quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

"“O Criado”: o conflito entre as ‘paredes brancas com toques azuis’ e o ‘fúcsia e vermelho mandarim’" por Diogo Fonseca


Digamos que cada relação de poder – e qualquer uma contêm poder – tem três fases. Primeiro, a harmonia: a idéia de que os elementos, como estão organizados, se completam. Segundo, a tensão: qualquer hierarquia é um tipo de dominação insustentável. E, enfim, duas conseqüências possíveis: ou se abafa, por meio da força, a insatisfação dos subordinados; ou se perece e o oprimido toma o lugar o derrotado.



“O Criado” (The Servant, 1963), de Joseph Losey, retrata essas fases perfeitamente. E não só uma, mas duas vezes e com finais diferentes. O forte tensionamento da relação entre o aristocrático Tony (James Fox) e o criado aparentemente perfeito Barrett (Dirk Borgade) é um tipo de representação da fria Inglaterra da época que, por não ter passado por uma revolução burguesa violenta, ainda carregava o peso do conflito. De um lado a “imutável” e sólida classe alta, com seu bom gosto e ar superior, do outro, as classes subalternas, os serventes explorados com sua vulgaridade e vontade de ascensão social a qualquer custo.



Esse clima de tensão social da Inglaterra é o clima de tensão do filme. Ainda que ficcional, a obra surpreende por descrever um processo histórico sem parecer entediante ou factual: mantém sua qualidade tanto no roteiro como na direção. E chega a ser engraçado como uma citação pensamento do Marx histórico se encaixa delicadamente na narrativa, dizendo:

“Hegel observa (...) que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.”

Barrett, primeiramente, se usa da confiança de Tony para manipulá-lo e dominá-lo. Quando é descoberto, acontece a ‘tragédia’: ele é demitido e Tony, sem encontrar um substituto, mergulha num tipo de decadência e melancolia.



Eles se encontram novamente, e Barrett suplica a Tony que o contate novamente. A comodidade e o conforto falam pelo aristocrata quando ele aceita o pedido crendo no arrependimento do criado. E história se repete: Barrett não agüenta ser totalmente explorado e entra em conflito com o patrão. Só que dessa vez ele “ganha” o embate, subordinando Tony. E assim vemos o retrato magistral de Losey sobre a essa “tomada do poder” por Barrett, que inverte os papéis ao invés de transgredi-los. A casa de Tony (e poderia ser a sociedade inglesa) é tomada por uma decadência material e, principalmente, de valores. A vulgaridade do criado, que é mostrada desde o começo do filme na sugestão de Barrett de cores fortes para as paredes da residência (‘fúcsia e vermelho mandarim’), se torna o tom do local, em detrimento do ‘bom gosto’ elitista de Tony. As festas orgiáticas mostram que a história se dá agora como ‘farsa’: não há mudança de fato na relação, apenas uma alternância dos poderes e uma decadência dos valores.



Em meio às delicadíssimas tomadas de Losey, em que a câmera vai para frente, anda para trás, pára e, só quando se acomoda, a cena se inicia, temos uma obra-prima. Cinema britânico da mais alta profundidade e fidedignidade feito por um diretor – e, se não tivesse lido essa informação, não acreditaria, pois Losey transparece ser um típico englishman – americano. “O Criado”, por fim, se oferece como representação do processo histórico sem ser chato ou simplista. E nem por um segundo poderia deixar de ser belo esteticamente e interessantíssimo como ficção, por mais pretensioso que fosse.

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