quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

"O déspota é esclarecido?" por Luís Fernando Moura


http://www.youtube.com/watch?v=_DlYCvxvPZY


Inland Empire, aponta a projeção em 16:9 do cinema. A imagem é de um toca-discos, num close invasivo de onde saem sons para compor a cinematografia. Ali está o aparelho analógico, de um ar retrô controvertido pela técnica que David Lynch usou para construir o filme. Não chamem de película o que vocês não conhecem. O autor inaugura a tecnologia de gravação digital em sua obra. Quando menos se espera, é a dimensão tosca dos pixels de sua câmera semi-profissional que possibilita a imersão onírica no fantástico mundo criado pelo diretor em seu longa mais experimental. Enfim, sós, Lynch e o sonho. Talvez por isso, o nome pouco criativo no português brasileiro, Império dos Sonhos, de onde parte a premissa entregue ao espectador para facilitar sua jornada, e talvez empobrecê-la. Aqui, o que vale é a experiência das sensações.






Laura Dern está impecável na interpretação de uma personagem tipicamente lynchiana: não há histórico que se conheça com consistência ou traço de realismo em sua condução psicológica. O que se vê a todo tempo é o uso alegórico dos personagens em função de um universo sensorial que passeia pelo surrealismo, mas tende até ao abstracionismo. O abuso dos homens é para criar figuras fantásticas que permeiam seu clássico imaginário de horror, suspense, dramalhão e humor negro, produzindo figuras extrema e paradoxalmente irônicas. Como não há adequação a beabás matemáticos que tornem personagens ou situações minimamente previsíveis, aqueles se tornam superfícies aparentemente rasas, mas que se complexificam em dimensões nada poligonais: o ambiente tridimensional é obtuso e obscuro, e qualquer passo se desenrola ao longo de um horizonte inalcançável de possibilidades. Ainda que iniciados no filme a partir de referências narrativas razoavelmente plausíveis, os personagens desandam da factualidade confortável para que se faça possível um percurso estético capaz de extrapolar as noções convencionais de narrativa, para ir além. Neste trajeto, Dern é o centro de toda a multissignificação dos seres e, da sobriedade, forja a loucura, a desordem, a perdição, a entrega, o drama rasgado. Não à toa, a atriz co-produziu Inland Empire. A obra mostra ser, no fim das contas, uma espécie de projeto pessoal também seu. As atuações de Justin Theroux, William H. Macy, Jeremy Irons, Naomi Watts, Laura Elena Harring, ademais, são sinal cabal de que o projeto surge como o trunfo marginal de amigos que dão um pulo fora do mainstream em busca de algo maior que si mesmos. O cinema de Lynch não se mede pelos seus personagens.






Inland Empire termina, logo, sendo um filme extremamente autoral, provavelmente um dos mais honestos da carreira do diretor. O que se vê é a retomada de elementos presentes em curtas-metragens da década de 1960, que iniciavam a carreira do até então artista plástico. A morbidez dos quadros orgânicos de Lynch, quando o artista misturava tinta e restos mortais de ratos e insetos, extrapolados pela imersão no que chamava quadro em movimento, a partir de Six Figures Getting Sick Six Times, parece ter sido reavida em seqüências que vão além do absurdo e confundem o espectador a todo o tempo, e sempre ironicamente. A construção formal da narrativa iniciada em Eraserhead, ainda que num exemplo não convencional do que se conhece por uma “lógica do enredo”, levada a um dos seus exemplos mais extremos em A História Real e a uma das suas subversões mais radicais em Estrada Perdida, parece ter sido deixada de lado quase que absolutamente. Se a protagonista Nikki é apresentada ao espectador sob uma aura factível, o universo que a permeia é fecundo de mistério e dá à luz rapidamente para que se lance a escuridão. A partir daí, um misto de noir e de videoarte dá margem à já comum estereotipação tosca dos estilos, a que Lynch recorre várias vezes, e a um hibridismo incômodo. Do espaço estranho, obscuro, o imperador por trás das câmeras estrutura telenovelas, cenas de suspense, de drama, de horror. Faz emergir um videoclipe entre prostitutas aparentemente californianas numa Polônia que parece mais um não-lugar. “Do the locomotion with me”, ri Lynch do espectador, e o ama um pouco também.






Se a cinematografia dilui as rédeas de um roteiro enxuto (ou de qualquer roteiro; Inland Empire foi escrito nas noites anteriores aos dias de filmagem), o cinema está cada vez mais presente no enredo. Seguindo a temática desenvolvida em Cidade dos Sonhos, Lynch se entrega a uma obsessão pelo sonho de Hollywood e mergulha em sua desintegração a partir da tragédia. A Hollywood-desejo tranfigura-se num vilão sobrehumano que constrói universos em 7 dias ou em qualquer tempo para absorver as criaturas. A metaforização de tudo talvez não tenha, como foco, o engajamento político de um diretor marginalizado pela indústria americana. Talvez, assim, Inland Empire fosse até lugar-comum. Mas, para além de Cidade dos Sonhos, a obra se aproveita do espaço geográfico e temporal de uma Califórnia do novo século para aprisionar a personagem num universo sensorial que se aproveita do sonho – e do pesadelo – como principal alegoria da sensação.

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