quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

“Traídos pelo desejo: os jogos do charme" por Diogo Guedes






Em menos de duas horas, tantos assuntos. Neil Jordan, no seu thriller-drama político, interliga diversos temas em uma só narrativa. De início, parece ser a simples história de um seqüestro com pano de fundo político. Contudo, sem deixar na cara, o filme passa a se focar no começo da amizade incomum entre um seqüestrador, Fergus (Stephen Rea) e o seu seqüestrado, Jody (Forest Whitaker). Já com a morte de Jody, volta-se para o isolamento individual de Fergus e, novamente sem transparecer, o filme se torna uma busca pelo amigo falecido a partir da vivência com sua ex-namorada, Dil (Jaye Davidson). Caso o enredo pareça confuso ou antinatural, a falha é desse que vos escreve. “Traídos pelo desejo” é tão simples quando abrangente.

São atuações excepcionais, uma ótima direção que se disfarça em escuridões e boas tomadas, um Oscar e mais cinco indicações e uma sinopse nada fácil de realizar. Nessa linha de raciocínio, “Traídos pelo desejo” se transformaria em mais um desses quase clássicos do cinema, tipicamente com grandes atores provando que são grandes e uma história polêmica.
Pois eu prefiro seu nome original, “The Crying Game”. Porque só assim me parece que, antes de tratar de uma luta política e pessoal em busca da identidade, antes de pôr o tema da sexualidade num patamar ousadíssimo, antes de falar de um tipo de síndrome de Estocolmo - a tentativa de Jody de conquistar a simpatia e amizade de Fergus -, o filme é sobre o jogar - sim, jogar. Existe um jeito de se conversar e de se comportar característico na narrativa que é comparável ao que é o cinismo para a filmografia de Billy Wilder e a neurose e a paranóia para Woody Allen. É tão presente e pitoresco, que se torna um dos temas - e talvez o principal - da obra.
Por exemplo, Dil, cabeleireira e namorada do falecido Jody, é procurada por Fergus. A relação entre os dois, no entanto, não começa de uma conversa direta: é um jogo com as regras de Dil. Ela fala com o seu amigo e garçom Col (Jim Broadbent) se dirigindo na verdade ao irlandês sentado no balcão. Isso permite que a personagem, junto com o diretor da obra, se use constantemente da ironia e de um diálogo que conduz como e para onde quiser. A cabeleireira brinca com Fergus e escancara para qualquer um seu charme. Ela o deixa desconfortável, interroga-o, lhe dá ordens e, finalmente, o conquista. O ex-terrorista que havia ido cuidar de Dil, atendendo ao pedido de Jody, cai numa armadilha igual a que o soldado sofreu com Jude (Miranda Richardson) e o IRA. É quase como se Jody o tivesse mandando encontrá-la porque sabia que Fergus não resistiria ao charme de Dil. Ou meramente porque Fergus talvez fosse o único além do próprio soldado que a mereceria.

Claro que Dil conversa e conquista melhor alguém se tiver uma terceira pessoa presente, para suas indiretas. Mas não só ela, sim quase todos os personagens do filme. À exceção de Fergus, o carregado de culpa, “bom por natureza”, calado e taciturno irlandês, todos os personagens se usam desse tom de ironia e de charme da conversa a três. Mesmo quando só há duas pessoas, os personagens se referem a uma terceira: Jody, quando preso, fala de si como se falasse de um amigo distante – talvez porque já sentisse sua morte. E possivelmente todos os espectadores sabiam, desde seu seqüestro, que ele iria morrer. Assim como sabiam que Fergus não conseguiria matá-lo.

Em “The Crying Game”, vive-se Jody por todo o filme, mesmo depois de sua morte. Aquele Fergus que freqüenta o bar Metro, que protege Dil e também se apaixona, é um Fergus que homenageia o soldado. Ele não busca Dil: quer, na verdade, encontrar seu amigo Jody. E dá até pra imaginar que a reação do soldado ao saber que Dil não era de fato uma mulher deve ter sido a mesma que a de Fergus: um impulso imediato de nojo e raiva, somado a uma ternura posterior. Mas ambos a amam por ou apesar de sua singularidade - e, na verdade, não importa o motivo real.

O passado de Fergus, no entanto, o persegue assim como ele persegue o passado de Jody. Seus ex-companheiros o encontram e avisam que ele precisa fazer uma missão para que o casal não morra. Dil mata um dos que os perseguem, mas Fergus escolhe levar a culpa: mais uma vez mostra que está ali para protegê-la. O final quase feliz não poderia mostra mais o lado jogador da obra já que, numa visita de Dil ao companheiro na cadeia, ela persiste com suas pequenas e charmosas estratégias que usou para conquistar o ex-terrorista. O seu “querido” cuidou e vai sempre cuidar dela.

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