Cor-de-rosa claro
Há quem ache ridícula a seqüência inicial de Veludo Azul (Blue Velvet, 1986), de David Lynch. Embalados por um blues nostálgico da década de 60 – a música Blue Velvet que permeia todo o filme – os habitantes de uma cidadezinha norte-americana, Lumberton, são vistos praticando suas cotidianidades e logo se percebe que “realismo” é uma palavra que passa longe de tudo o que se relaciona à película. Sob um sol brilhante de comercial de margarina, crianças brancas e de roupas limpinhas atravessam uma pista na faixa de pedestres, protegidas por um guarda satisfeito, para irem harmoniosamente à escola. Uma carreta do corpo de bombeiros da cidade passa por um bairro, não para apagar um incêndio, mas para acenar – largos sorrisos, câmera lenta – aos vizinhos que não precisam pedir mais nada a Deus, porque podem acordar e, depois do café-da-manhã, pegar o jornal que um garoto – provavelmente também sorridente – jogou em seus jardins de grama verde e de flores tão bem cuidadas que até parecem artificiais.
O filme se desenvolve a partir do ponto de vista de um jovem que nasceu e se criou nessa cidade dos sonhos – Jeffrey Beaumnont (Kyle MacLachlan). De alguém cujas ações se estruturam pelos pressupostos que guiam a vida pacata de seus habitantes. E não de alguém que os ache ridículos. Eu, particularmente, acho ridículo o momento em que Jeffrey revê Sandy (Laura Dern), que conhecera na infância. Da escuridão, ela, loira, jovem, rosto imaculado e brando, vestida de cor-de-rosa claro, surge e um glorioso violino de contos de fadas é ouvido. Mas é assim que Jeffrey começa a apaixonar-se por ela. E é nesse momento que o espectador ou pára de ver o filme, ou se rende e aceita que aquelas categorias estéticas que legitimam a vida em Lumberton – clichês de filmes para a família estadunidense, iluminação de seriado de TV infantil ou de propagandas que vendem o american way of life, o sentido de uma vida tranqüila e harmoniosa, etc – serão usadas sem medo por David Lynch. Mais: serão o eixo do filme. Seu ponto de partida, quer as achemos ridículas ou não.
Vermelho perigoso
Mas David Lynch faz questão de, sempre que possível, colocar uma nota dissonante, por menor que seja, nessa melodia harmoniosa e puritana. Curtindo sua vida doméstica perfeita, a mãe de Jeffrey assiste à TV – mas é algum filme sombrio onde um homem atira em outro. No quintal, o pai dele rega o jardim, mas a ação é interrompida por um enfarte e ele cai na lama que a água da mangueira formara. Mais abaixo, escondidas pela grama brilhante, formigas são vistas assustadoramente de perto pela câmera – e o som perturbador de suas relações caóticas ressoa. O recado de Lynch é claro: o mundo não se restringe ao que os habitantes de Lumberton pensam. Algo para eles estranho, assustador – um outro bárbaro que vive nas fronteiras – existe e pode ser muito perigoso.
Jeffrey tinha ido viver longe de Lumberton, mas regressa porque seu pai é internado. A caminho de volta do hospital, acha, sem querer, uma orelha humana. Leva-a ao detetive da cidade – o pai de Sandy – e, depois disso, é tomado por uma curiosidade impulsiva para saber que história macabra está por trás daquela orelha decepada, que sombras misteriosas falam, numa voz abismal, através dela. Sandy dá as informações que conseguiu entreouvir de seu pai: sabe-se que uma mulher chamada Dorothy Vallens (Isabella Rossellini), cantora de um clube noturno, está envolvida. Os dois vão ao apartamento dela, para investigar.
