dá bem nesse mundo. Ela até que tenta, mas além de achar todas as suas responsabilidades e tarefas muito tediosas, nem um herdeiro – o que mais se espera dela – consegue dar à França. É aí que ela se “rebela”. Dá as costas ao protocolo de Versalhes em busca de outra coisa. Mas o que seria essa outra coisa? Gosto de chamá-la “liberdade”. A crítica do New York Times – a única lida por mim que parece ter tratado o filme de maneira profissional e com qualidade – chamou de “prazer”[4]. Acho igualmente válido. Talvez a crítica pernambucana tenha intuído isso, mas, a seus olhos, a busca por prazer é algo superficial, vazio e fútil. Ela sem dúvida não conhece um sujeito chamado Freud e um pensamento intitulado Pós-estruturalismo. Ambos provaram – isso já é ponto pacífico – o quão importante tal tema é.
Essa dicotomia “castração/prazer” pode ser considerada a maior preocupação da obra de Sofia. “As virgens suicidas” – também com Kirsten Dunst – é sobre algumas garotas sonhadoras que de repente se dão conta que cresceram e que o mundo exige delas algo totalmente diferente do que imaginavam. “Encontros e desencontros” é sobre uma jovem cujo casamento já está começando a esfriar no meio das convenções e que (re)descobre o amor ao conhecer um ator brincalhão com que vai beber e cantar karaokê nas noites de Tókio. “Maria Antonieta” não é um filme “histórico” porque Sofia Coppola o utiliza como mote para dar continuidade ao debruçamento dobre essa temática e não para substituir grossos manuais de bibliotecas. A coerência temática de sua obra faz dela uma expoente do que a crítica chama “cinema autoral”.
A busca por liberdade/prazer de Antonieta segue mais ou menos essa ordem: 1) imersão no consumo de “produtos de estética” (roupas, sapatos, perucas suntuosas, jóias); 2) festas dispendiosas (com desperdício imenso de comida, muito champanhe, jogos de mesa e gargalhadas); 3) isolamento numa mansão particular perto de Versalhes, onde ela espera se livrar dos “artifícios da civilização” – isso é ela lendo Rousseau – num contato maior com a natureza e 4) encontro de um amor verdadeiro, em oposição à frieza de seu marido contentado com um cotidiano regrado e sufocante.
Essa busca não é mostrada por Sofia Coppola como algo fútil, embora muita gente tenha visto dessa maneira. Antonieta busca alegria e felicidade nas atividades citadas, mas “Maria Antonieta” é um filme triste. Há um choro baixinho, latente, deprimido demais para vir à tona enquanto a liberdade é procurada. Essa é uma das funções da seleção depressiva “anos 80” nas cenas. Uma fotografia gélida e azul embala sua festa de aniversário (quando vê bêbada, com alguns amigos, o alvorecer no jardim de Versalhes e ao fundo toca “Ceremony”, de New Order: “This is why events unnerve me/ They find it all a diferent story...”) e sua volta do baile, onde se apaixonou por um soldado (ouve-se “Folls rush in”, da “new wave” Bow Wow Wow: “Fools rush in/ Where wise men never go/ But wise men never fall in love/ So how are they to know?”). Tudo tem a evanescência nostalgica de um eco: e nostalgias são sentidas quando a felicidade é passado. A liberdade de Antonieta, assim, já tem o estigma da decadência mesmo mal tendo começado.
Neste ponto, é importante se falar do terceiro terço do filme. Aqui Antonieta percebe que os meios pelos quais ela tentou ser livre fracassaram. Isso me lembra uma frase de Terry Eagleton sobre o pensamento contemporâneo: “todas essas coisas prometiam uma felicidade geral mais ampla. O único problema era que, na verdade, ela nunca chegou”[5].A crise que desembocará na Revolução Francesa não a deixa mais dar festas ou comprar roupas. Ela tem que ajudar o marido nessa crise e por isso deixa seu paraíso rousseauano e volta a Versalhes. Seu amante tem que ir à guerra (ajudar os americanos na Independência). A terceira parte do filme é a mais triste (ganha para o início quando a inocente princesa é arrancada de seu mundo em Viena e enviada à França onde terá novas responsabilidades - uma metáfora para a passagem da juventude para a vida adulta). A música clássica volta – dessa vez é uma ópera mais que melancólica.
