quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

"A simplicidade requintada do viver" por Breno Lemos Pires




Como seria a experiência de um mordaz, indócil e implacável crítico de cinema ao trocar a pena pela câmera? Otimistas poderiam imaginar um abrandamento, uma moderação de tom; jamais poderiam conceber o que aconteceria com François Truffaut (1932–1984). Mais do que diluir a acidez que antes destilava, o cineasta francês — um dos expoentes da Nouvelle Vague, junto com Jean-Luc Godard — foi capaz de sublimar as agruras da existência, unindo-as à doçura da vida, ao longo de sua vasta e profícua obra. Em Beijos Poibidos (Baisers Volés – França, 1968, 90 min), Truffaut dá seqüência à história do seu personagem mais conhecido: Antoine Doinel, interpretado por Jean-Pierre Léaud. É o terceiro dos cinco filmes sobre Doinel — que é considerado, por semelhanças quanto à infância, o alter-ego do diretor.
Nove anos depois de, na pré-adolescência em Paris, “pintar o sete” (expressão idiomática equivalente à francesa les quatre cents coups, título original de Os Incompreendidos ), Antoine Doinel, já no início da fase adulta, procura se readaptar à vida normal após ser dispensado do exército. A primeira providência é procurar duas mulheres: uma prostituta e uma antiga namorada, Christine Darbon (Claude Jade) — nesta ordem. Ele tenta roubar-lhes um beijo, e ambas recusam. Este fato, em associação com um fragmento da canção que embala o filme (Que reste-t-il de nos amours, de Charles Trenet) explica o título do filme.
Doinel passa a trabalhar como recepcionista de hotel, é demitido; vira detetive particular e — antes de ser demitido — tem, ao menos, a oportunidade de conhecer Fabienne Tabard (Delphine Seyrig), esposa do lojista Georges Tabard (Michael Lonsdale), por quem é contratado para descobrir por que ninguém o ama. Doinel mostra romantismo ao descrever poeticamente a ‘excepcional’ Madame Tabard, com quem tem um encontro único entre quatro paredes, apesar de ele se não se achar digno dela. Percebe-se, em Beijos Proibidos, o destaque que Truffaut dá ao tópico mulheres, que perpassa a sua obra como um todo. Entretanto, há também amor, de diferentes tipos. O amor adolescente de Doinel e Christine, o amor de um homossexual que recorre aos detetives para encontrar seu amante desaparecido, o amor “definitivo” de um admirador secreto de Christine por ela, o amor de que o Senhor Tabard sente falta... Às vezes condição de liberdade, às vezes aprisionador — quase sempre confuso —, o amor nunca está ausente.
Truffaut retrata essas situações vividas por Doinel sem floreios, sem qualquer espetacularização: como realmente são. Dotado de uma sensibilidade extraordinária, faz com que as sutilezas se relevem por si só. É no dia-a-dia que Doinel se faz Doinel. É de pouco em pouco que ele — ora tímido, ora expansivo, e sempre atrapalhado — suavemente comove o espectador que se propõe a acompanhar a busca dele pelo prazer, que se encerra na simplicidade do existir. Doinel tem vida própria. Não faz parte de um enredo com começo, meio e fim; é o próprio fim e meio. Sua história não tem um ápice. Em certo momento, aliás, parece haver a intenção deliberada de gerar um anticlímax. É tudo tão despretensiosamente natural que parece um recorte, uma moldura de um período da vida desse personagem — que só pode ser de carne e osso.
Aos espectadores comuns desse início de século XXI, acostumados com os blockbusters contemporâneos, supertecnológicos e multimilionários, é provável que Beijos Proibidos não apeteça. Para eles, a ausência de ingredientes como clímax e antagonistas pode causar certo enjôo, e o fim do filme, por não consistir em um desfecho espetacular, talvez lhes seja indigesto. Contudo, se o final não tem o recheio da moda, é porque não precisa. Beijos Proibidos é para ser degustado pedaço por pedaço — um prato cheio para cinéfilos ávidos por humanidade e por uma simplicidade requintada, com que Truffaut, como poucos, temperava sua obra.

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