Jeffrey e Sandy são duas crianças brincando de mãos dadas de detetive num playground de plástico colorido de tons claros – um rosa bebê, um azul-céu, um verde pastel – ele com seu carrinho novo e brilhante, ela com seus cachos loiros amarrados. Mas uma coleguinha triste, de cabelos pretos e batom vermelho vem perturbar a brincadeira: Dorothy. E ela tem amiguinhos que nem ela deseja. Amiguinhos que vêm quebrar o playground e levar todo mundo a outro – abandonado e enferrujado, rangendo sobre um chão de lama. “É um mundo estranho” – a frase é dita no filme três vezes, no sentido de: “há coisas desconhecidas no mundo”. Para David Lynch: há outros mundos. E o curioso Jeffrey quer conhece-los. A câmera tragada em direção à entrada da orelha decepada é Jeffrey sendo puxado pela ressaca das ondas desse mundo estranho. O apartamento de Dorothy é vermelho – um vermelho tendendo a vinho, sensual e inebriante – um vermelho que alerta: aqui é um local de transição: entre ou saia.
Azul escuro
O que Lynch queria desde o início era captar, flagrar o fascínio e o medo que causam em Jeffrey seu ingresso nesse outro mundo – violentamente contrastante daquele em que vive – mundo para ele horrível, deformado, bizarro, perigoso, emanador de morte. Lynch quer passar ao espectador uma visão psicológica específica desse mundo – a de Jefrrey, um habitante de Lumberton.
O ponto em torno do qual se constrói esse mundo é Frank Booth (Dennis Hopper): um marginal envolvido com drogas, cujas ações se guiam por impulsos de sexo pessoais primitivos, os quais afloram violentamente e são um prato cheio para quem gosta de psicanálise. O contraste com a “estética Lumberton” é patente: agora, os movimentos se dão num mundo escuro, onde há apenas velas que ameaçam ser apagadas por ventos fortes; as pessoas são feras que rugem; Frank é uma gárgula de catedral medieval; há bocas lascivas de sanguessuga, com batons vermelhos demais; há tapas de orgasmo; há a velocidade perigosa de um carro numa estrada noturna, as luzes das ruas passando muito rápido; a trilha sonora é sinistra e tem, às vezes, violinos assustadores e rápidos, como os cortes de cena. Tal é a visão de Jeffrey do mundo de Frank, onde a emoção está à flor da pele (uma música – A candy-colored clown – é o suficiente para fazer Frank gritar: “vou transar com qualquer coisa que se mexer!”); onde o sexo e a morte são fundamentais.
Frank, descobre Jeffrey, seqüestrou o marido e o filho de Dorothy e por isso a obriga a satisfazer suas neuroses sexuais. Ela, quando se relaciona com Jeffrey, se flagra em atitudes masoquistas. Ela é, como seu apartamento, uma mulher de transição. Tinha uma vida “normal” de que sente falta. Agora é obrigada a usar um robe de veludo azul escuro que é a principal tara de Frank. O masoquismo a faz concluir tragicamente: “ele passou sua doença para mim”. Ela diz a frase duas vezes ao longo do filme.
“Por que existem pessoas como Frank?” – é a voz chorosa e inocente de Jeffey perguntando. Lynch não responde, nem quer responder. Ele não se propõe a dar ou explicar causas para essa separação de mundos ou para a existência de um mundo escondido, submerso, cavernoso, estranho. Deixa isso para os sociólogos/ psicanalistas/ curiosos que analisam o filme. Ele quer é se debruçar sobre as sensações que a transição entre esses mundos causa. Ele quer é mostrar uma visão específica – a de Jeffrey – sobre o anormal e o bizarro. Às necessidades de Lynch, o exercício estético basta. E Veludo azul é precisamente isso: a pesquisa sensual de um dado debruçamento sobre o desconhecido, o misterioso e o horrível.
Há quem ache ridícula a seqüência inicial de Veludo Azul (Blue Velvet, 1986), de David Lynch. Embalados por um blues nostálgico da década de 60 – a música Blue Velvet que permeia todo o filme – os habitantes de uma cidadezinha norte-americana, Lumberton, são vistos praticando suas cotidianidades e logo se percebe que “realismo” é uma palavra que passa longe de tudo o que se relaciona à película. Sob um sol brilhante de comercial de margarina, crianças brancas e de roupas limpinhas atravessam uma pista na faixa de pedestres, protegidas por um guarda satisfeito, para irem harmoniosamente à escola. Uma carreta do corpo de bombeiros da cidade passa por um bairro, não para apagar um incêndio, mas para acenar – largos sorrisos, câmera lenta – aos vizinhos que não precisam pedir mais nada a Deus, porque podem acordar e, depois do café-da-manhã, pegar o jornal que um garoto – provavelmente também sorridente – jogou em seus jardins de grama verde e de flores tão bem cuidadas que até parecem artificiais.