Maria Antonieta não percebeu que os meios pelos quais ela tentou ser livre eram sustentados por aquilo que exatamente a mantinha presa: Versalhes. O dinheiro para as roupas, as festas, a mansão isolada e os lençóis limpos que embalavam seu adultério vinha de Versalhes. Nesse sentido, quanto mais ela queria se afastar do palácio, mais dele ela ficava presa. Não há aí um eco de “já ouvi essa história antes”? Se há, descobri – e isso parece bem plausível para mim – o porquê de “Maria Antonieta” ser como é. Isto é, o porquê de Sofia Coppola ter escolhido músicas contemporâneas, Kirsten Dunst, e não mostrar os meandros da Revolução.
A trilha sonora e Dunst (um rosto jovem norte americano) dão um tom de “atualidade” ao filme. A impressão que se tem é que o que está acontecendo com a Maria Antonieta da tela poderia estar se passando com qualquer jovem dos tempos atuais. A escolha pela atmosfera oitentista é bem significativa, porque Sofia Coppola tinha mais ou menos a idade de sua protagonista nessa década. Mas escolher um enredo ambientado no século XVIII – e especificamente a história dessa rainha mal vista nas salas de aula – trás mais vantagens do que se imagina. A dicotomia cotidiano regrado/liberdade é, nele, mais que aparente. E há Versalhes: o sistema que aprisiona e castra, mas ao mesmo tempo oferece possibilidades de prazer – mas possibilidades passageiras. Aqui sugiro uma metáfora: Versalhes é o Capitalismo.
Há de fato mais semelhanças entre os dois do que se pode imaginar: ambos são sistemas que governam. São geridos a custa da fome e exclusão de milhões. Precisam o tempo todo manter o controle – mesmo que para isso precise oferecer coisas que aparentemente são contrárias a sua natureza: certa liberdade, prazer frugal.
“Maria Antonieta” não é um filme “histórico” em parte pelo motivo que mencionei antes. E em parte porque não seria interessante mostrar de perto a Revolução Francesa: os desdobramentos dela são bem conhecidos. Li algo que a sintetiza brilhantemente: “Ao sustentar a soberania como princípio de Estado, os revolucionários perpetuavam o ‘príncipe’, quer dizer, o modelo estatal (...) Ao situar a Nação no primeiro plano da cena política, os revolucionários deslocaram o monarca. Mas nesta ampla transformação não se buscou senão uma coisa: ocupar o lugar do Rei”[6]. A “revolução” de fato é mostrada na película, mas do seguinte modo: uma turba anônima, sempre mencionada ao longo do filme de forma perturbadora, chega ao palácio de Versalhes para destruí-lo. A crítica do site “Contracampo”, apesar de confusa e difusa, conseguiu intuir a importância disso[7]. Maria Antonieta não conseguiu destruir o que lhe fazia mal. Mas o povo o fez.
Muita gente não gostou desse final: esperavam ver a cena da decapitação. Mas cenas finais são escolhas, como tudo dentro de um filme. E a de Sofia Coppola foi mostrar uma sala de Versalhes destruída ao amanhecer, depois da invasão noturna da multidão. O canto de um pássaro é ouvido. Isso sugere, assim como os raios de sol, o surgimento de uma nova era? Se fosse um filme histórico, saberíamos exatamente como seria essa era. Mas não é: nunca se sabe se o enredo se passa no século XVIII ou nos anos 80. Seguem os créditos e a sinistra “All cats are grey”, da banda inglesa The Cure.
[1] FILHO, Kleber Mendonça. Maria Antonieta. Disponível em: <http://www.cinemascopio.com.br/>. Acesso em 8 jan. 2008.
[2] FILHO, Kleber Mendonça. Animalzinho enjaulado. Disponível em: <http://www.cinemascopio.com.br/>. Acesso em 8 jan. 2008.
[3] CARRERO, Rodrigo. Maria Antonieta. Disponível em: <http://www.cinereporter.com.br/scripts/monta_noticia.asp?nid=1672>. Acesso em 8 jan. 2008.
[4] SCOTT, A. O. A Lonely Petit Four of a Queen. Disponível em:
[5] In: EAGLETON, Terry. Depois da teoria: um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 82.
[6] MAIRET apud MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 4. ed. Rio de Janeiro, UFRJ, 2006, p. 135.
[7] “A leveza é só o atributo provisório – e dilatado na sua duração – de uma brutalidade extra-campo, que cobra seu lugar no fim de tudo”. In: OLIVEIRA, Luiz Carlos. Maria Antonieta. Disponível em:
Excelente texto. Marie Antoinette é, na minha humilde opinião de estudante de cinema, um dos filmes mais incompreendidos e subestimados dos últimos anos. Sofia Coppola brilha ao se apropriar de sutilezas, metáforas, e outras linguagens específicas. Obra-prima.
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