O filme se desenvolve a partir do ponto de vista de um jovem que nasceu e se criou nessa cidade dos sonhos – Jeffrey Beaumnont (Kyle MacLachlan). De alguém cujas ações se estruturam pelos pressupostos que guiam a vida pacata de seus habitantes. E não de alguém que os ache ridículos. Eu, particularmente, acho ridículo o momento em que Jeffrey revê Sandy (Laura Dern), que conhecera na infância. Da escuridão, ela, loira, jovem, rosto imaculado e brando, vestida de cor-de-rosa claro, surge e um glorioso violino de contos de fadas é ouvido. Mas é assim que Jeffrey começa a apaixonar-se por ela. E é nesse momento que o espectador ou pára de ver o filme, ou se rende e aceita que aquelas categorias estéticas que legitimam a vida em Lumberton – clichês de filmes para a família estadunidense, iluminação de seriado de TV infantil ou de propagandas que vendem o american way of life, o sentido de uma vida tranqüila e harmoniosa, etc – serão usadas sem medo por David Lynch. Mais: serão o eixo do filme. Seu ponto de partida, quer as achemos ridículas ou não.
Vermelho perigoso
Mas David Lynch faz questão de, sempre que possível, colocar uma nota dissonante, por menor que seja, nessa melodia harmoniosa e puritana. Curtindo sua vida doméstica perfeita, a mãe de Jeffrey assiste à TV – mas é algum filme sombrio onde um homem atira em outro. No quintal, o pai dele rega o jardim, mas a ação é interrompida por um enfarte e ele cai na lama que a água da mangueira formara. Mais abaixo, escondidas pela grama brilhante, formigas são vistas assustadoramente de perto pela câmera – e o som perturbador de suas relações caóticas ressoa. O recado de Lynch é claro: o mundo não se restringe ao que os habitantes de Lumberton pensam. Algo para eles estranho, assustador – um outro bárbaro que vive nas fronteiras – existe e pode ser muito perigoso.
Jeffrey tinha ido viver longe de Lumberton, mas regressa porque seu pai é internado. A caminho de volta do hospital, acha, sem querer, uma orelha humana. Leva-a ao detetive da cidade – o pai de Sandy – e, depois disso, é tomado por uma curiosidade impulsiva para saber que história macabra está por trás daquela orelha decepada, que sombras misteriosas falam, numa voz abismal, através dela. Sandy dá as informações que conseguiu entreouvir de seu pai: sabe-se que uma mulher chamada Dorothy Vallens (Isabella Rossellini), cantora de um clube noturno, está envolvida. Os dois vão ao apartamento dela, para investigar.
Jeffrey e Sandy são duas crianças brincando de mãos dadas de detetive num playground de plástico colorido de tons claros – um rosa bebê, um azul-céu, um verde pastel – ele com seu carrinho novo e brilhante, ela com seus cachos loiros amarrados. Mas uma coleguinha triste, de cabelos pretos e batom vermelho vem perturbar a brincadeira: Dorothy. E ela tem amiguinhos que nem ela deseja. Amiguinhos que vêm quebrar o playground e levar todo mundo a outro – abandonado e enferrujado, rangendo sobre um chão de lama. “É um mundo estranho” – a frase é dita no filme três vezes, no sentido de: “há coisas desconhecidas no mundo”. Para David Lynch: há outros mundos. E o curioso Jeffrey quer conhece-los. A câmera tragada em direção à entrada da orelha decepada é Jeffrey sendo puxado pela ressaca das ondas desse mundo estranho. O apartamento de Dorothy é vermelho – um vermelho tendendo a vinho, sensual e inebriante – um vermelho que alerta: aqui é um local de transição: entre ou saia.
Azul escuro
O que Lynch queria desde o início era captar, flagrar o fascínio e o medo que causam em Jeffrey seu ingresso nesse outro mundo – violentamente contrastante daquele em que vive – mundo para ele horrível, deformado, bizarro, perigoso, emanador de morte. Lynch quer passar ao espectador uma visão psicológica específica desse mundo – a de Jefrrey, um habitante de Lumberton.
O ponto em torno do qual se constrói esse mundo é Frank Booth (Dennis Hopper): um marginal envolvido com drogas, cujas ações se guiam por impulsos de sexo pessoais primitivos, os quais afloram violentamente e são um prato cheio para quem gosta de psicanálise. O contraste com a “estética Lumberton” é patente: agora, os movimentos se dão num mundo escuro, onde há apenas velas que ameaçam ser apagadas por ventos fortes; as pessoas são feras que rugem; Frank é uma gárgula de catedral medieval; há bocas lascivas de sanguessuga, com batons vermelhos demais; há tapas de orgasmo; há a velocidade perigosa de um carro numa estrada noturna, as luzes das ruas passando muito rápido; a trilha sonora é sinistra e tem, às vezes, violinos assustadores e rápidos, como os cortes de cena. Tal é a visão de Jeffrey do mundo de Frank, onde a emoção está à flor da pele (uma música – A candy-colored clown – é o suficiente para fazer Frank gritar: “vou transar com qualquer coisa que se mexer!”); onde o sexo e a morte são fundamentais.
Frank, descobre Jeffrey, seqüestrou o marido e o filho de Dorothy e por isso a obriga a satisfazer suas neuroses sexuais. Ela, quando se relaciona com Jeffrey, se flagra em atitudes masoquistas. Ela é, como seu apartamento, uma mulher de transição. Tinha uma vida “normal” de que sente falta. Agora é obrigada a usar um robe de veludo azul escuro que é a principal tara de Frank. O masoquismo a faz concluir tragicamente: “ele passou sua doença para mim”. Ela diz a frase duas vezes ao longo do filme.
“Por que existem pessoas como Frank?” – é a voz chorosa e inocente de Jeffey perguntando. Lynch não responde, nem quer responder. Ele não se propõe a dar ou explicar causas para essa separação de mundos ou para a existência de um mundo escondido, submerso, cavernoso, estranho. Deixa isso para os sociólogos/ psicanalistas/ curiosos que analisam o filme. Ele quer é se debruçar sobre as sensações que a transição entre esses mundos causa. Ele quer é mostrar uma visão específica – a de Jeffrey – sobre o anormal e o bizarro. Às necessidades de Lynch, o exercício estético basta. E Veludo azul é precisamente isso: a pesquisa sensual de um dado debruçamento sobre o desconhecido, o misterioso e o horrível.
Belissimo artigo...
ResponderExcluirAcabei de ver o filme... mas depois de tantos anos criando expectativas sobre um filme que me disseram que ra um "classico da filmografia sadomasoquista", fiquei bem decepcionado.
O filme é pretensioso demais, e tem conteudo de menos. Tanto na parte de S&M, que é fraca e desconexa, quanto da trama em si, que termina sem explicar nem metade dos acontecimentos.
Seu artigo é muito mais denso e coerente que o proprio filme...
vai ver ela tem uma percepção mais avança do filme que a sua.
ResponderExcluirEu tambem não notei certos detalhes do filme, como por exemplo a parte do close nas formigas.
Prabens pela análise, entender o gênio lynch é pra poucos mesmo.
O filme é uma obra de arte. Coerência é mesmo para quem quer explicá-lo, não entendê-lo. Essa é a grande tirada. Fica por nossa conta a conclusão!
ResponderExcluirA crítica é boa porque abre pra outros entendimentos, mas cuidado pra não impor um único significado pro filme, principalmente quando se trata de um filme como este.
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